Antonio Manzatto*
*Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, 1993. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: antoniomanzatto@gmail.com
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A entrada de José no céu é a cena descrita na canção “A morte de José”, composição de Maria Martha e Isabel Maria G. de A. Ramos, gravada pela própria Maria Martha no álbum Flor amorosa, datado de 1977 com selo RCA Victor. A letra de canções têm sido objeto de diversos estudos na área de teologia e ciências da religião, as de temática explicitamente religiosa ou não. Aqui se tem a narrativa da morte de José, um pobre trabalhador explorado, e sua entrada no céu junto aos santos. A abordagem parte da compreensão popular de salvação, conforme a religiosidade popular tradicional, para introduzir a questão social dos pobres explorados que, na época, começava a aparecer de modo mais importante no cenário teológico e religioso da América Latina. Uma religião que aliena das condições históricas é criticada enquanto se acena com uma outra compreensão possível, aquela do Deus que se compromete com a salvação dos mais frágeis. O enfoque, pois, desloca a percepção religiosa do céu para a terra e, retratando a realidade de duro sofrimento enfrentado pelos mais pobres na sociedade, anuncia a esperança de sua libertação pelo estabelecimento da prática da justiça.
Palavras-chave: canção; salvação; sofrimento; teologia; literatura
The entrance of Joseph into heaven is a scene described in the song “A morte de José” (Joseph’s death), a composition by Isabel Maria G. de A. Ramos and Maria Martha, recorded by Maria Martha herself in the album Flor amorosa (amorous flower), dated 1977, under the label RCA Victor. Currently, lyrics of songs have been the subject of several studies in the area of Theology and Science of Religion, those with explicitly religious thematic or not. In this song, we have the narrative of the death of Joseph, a poor, laborious exploited worker, on his entrance into heaven, together with the saints. The approach starts from the popular understanding of salvation according to the traditional popular religiosity to introduce the issue of the social question of the exploited poor which, at the time, was beginning to emerge in a more significant way in the theological scenario of Latin America. A religion that is alienated from the historical conditions is criticised while another possible understanding is beckoned, that of the God who is committed to the salvation of the most vulnerable. The focus, thus, shifts the religious perception from heaven to earth and, by portraying the reality of the severe suffering faced by the poorest in society, announces hope of their liberation through the establishment of the practice of justice.
Keywords: song; salvation; suffering; theology; literature
Maria Martha é uma cantora e compositora brasileira que não costuma frequentar as listas dos maiores sucessos nacionais, mas é uma artista que ainda continua atuante e presente em circuitos alternativos de música, aqueles que não são os da grande mídia. Seu álbum de maior sucesso data de 1977 e se chama Flor amorosa, mesmo título da canção antiga, composta por Joaquim da Silva Callado e Catullo da Paixão Cearense e gravada pela primeira vez em 1902. Essa canção foi regravada, então, por Maria Martha nesse álbum e fez relativo sucesso como tema da novela Nina, exibida pela Rede Globo de Televisão entre junho de 1977 e janeiro de 1978.
Daquele álbum constam outras canções, composições da própria Maria Martha e de compositores consagrados como Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Ednardo ou Renato Teixeira SEVERIANO & MELLO, 1998, p. 86). Algumas dessas canções são verdadeiras joias da música brasileira, mas apesar disso, e da voz melodiosa da cantora, seu sucesso não alcançou os chamados primeiros lugares das paradas. Há muitos artistas que são excelentes, mas que, por razões que nos escapam, permanecem desconhecidos, sem o reconhecimento do público ou da crítica (MELLO, 2007, p. 48). É o caso de Maria Martha que, embora trabalhando com música há muitos anos, gravou seu primeiro álbum apenas em 1977, exatamente esse Flor amorosa, lançado pela RCA Victor e que foi muito bem-produzido, com repertório, como dito na sua contracapa, escolhido a dedo por Walter Silva e Zuza Homem de Mello, os responsáveis pela produção. Arranjos e regências, que deram ao álbum um toque bem especial, são responsabilidade dos maestros Élcio Álvares e Luis Arruda Paes.
Trata-se de um álbum muito bonito que traz a canção A morte de José, que permaneceu e ainda permanece praticamente desconhecida no país. É uma composição da própria Maria Martha e de Isabel Maria G. de A. Ramos. Uma toada em ritmo lento, correspondente à história narrada na canção que é a cena da entrada de José no céu depois de sua morte, o que é uma proposta bastante interessante para a reflexão teológica.
