Helmut Renders
Doutor em Ciências da Religião (2006) pela Umesp. Professor do PPG em Ciências da Religião e do curso de teologia bacharel da Umesp. Contanto: helmut.renders@metodista.br
Jonadab Domingues de Almeida
Doutorando em Ciências da Religião Umesp. Professor titular do curso bacharel da mesma universidade. Contato: Jonadab.almeida@metodista.br
Resumo: Os basicamente idênticos trinta e sete painéis de azulejos no claustro de São Francisco em Olinda, Pernambuco, e no convento de São Francisco em Salvador, Bahia, compostos por inscriptiones e picturae de emblemas do livro Q. Horati Flacci Emblemata (1607), do artista flamengo Otto van Veen (1556–1629), articulam uma compreensão do tempo baseado no neoestoicismo do filósofo flamengo Justus Lipsius (1547-1606). Entretanto, o lema ou moto do painel Tempora mutantur, et nos mutamur in illis (Os tempos mudam e nós mudamos com eles) cita uma visão temporal articulada pela primeira vez pelo pastor luterano Caspar Huberinus (1500-1553) e finalizado, trocando nosque por et nos, pelo latinista e médico protestante Matthias Borbonius (1566-1629). Dessa forma, os painéis documentam uma disputa sobre a temporalidade vigente, entre a temporalidade clássica (fatum stoicum) e medieval e a temporalidade moderna, lida por nós a partir do referencial teórico da aceleração do tempo de Hartmut Rosa. Concluímos que o tema da temporalidade, justamente pela sua alteração em processo, era nos séculos 16 (Lipsius), 17 (van Veen) e 18 (painéis) um assunto que dividiu as confissões pelas suas ênfases distintas na tradição (o passado orienta o presente) e na palavra que desafia o status quo (o presente se abre para um futuro distinto).
Palavras-chave: confissões cristãs; temporalidade moderna; aceleração do tempo; Otto van Veen; painéis de azulejos franciscanos no Brasil
Abstract: The basically identical thirty-seven tile panels in the cloister of San Francisco in Olinda, Pernambuco, and in the convent of San Francisco in Salvador, Bahia, composed of inscriptiones and picturae of emblems from the book (1607) by the Flemish artist Otto van Veen (1556–1629), articulate an understanding of time based on the neo-estoism of the Flemish philosopher Justus Lipsius (1547-1606). However, the motto of the panel Tempora mutantur, et nos mutamur in illis (Times change and we change with them) cites a temporal vision articulated for the first time by the Lutheran pastor Caspar Huberinus (1500-1553) and finalized, exchanging nosque for et nos, by the Latinist and Protestant physician Matthias Borbonius (1566-1629). Thus, the panels document a dispute about the current temporality, between a classical (fatum stoicum) and medieval or a modern understanding, read by us from the Hartmut Rosa´s theoretical approach called acceleration of time. We conclude that the theme of temporality, precisely because of its change in process, was in the 16th (Lipsius), 17th (van Veen) and 18th (panels) centuries a subject that divided the confessions by their distinct emphases on tradition (the past guides the present) and on the word that challenges the status quo (the present opens up to a distinct future).
Keywords: Christian confessions; modern temporality; acceleration of time; Otto van Veen; Franciscan tile panels in Brazil
Resumen: Los treinta y siete paneles de azulejos básicamente idénticos en el claustro de San Francisco en Olinda, Per-nambuco, y en el convento de San Francisco en Salvador, Bahía, compuestos por inscripciones y picturae de emblemas del libro (1607) de los flamencos. el artista Otto van Veen (1556-1629), articula una comprensión del tiempo basada en el neo-estoísmo del filósofo flamenco Justus Lipsius (1547-1606). Sin embargo, el lema del panel Tempora mutantur, et nos mutamur in illis (Los tiempos cambian y nosotros cambiamos con ellos) cita una visión temporal articulada por primera vez por el pastor luterano Caspar Huberinus (1500-1553) y finalizada, intercambiando nosque por et nos, del médico latinista y protestante Matthias Borbonius (1566-1629). Así, los paneles documentan una disputa sobre la temporalidad actual, entre un entendimiento clásico (fatum stoicum) y medieval o moderno, leído por nosotros desde el enfoque teórico de Hartmut Rosa llamado aceleración del tiempo. Concluimos que el tema de la temporalidad, precisamente por su cambio de proceso, fue en los siglos XVI (Lipsius), XVII (van Veen) y XVIII (paneles) un tema que dividía las confesiones por sus distintos énfasis en la tradición (el pasado guía al presente) y en la palabra que desafía el status quo (el presente se abre a un futuro distinto).
Palabras clave: Confesiones cristianas; temporalidad moderna; aceleración del tiempo; Otto van Veen; Paneles de azulejos franciscanos en Brasil
A cultura visual é uma linguagem com um grande potencial performativo que facilita a promoção de visões do mundo e imaginários. Neste estudo aqui apresentado, investigamos elementos textuais e visuais de um dos trinta e sete painéis do claustro do Convento de São Francisco, localizado em Olinda, Pernambuco (figura 1).[1] O painel do nosso interesse, composto por azulejos criados por Bartolomeu Antunes de Jesus, em Lisboa, provavelmente na década de quarenta do século dezessete, contém na sua parte superior central o título tempora mutan/tur et nos mu/dantur in illis[2] (figura 2), o que geralmente é traduzido por Os tempos mudam, e nós mudamos com eles[3]. Como também os outros trinta e seis painéis do claustro, combina cada painel com uma inscriptio e pictura de um emblema criado pelo pintor, desenhista e humanista Otto van Veen ou Octavius Vaenius (1556–1629), da sua obra Q. Horati Flacci Emblemata (1607). Otto van Veen vivia e trabalhava nas cidades de Antuérpia e Bruxelas, ou seja, nas províncias sob domínio espanhol ou católico dos Países Baixos.
Figura 1: Bartolomeu Antunes de Jesus. Azulejo “Os tempos mudam, e nós mudamos com eles “. In: Igreja e Claustro do Convento de São Francisco, Olinda, [174?].[4] |
Figura 2: Bartolomeu Antunes de Jesus. Azulejo “Os tempos mudam, e nós mudamos com eles “. In: Igreja e Claustro do Convento de São Francisco, [174?]. [Detalhe] |
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Fonte: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/ unesp/252293/67/BA_ISF_A66.jpg |
Fonte: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/ unesp/252293/67/BA_ISF_A66.jpg |
O que nos interessa nesse painel é qual ideia religiosa de temporalidade, e qual seu efeito sobre o ser humano ele transmite. Estabelecemos essa conversa com a imagem dentro da perspectiva daquilo que Hartmut Rosa designou como processo da aceleração do tempo, que ele entendeu como uma marca, primeiro, da modernidade e depois, de uma forma mais radicalizada ainda, da modernidade tardia. Para discutir a ideia religiosa de temporalidade transmitida tanto pela inscriptio como pela pictura, vamos investigar as origens do referido painel, entendendo, num sentido warburguiano, a pictura como um Bildfahrzeug e a inscriptio com exemplo do Nachleben der Antike, referenciada de uma forma eclética que já articula, inclusive no Brasil da reforma católica, uma nova compreensão da temporalidade da época. Depois dessa primeira análise iconográfica e iconológica, dedicamo-nos à proposta de Hartmut Rosa quanto ao fenômeno da aceleração do tempo e finalizamos com algumas conclusões sobre o uso de um lema protestante por franciscanos no Brasil conectando e transcendendo confissões e continentes.