Claro que o estudo de canções precisa levar em consideração outros elementos que não apenas a letra, porque uma canção não é simplesmente uma poesia musicada (MANZATTO, 2019). Aspectos como ritmo, arranjos, instrumentação, sequenciamento das notas ou interpretação do artista, precisam ser levados em conta até porque é uma obra gravada, portanto objetivamente afirmada. Elementos de semiótica, portanto, precisam entrar na análise, mas esse não será o foco aqui. Ainda que reconhecendo a limitação a que isso conduz, far-se-á apenas referência à letra da canção, deixando os outros aspectos, com toda sua relevância, para outra ocasião.
A morte de José
“Com minha mãe estarei na santa glória, um dia.
Junto à Virgem Maria no céu triunfarei!”
Foi chegando de mansinho
Como na terra chegava,
Olhou sem jeito pro santo
Como pros homens olhava.
Pediu perdão da demora,
Pediu perdão de chegar,
Pediu perdão da sujeira,
Até do jeito de falar.
E pediu perdão de tudo,
Até do que não fizera.
Os olhos presos no nada,
Como ficavam na terra.
Com medo de ser xingado:
Porco, vadio, ladrão!
Era direito do santo
Como fora do patrão.
É que José não sabia
Que era o dono de tudo,
E que foi por medo dele
Que o santo ficara mudo.
Não aceitara promessa,
Não escutara o pedido,
E José morreu de fome:
Santo ‘tava arrependido.
Mas José não cobrou nada,
Não pediu, nem reclamou.
Enquanto José passava,
O céu inteiro se ajoelhou.
José, José, José,
Morreu José!
A forma da letra é a de um pequeno poema composto por redondilhas maiores, versos de sete sílabas, organizadas em sete quadras no formato popular, rimando apenas o segundo e o quarto versos. A linguagem utilizada também é popular, na construção frasal e no vocabulário, o que se coaduna muito bem com o assunto do qual se fala.
A cena toda é apresentada por um narrador, o cantor, que conhece todos os fatos da história, desde a vida de José até sua, agora, entrada no céu junto aos santos. O tempo verbal é todo ele colocado no passado, seja o passado simples ou imperfeito, com direito até ao mais-que-perfeito. É uma história completa, que começa no final da vida de José, na sua morte, e termina com sua vida no céu, passando por entre os santos.
Quanto aos personagens, apenas José aparece na cena; alude-se ao santo, e até o entrevemos ali, sem jeito e com remorsos, ao lado de todos que compõem o céu e se ajoelham para a passagem do José. Afinal, o céu não é um lugar vazio. Trata-se de uma cena simples, composta em sintonia com o imaginário popular que pensa o céu, lugar definitivo depois da morte, com anjos e santos. Curiosamente não são apontados outros personagens, como Deus, Jesus ou Maria. Apenas José é o foco das atenções, um José Ninguém tornado, agora, digno de ter o céu a seus pés.
A referência é a morte de José, situação afirmada explicitamente no final, mas já antecipada desde o seu início. Os versos iniciais, na verdade, fazem parte da canção religiosa “Com minha mãe estarei”, bastante conhecida na devoção popular e entoada frequentemente nos velórios e enterros no interior do país. Afirma a esperança não apenas de uma vida após a morte, mas da vida eterna de salvação, compreendida como superação de todo sofrimento. Confessa a confiança na ação de Maria, em sua presença materna nos momentos difíceis, como “a hora de nossa morte”, e na possibilidade de, talvez por ela e certamente junto a ela, ser conduzido à glória do céu. Os versos aparecem como se fossem parte de uma “música incidental” inicial, acoplados à letra que segue com o objetivo situar o velório de quem faleceu, colocando em cena a realidade da morte de José, o que será dito com todas as letras no final da canção: morreu José!
A primeira estrofe fala da chegada do personagem, ainda sem nome, no lugar da habitação do santo, o que acontece nos mesmos moldes da chegada dos humildes aos lugares importantes: sem jeito, envergonhados, pedindo desculpas por incomodar com sua chegada, de ser quem são e do jeito que são. Essa humildade e pequenez é percebida de maneira ainda mais clara na segunda estrofe, na qual aparece também a prepotência dos grandes e poderosos. Explode o contraste entre aquele simplesinho que chega pedindo perdão por tudo, até pelo que não é sua responsabilidade, e a violência do poderoso prepotente; aquele assume o lugar de sua impotência, sem ter nem onde repousar o olhar, receoso dos xingamentos e castigos a que foi submetido constantemente pelo patrão, este que se arvora ainda em senhor dos vivos e dos mortos. Se foi dessa maneira com o patrão em sua casa, com muito mais razão, agora, o santo poderia assumir o mesmo comportamento em sua morada. Daí o receio de quem chega e se mantém cabisbaixo.