A pictura como Bilderfahrzeug: uma análise iconográfica e iconológica
Figura 3: Veen, Otto van. Theatro moral de la vida humana, en cien emblemas …: Antuérpia, Bélgica: Impresso por Henrico y Cornelio Verdussen, 1701. Capa |
Figura 4: Veen, Otto van. Theatro moral de la vida humana, en cien emblemas … Antuérpia, Bélgica: Impresso por Henrico y Cornelio Verdussen, 1701. p. 171 |
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Fonte: https://libsysdigi.library.uiuc.edu/OCA/Books2010-02/theatromoraldela00vee/theatromoraldela00vee.pdf [p. 10] |
Fonte: https://libsysdigi.library.uiuc.edu/OCA/Books2010-02/theatromoraldela00vee/theatromoraldela00vee.pdf [p. 197] |
A pictura do nosso painel é idêntica à pictura do emblema n. 85 com o mesmo nome no livro Q.[uinti] Horati Flacci[5] Emblemata, a obra mais antiga das três obras principais[6] de van Veen. Existe uma tradução para o espanhol do ano 1669[7], com um exemplar preservado na Biblioteca Nacional do Brasil.[8] Essa tradução não surpreende devido à imensa popularidade da obra. Inemie Gerards-Nelissen (1971, p. 20) conta mais do que vinte edições incluindo o século 18, e Karl A. E. Enenkel (2019, p. 365), vinte e cinco. Interessante é o título da obra. Enquanto van Veen simplesmente se refere a emblemas (relacionados a textos) de Horátio (com imagens [executadas] em cobre), muitas obras posteriores[9] sinalizam a função da obra na formação moral, uma intenção que van Veen certamente compartilhava: “Vaenius ‘traduziu’ as obras do poeta romano em imagens cativantes, inovadoras e artisticamente exigentes, gravuras de alta qualidade técnica, para serem usadas na meditação filosófica e moral” (ENENKEL, 2019, 345).
O núcleo iconográfico da pictura é formado por um grupo de sete figuras, retratadas à frente de um fundo com referências à destruição (na parte central esquerda, há uma fortaleza em chamas) e à transitoriedade do esforço humano de construir a sua vida (no primeiro plano do pano do fundo, encontra-se uma coluna quebrada). O motivo principal, é composto por uma figura masculina já de idade, com calvície avançada e uma barba longa. Ela segura uma gadanha ou um alfanje em sua mão esquerda, avançando do lado esquerdo para o lado direito, sem tocar com seus pés no chão. Entre outros, descreve-se também o avanço do tempo como um movimento da esquerda à direita. A figura central e maior é acompanhada por seis figuras menores, que lembram de Putti da arte barroca. A figura maior representa o tempo como chronos, o que configura a imagem como uma alegoria de uma corrida que termina com a morte da pessoa. Pela inclinação da figura se dá a impressão de que o tempo não somente está avançando, mas, “voando”, intempestiva e incontrolavelmente para o ser humano. Quando van Veen cria essa gravura, os atributos iconográficos das asas e da gadanha eram só recentemente vinculadas com Chronos.[10] Essa nova forma ganhou o nome [velho] pai [do] tempo.[11] Van Veen usa esse motivo em seu texto mais sete vezes, ou seja, trata-se de uma alegoria importante na sua obra como um todo.[12]
Figura 5: Bartolomeu Antunes de Jesus. Azulejo “Os tempos mudam, e nós mudamos com eles “. In: Igreja e Claustro do Convento de São Francisco, [1782]. [Detalhe] |
Figura 6: Veen, Otto van Veen. Theatro moral de la vida humana, en cien emblemas… Antuérpia, Bélgica: Impresso por Henrico y Cornelio Verdussen, 1701. p. 171 |
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Fonte: https://libsysdigi.library.uiuc.edu/OCA/Books2010-02/theatromoraldela00vee/theatromoraldela00vee.pdf [p. 10] |
Fonte: https://libsysdigi.library.uiuc.edu/OCA/Books2010-02/theatromoraldela00vee/theatromoraldela00vee.pdf [p. 197] |
O segundo elemento, as seis figuras menores, requer uma atenção iconográfica e iconológica ainda maior. Na mitologia grega, Chronos tinha seis filhos e filhas (Héstia, Deméter, Hera, Hades, Poseidon e Zeus), mas, eles não estão retratados aqui. Van Veen, portanto, distancia Chronos do seu equivalente latino, Saturno, e da narrativa clássica do Saturno devorando a[s] sua[s] criança[s]. Em vez disso, representa van Veen figurativamente aqui diversos vícios, surpresas iconográficas, inclusive. As atribuições para nós mais claras nos remetem ao mito da Medusa (figura 7 [motivo particular “1”]), também muito popular na Renascença, e interpretado por artistas famosos como Benvenuto Cellini (1554), Michelangelo Merisi da Caravaggio (1557), Peter Paul Rubens (1616/17) e Gian Lorenzo Bernini (1638). Todas as obras representam somente a cabeça da Medusa, em geral cortada, com a exceção de Bernini quem criou um busto de uma Medusa viva. Van Veen, mestre do próprio Paul Rubens, não segue essa ênfase iconográfica, mas representa uma Medusa como tipologia do vício da inveja.