A terceira estrofe, enfim, nomeia o personagem: trata-se de José. Não o do Egito, nem o de Nazaré, nem outro grande José. É um José simples, humilde, que acabara de ali chegar e não sabia ainda o muito bem o que estava acontecendo. Não podia saber que o céu lhe tinha sido reservado e que, em arrependimento por ter falhado, até o santo emudecera. Afinal, ele poderia ter ajudado José em sua vida, como é a crença da religiosidade popular; mas nada fizera o santo, deixando acontecer a morte de José em razão da fome, jeito cruel de os pobres morrerem, porque quem não é pobre não passa tantas necessidades. Agora o santo se arrepende, mas José, em sua simplicidade, não pensa em vingança, ao contrário, se mantém em sua humildade mesmo quando todos no céu se colocam de joelhos diante dele. Em sua morte, confirmada no último verso, sua vida de sofrimento e dificuldades se encerra, substituída então pela glória do céu, “junto à Virgem Maria”, com José entre todos os santos. O final da cena é diferente dos “happy ends” dos contos de fada, pois a vida de José não será livre de problemas, ao contrário. Na maior das dificuldades, ele morre de fome, e o “feliz para sempre” só acontece no céu, pois José morreu, insiste a canção.
O ambiente onde o poema se situa é o da religiosidade popular em seu imaginário escatológico, e tal horizonte é dado já pela música inicial “Com minha mãe estarei”. O cenário evoca a morte de José, e o povo do lugar entoando a cantiga enquanto ele penetra na eternidade do céu, que é, mais propriamente, a cena que a canção vai descrever. Normalmente, o céu é visto como uma projeção da vida da terra, com algumas transformações que não se sabe bem quais sejam. É assim que o imaginário popular projeta sua esperança, aquela de que no céu todos os sofrimentos serão superados de forma que aqueles que mais sofrem na terra, serão glorificados no céu, como canta a música incidental.
Embora mergulhando no sentimento religioso popular, a canção toma algumas liberdades que ajudam a perceber sua crítica e sua proposta. A cena não fala nem apresenta nenhum julgamento, do tipo juízo final em que serão prestadas contas do que se fez com a vida na terra. Talvez Isso seja posterior à cena, mas não há afirmação inicial de julgamento, e a questão não é sem interesse.
Desde os tempos da apocalíptica, se espera o julgamento final na linha do Dia de Yahweh ou da instalação de seu Reino (RUSSEL, 1997, P. 87). É o dia terrível do aparecimento de Deus que instalará sua justiça. A perspectiva é a da libertação dos oprimidos que anseiam pela libertação do jugo opressor dos tiranos, e isso virá pela ação de Deus que julga de maneira justa, e não se submete à força opressora dos poderosos que, eles, serão condenados. É a mesma perspectiva do início do cristianismo, quando se espera a volta de Jesus para realizar o julgamento que é, fundamentalmente, de salvação para os oprimidos, não para os senhores. Com o tempo e os interesses dos poderosos e da Igreja que a eles se associou, a ideia de julgamento passa a ser diferente, assumindo a forma do julgamento individual, inicialmente, no qual cada pessoa deverá prestar contas de seu comportamento com relação aos pecados que são definidos pela autoridade eclesial, não raramente associada à autoridade secular. Um segundo julgamento será o universal, estabelecendo a verdade e a justiça de toda a história; mas o que mais é trabalhado na catequese é a ideia do julgamento individual e da prestação de contas dos pecados de cada um, sob ameaça do castigo. Rompese a noção coletiva de povo oprimido e a realidade individual de se reconhecer dominado. O julgamento final, então, que seria de salvação, passa a ser uma ameaça brandida dos púlpitos contra comportamentos que se pensam inadequados e que fazem parte, não raro, da vida dos mais pobres. O foco do julgamento final muda, e não se vislumbra mais a condenação dos poderosos, mas sim a dos pecadores, aqueles que são contra a Igreja, principalmente; a salvação proclamada não é mais a dos dominados, mas a dos santos, que são aqueles que obedientes à Igreja. Assim é que a pregação medieval se espalhou pelos quatro cantos da terra e que esteve na origem da formação da religiosidade popular na América Latina. Atualmente, ainda, movimentos religiosos conservadores continuam bradando a mesma situação, identificando a salvação com a santidade dos que cumprem fielmente os ritos religiosos e afirmando a condenação ao inferno dos que não respeitam as normas religiosas da Igreja que, evidentemente, eles controlam.
A literatura, em diversos romances e poesias, questiona tal compreensão de múltiplas maneiras, e a canção, inesperadamente, a omite ou a posterga fazendo com que não haja julgamento, mas apenas a cena da entrada de José no céu, ele que mantém sua simplicidade que ocasiona a inercia do santo que lá está, mas nada faz por quatro longas estrofes.
Inicialmente, e de forma chocante, se apresenta o jeito de ser de José como continuação de seu comportamento na terra. Essa a forma que a canção escolhe para mostrar o tipo de dominação que o submetia. Não é escravidão espiritual, como gostam de pensar os moralistas e os movimentos religiosos espiritualistas de classe média. Trata-se, melhor de uma escravidão material, real ou sugerida, em que o patrão tem todos os direitos, inclusive aquele de humilhar seu escravo, e esse apenas pode se encolher diante da violência dos senhores. Afinal, o que pode um pobre trabalhador diante da truculência de seu senhor e patrão?
A realidade é conhecida entre nós, seja por conta dos séculos de escravidão, seja por conta da prepotência das oligarquias nacionais. Os direitos dos trabalhadores não são respeitados e muitas vezes eles são submetidos a maus tratos, como ofensas ou agressões. É forma conhecida de afirmação do poder pela violência e de atemorização dos mais frágeis que, indefesos, apenas se curvam e se submetem, sofrem diante da força dos grandes por não encontrarem maneiras de resistência. A figura de José, que não tem sobrenome, pode ser a de um escravo do século XVII ou a de um agricultor do nordeste do Brasil do século XX, ou mesmo a de um trabalhador urbano do século XXI, porque não faltam notícias de, nos dias atuais, pessoas serem mantidas em regime de trabalho análogo ao de escravidão, no campo ou na cidade.
No início da canção não há a afirmação clara de que o céu é diferente do mundo que se conhece na terra. José se submete, como é seu hábito, e ninguém se apressa em esclarecer-lhe a nova situação, o que coloca em evidência, exatamente, a continuidade entre o céu apregoado pela religião e o domínio do patrão. Desconhecedor da nova realidade, José não percebe que sua simples presença emudece o santo diante dele. A crítica religiosa é bastante contundente porque, afinal, apesar de muitas orações, José morreu de fome. O céu não cumpriu sua obrigação, o que acaba por confirmar o poder do patrão e o sofrimento do pobre e, agora, o santo se arrependendo disso.
Dois aspectos da apresentação religiosa tradicional são aqui questionados. O primeiro é o do cumprimento das devoções religiosas tradicionais como caminho para superação de problemas de injustiça social. Note-se bem que não são as soluções de todos os problemas ou situações que são questionadas. José morreu de fome, não de doença, idade ou acidente. A fome existe por conta da estrutura da sociedade, não por situações naturais, azares da vida ou desmandos sobrenaturais. Certas pregações religiosas servem, então, para justificar a dominação e alienar das realidades do mundo. É escandaloso como, em pleno século XXI, pessoas morram de fome, mais ainda em tempos de pandemia que, entretanto, serviu para o enriquecimento de outros. A questão é claramente de injustiça social, e não são rezas, promessas ou bênçãos religiosas que vão resolver tal problema se tais ritos religiosos não se alinharem à formação da consciência cidadã, democrática e participativa (MANZATTO, 2020, p. 764). A religião não pode estar alheia ao mundo onde se insere e, se não tem a obrigação de resolver todos os problemas, pode ao menos ajudar no processo de conscientização das pessoas, isso se basear sua pregação no Evangelho de Jesus que anuncia os valores do Reino de Deus, e não nos interesses dos poderosos da sociedade (AQUINO JUNIOR, 2016, p. 642). A religião não pode justificar a dominação defendendo os interesses e a força dos poderosos sobre os mais pobres.