Figura 7: Otto van Veen. Theatro moral de la vida humana, en cien emblemas… Antuérpia, Bélgica: Impresso por Henrico y Cornelio Verdussen, 1701. p. 171 |
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Fonte: https://libsysdigi.library.uiuc.edu/OCA/Books2010-02/theatromoraldela00vee/theatromoraldela00vee.pdf [p. 197]. Recorte pelos autores. |
Ao lado dela encontra-se Marte, com capacete e espada (mas, não com escudo e uma lança, como seria na época o mais comum). Essa personificação da guerra, em van Veen, se transforma em ira (figura 7 [motivo particular “2”]). Avançando no lado direito dele, uma outra figura segura flechas de fogo, o que em outros emblemas é um elemento iconográfico da raiva (figura 7 [motivo particular “3”]). Abaixo dela, aparece uma cabeça com um instrumento musical, talvez uma flauta (figura 7 [motivo particular “4”]), que personifica o divertimento ou a distração, ambas vistas como pecado. Descendo um pouco mais, vemos uma cabeça e na sua frente pratos ou tigelas para comer e um cálice para beber (figura 7 [motivo particular “5”]) o que formaria o vício da gula. Finalmente, indo para o lado esquerdo do recorte, encontramos uma figura com penas de um pavão na sua mão direita (figura 7 [motivo particular “6”]). Na Antiguidade tardia, acompanhou o motivo do pavão certa ambiguidade iconológica. Por um lado, relacionava-se o pavão como o vício da arrogância, já que, supostamente, orgulha-se da sua beleza. Por outro lado, o pavão tinha se tornado um símbolo da ressureição (CARDOSO, 2021), como, por exemplo, na pintura de Fra Angelico, a Adoração dos Magos, criado entre 1451 e 1453. Van Veen volta à interpretação clássica onde as penas do pavão simbolizam o orgulho[13]. A razão pela qual van Veen lista, especificamente, “inveja, ira, raiva, divertimento gula e orgulho”, fica no escuro. Desses seis pecados, quatro compõem os setes pecados capitais, deixando de fora a avareza, a luxúria e a preguiça.
Esta ênfase numa iconologia dos vícios, confirma também os textos acompanhantes em latim, holandês, espanhol e francês, já que se referem aos vícios[14] de uma geração jovem que vai, ao longo de tempo, do ruim para o pior. Não sabemos, mas, supomos, que os franciscanos brasileiros, que encomendaram o conjunto de 37 painéis de Portugal em duas edições, uma para Olinda e a outra para Salvador, conheciam ou a versão original de van Veen ou a edição espanhola. Mas, diferentemente, todos os painéis são decorados de tal modo, como Weststeijn comenta, que lembram cenários de um palco, ou seja, os painéis visualizam, literalmente, um “teatro moral”. Considerando a concepção dos Bilderfahrzeuge de Warburg, podemos afirmar que essa imagem ou pictura de um emblema foi deslocada de um continente para um outro seguindo, primeiro, a segunda fase do monopólio das publicações anteriormente estabelecidas. Durante a União Ibérica somente a casa publicadora Plantin da cidade de Antuérpia tinha autorização para publicar livros para os seus territórios, dentro e fora da Europa. Mas, em um segundo momento, os emblemas contidos nestas publicações se tornaram as bases para muitas pinturas (Cf. PIFANO, 2008, p. 24-33) e azulejos. Assim, tanto nos territórios dos vice-reinados espanhóis, como de Portugal, quase cem anos depois do fim da União Ibérica, prolongava-se a antiga política de publicidade e com ela, a manutenção visual do status quo religioso. Tanto em Salvador, mesmo que por um curto prazo, como em Olinda, os franciscanos tiveram que reconstruir no século 18 as suas igrejas, seus claustros e conventos, erguidos no século 16, porque foram destruídos no século 17 pelos holandeses. O “toque final” dessas construções com painéis de azulejos com motivos de um livro com emblemas da Antuérpia parece ser então, também uma manifestação simbólica do reestabelecimento da velha ordem, inversa ao breve projeto protestante holandês. Entretanto, ainda sabemos pouco sobre a atuação ampla dos franciscanos, por exemplo, em comparação com os jesuítas. Isto é, por um lado, um problema da pesquisa brasileira, como Luiz Fernando Conde Angenis e Peter Johann Mainka (2019, p. 1-24) demonstraram para o campo da educação colonial. De fato, temos poucos documentos já analisados para saber como os franciscanos depois de meados do século 18 interpretaram a virada dos tempos, que se evidenciou também no Brasil com os decretos do Marquês de Pombal e a expulsão dos jesuítas em 1759. Eventualmente, era ambígua. Por um lado, um outro decreto do Marquês em 1764 proibiu a recepção de novos membros pelo Frades Menores; por outro lado, o decreto foi anulado em 1777. Viradas de tempos, em direta proximidade à instalação dos azulejos.
A inscriptio como exemplo do Nachleben der Antike: continuidade e mudança na época da Renascença e a noção de [uma nova] temporalidade
A inscriptio que como moto existia antes da pictura, revela uma vida própria, não somente independente da imagem, mas, também autônoma do ambiente confessional, mais ainda, da narrativa da reforma católica na qual foi integrada.
Figura 9: Casper Huberinus. Postille Deutsch,Frankfurt / Oder. 1554 [capa] |
Figura 10: Casper Huberinus. Postille Deutsch,Frankfurt / Oder. 1554 [folha 354] |
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https://books.google.de/ |
https://books.google.de/ |
De fato, o lema como ele se encontra hoje no convento de Salvador, Bahia, e no claustro em Olinda, Pernambuco, o moto que tinha sido integrado no livro com emblema de Otto van Veen, que produziu a sua obra numa cidade católica e para uma editora que tinha o monopólio de publicação nas partes do mundo sobre o governo espanhol, era neste formato luterano de origem, e reformado na versão efetivamente usada.Em seguida vamos, primeiro, resumir os argumentos que levaram a esse dado já esclarecido e textualmente reconstruído – mas, supreendentemente pouco comentado –, para depois iniciar uma conversa que vai além da questão da confessionalidade e da troca interconfessional de lemas, motos e imagens; para fazer, em vez disso, uma análise confessional a partir das escolhas confessionais distintas em relação às suas preferências de temporalidade. Essa conversa estabelecemos a partir do modelo da aceleração do tempo de Hartmut Rosa e sua distinção entre uma temporalidade da Antiguidade que prevaleceu, de grande modo, até a época medieval e uma temporalidade da modernidade que lentamente se estabelece na época da Renascença.