O segundo aspecto é o do lugar e do papel dos santos na religiosidade popular. Para o povo simples, o santo é intermediário de Deus, a quem não ousa dirigir-se. A consciência popular sabe que não se pode dirigir diretamente aos poderosos, e que os intermediários são importantes, e o mesmo se passa com os santos no universo religioso. Sua presença pode ter relação com seres mais ou menos divinos de outras crenças ou religiões, mas, fundamentalmente, são vistos pelo meio popular como intermediários. A pregação oficial os apresenta como exemplo e mediação, e a religiosidade popular lhes dá poder e capacidade de iniciativa, ainda que sejam intermediários. Por isso o santo pode muito: pode fazer, pode se compadecer, pode ajudar e pode interceder. Por isso o costume é o de fazer promessas “ao santo”, de rezar “ao santo”, de a ele fazer novena, procissões, peregrinações, etc. Pois bem, na canção o santo não fez sua obrigação e José morreu de fome. A crítica presente diz que a religião que serve apenas para justificar a dominação não precisa existir. Seu papel, e isso o sabemos, é ajudar na conscientização das pessoas sobre a realidade social para que possa ser mudada. O pecado que precisa ser atacado é o social, que mata tantas pessoas, para além daquelas situações das quais o indivíduo pode dar conta, porque só a ele se referem.
Chama atenção, também, o fato de se dizer que o santo se arrependeu. Não é algo comum no pensamento religioso porque o santo é visto, no mais das vezes, como alguém que não tem pecado, e, portanto, não tem do que se arrepender. Também se pensa que, no céu, não há pecado possível, e então não pode haver arrependimento. Porém, se pensarmos o céu como projeção do que se vive no mundo, então “o santo” passa a ser figura do mundo religioso atual e precisa se arrepender por ajudar na alienação e por não cumprir integralmente seu papel de proteger os mais fracos, inclusive os famintos, ainda que pelo assistencialismo que muitos tanto prezam. Quando se diz que o céu se colocou do lado errado da equação, na verdade se diz que o religioso, a Igreja, está do lado errado da sociedade se não está ao lado dos pobres. A questão não é a de saber se há ou ainda haverá história ou temporalidade na eternidade, embora todos saibamos que lá existe vida. A questão não é saber se no céu ainda existe tempo para arrependimento, mas sim a de ter claro qual o papel que a religião deve desempenhar para que o mundo seja “imagem e semelhança” do Reino de Deus (MIRANDA, 2009, p. 118).
A cena final insiste na simplicidade e bondade de José que, mesmo diante da injustiça do mundo e da falta de solidariedade “dos santos”, não pensa em vingança ou queixas. Ele simplesmente segue seu caminho, mal prestando atenção ao fato de todos no céu se colocarem de joelhos diante dele. Essa a sua glória, à qual ele chega junto a Nossa Senhora, como cantado inicialmente.
Dois elementos a destacar na quadra final. O primeiro é a rejeição da violência como caminho de solução dos problemas, mesmo os de sociedade. José não cobra nada, não quer que seu patrão seja castigado, não pensa em fazer cair do céu uma chuva de fogo ou de enxofre. A violência é a arma dos grandes e poderosos, não dos pequenos; pela força não se transforma a realidade, quando muito se muda aqueles que dominam a sociedade, mas os reais problemas permanecem. A solução para as dificuldades do mundo não está nas armas, como ensina aquela outra canção que lembra que não há “messias de arma na mão”. Essa convicção é aquela dos anos de 1970, quando se questionava a corrida armamentista e o militarismo como caminho de solução. A paz é fruto da justiça, não da violência.
O segundo elemento, e talvez o mais importante de toda a canção, é o de que a salvação é destinada aos pobres (SOBRINO, 2019, p. 58). José entra no céu, torna-se “dono de tudo” e diante dele todo o céu se ajoelha não por conta de sua natureza divina, que ele não possui; não por conta de sua santidade ou de seu comportamento exemplar, porque a isso a canção não alude, apenas diz que ele é simples, tímido, subserviente e que faz suas orações. O que se reconhece é que sua simplicidade e pobreza o fazem grande no céu, como Maria cantara uma vez. Por isso, do ponto de vista teológico, há toda lógica em se começar a música entoando “Com minha mãe estarei” e de terminar a cena com o céu de joelhos diante de José, porque Maria cantou que Deus “derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes”, e “sacia de bens os famintos e despede os ricos sem nada”. A esperança dos pobres é que seu sofrimento seja vencido e transformado pela misericórdia de Deus, que virá ao menos na eternidade.
Pode-se objetar dizendo que, ainda assim, se projeta a salvação para o fim dos tempos apenas, mantendo a alienação dos reais problemas vividos na sociedade, mas talvez não seja bem assim. Em primeiro lugar porque já foi feita a crítica aos comportamentos religiosos alienantes e, em segundo lugar, o que se apresenta é o desígnio de salvação dos pobres, verdadeira antecipação na canção do que será chamado mais tarde de “opção preferencial pelos pobres”. José é salvo simplesmente porque é pobre, não porque seja bom ou tenha comportamento heroico, isso não entra em questão. A Teologia da Libertação, nascente na época, encontra aqui sua especificidade e sua novidade. Deus é o Deus dos pobres, não dos ricos e poderosos, e isso muda completamente o modo de perceber e praticar a religião. Quando falamos pobre ou fome, com certeza não falamos do céu, mas da terra. A transformação da realidade em benefício dos pobres é o que é anunciado na prática de Jesus de Nazaré e atualizada na história por seus seguidores (ESTRADA, 2016, P. 69). Essa a função da Igreja também nos tempos atuais, e a canção lembra disso de forma poética, melódica e metafórica. Afinal, “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, e as pessoas não devem ter suas vidas interrompidas por falta de alimento ou de assistência em serviços de saúde, porque a sociedade precisa ser de justiça e igualdade.
A canção A morte de José, gravada em 1977, parte do ambiente da religiosidade popular para questionar o papel da religião ao mesmo tempo em que aponta para problemas sociais que precisam ou podem ser encaminhados também com participação da própria religião. Não é uma crítica que nega qualquer tipo de religião, mas sim as que alienam.
A cena da entrada no céu de um pobre, pelo simples fato de ser pobre, é o tema que permite, ao mesmo tempo, criticar comportamentos e ambientes fechados no conservadorismo religioso tradicional, ainda que popular, e indicar o espaço de transformação da sociedade como próprio, também, para a vivência religiosa.
A época é a mesma do nascimento da Teologia da Libertação e, em vários sentidos, ambas recobrem a mesma temática, seja na negação da violência e da opressão, seja na defesa dos empobrecidos. A perspectiva de sofrimento por conta da pobreza e de sua superação por ações libertadoras não se coloca em contrário à perspectiva de salvação eterna, e nisso a canção é bastante sugestiva. O reducionismo intra- -histórico, seguidamente atribuído à Teologia da Libertação, não pode ser razão, ainda que fosse real, para um reducionismo espiritualista. E aqui é importante e oportuno recorrer ao magistério do Papa Francisco, tanto na questão da santidade, como aparece na Gaudete et Exsultate (FRANCISCO, 2018), quanto na questão da necessária luta pela justiça social, como aparece na Fratelli Tutti. A opção preferencial pelos pobres, uma das marcas de seu pontificado, é o caminho para que os comportamentos religiosos se renovem e a religião, sobretudo o cristianismo, mostre sua importância e pertinência para o mundo contemporâneo. Afinal, as religiões nos ensinam como viver aqui na terra, e não como viver depois da morte, até porque o que virá então, dependerá daquilo que for vivenciado aqui.
AQUINO JUNIOR, Francisco de. Uma Igreja pobre e para os pobres: abordagem teológico-pastoral. Revista Pistis& Práxis, teologia e Pastoral. Curitiba, v.8, n.3, p. 631-757, set..∕dez.2016. Disponível em: . Acesso em: 4 mar. 2020.
ESTRADA, J.A. Da salvação a um projeto de sentido; Petrópolis: Vozes, 2016.
FRANCISCO, Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, 2018.
MANZATTO, A. Certas canções: música popular brasileira e teologia; São Paulo: Fonte Editorial, 2019.
MANZATTO, A. Música religiosa: espiritualidade e catequese em canções do Pe. Zezinho, Caminhos (Goiânia) 18, 2020, p. 762-780.
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MIRANDA, Mario França. A salvação de Jesus Cristo: A doutrina da graça. 2. ed. São Paulo. 2009.
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SEVERIANO, J. & MELLO, Z.H. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 2: 1958-1985); São Paulo: Editora 34, 1998.
SOBRINO, J. Fora dos pobres não há salvação; São Paulo: Paulinas, 2019.