O que se sabe hoje é que o lema na sua forma quase atual - tempora mutantur et nos mutamur in illis (figuras 9 e 10) foi pela primeira vez publicado no ano de 1554 pelo pastor luterano Caspar Huberinus (1500-1553) na sua Postila Deutsch: Über alle Fest- und gemeine Feyertag der Heiligen durchs ganze Jar, kurze und nütyliche auslegung[15] (HUBERINUS, 1554, folha 354). Uma geração depois, Matthias Borbonius ou Matěj Burda (1566-1629)[16] criou a forma atual, citada na sua coletânea Delitae Poetarum Germanorum (1612, [v. 1], p. 685). A pequena variante – nosque em vez de et nos – é uma questão de estilo e de ritmo, e não muda o significado do lema. Importante para nós são os dados biográficos dos dois autores. Ambos se destacam pela sua participação intensa no projeto da reforma protestante. Huberinus parece ter sido monge, mas, foi para Wittenberg estudar e se tornou uma figura importante, tanto no debate zwingliano-luterano sobre a santa ceia, como na organização da cidade de Augsburgo como uma cidade biconfessional, algo inédito na época. Já Borbonius era na sua primeira carreira professor particular e, na sua segunda, médico. Pelo seu vínculo profissional e confessional, estava em proximidade do grupo de protestantes que se revoltou contra o imperador católico Fernando I, envolvido na defenestração de Praga em 1618, evento que provocou a Guerra dos Trinta Anos. Em consequência, foi condenado a ser executado juntamente com outros 27 protestantes que foram mortos em Praga em 21 de junho de 1621. Entretanto, graças a petições de pacientes (católicos), a pena foi transformada no último momento em prisão perpétua e, depois, domiciliar. Entretanto, Borbonius não recuperou suas propriedades confiscadas e morreu em 1629 na cidade de Torún, Polônia, como médico do futuro monarca polonês Ladislau IV Vasa.[17] As duas biografias têm em comum que elas, por um lado, dificilmente, podem ser mais protestantes; por outro lado, isso não envolve, nos dois casos uma rejeição categórica de católicos. Huberinus liderou a convivência interconfessional pacífica e organizada na cidade de Augsburg e Borbonius serviu, apesar de ser protestante dedicado, durante toda a sua vida, tanto às populações evangélicas como católicas, como médico, inclusive, das classes altas.
Além dessa diferença confessional, a frase criada também revela uma nova percepção temporal. Caspar Huberinus cita Ovídio da sua obra Fasti e a sua afirmação Tempora labuntur, tacitisque senescimus annis – Os tempos passam, e envelhecemos durante os anos em silêncio – e acresce Tempora mutantur / nosque mutamur in illis. Dessa forma substitui um papel passivo do ser humano por um papel criativo, que passa de um sofrimento silencioso para uma adaptação consciente. Enquanto Ovídio reflete sobre o ciclo natural ou biológico da vida que impõe sobre ele limitações e o silencia, Huberinus reflete sobre as mudanças que ocorrem em seu tempo e que estas mudanças precisam ser acompanhadas pelo ser humano. Estas mudanças incluíram, no caso dele, a sua própria mudança confessional ou religiosa. Trata-se, para ele, literalmente, de uma Zeitenwende, uma virada dos tempos (tempora é um plural), de um novo tempo que substitui o tempo antigo. Tempora mutantur nosque mutamur in illis não somente reflete uma visão temporal ocasionalmente aceita pelos dois protestantes, mas, articula a compreensão protestante da necessidade e possibilidade de mudanças, uma noção que o protestantismo compartilhou com o humanismo. Nesta perspectiva, a virada do tempo, ou a mudança entre os tempos, acompanhado pelo próprio ser humano, ganha uma conotação positiva, e se torna algo moralmente desejável, inclusive.[18]
Quando van Veen integra o lema numa coletânea de ditos filósofos estoicos, ele, ao mesmo tempo, referência o ideal de um tempo estático e, simultaneamente, articula a nova compreensão de dinâmica temporal. Observando seu uso do motivo do Pai do tempo em seu livro, concluímos que van Veen reduz o tema à relação entre o avanço do tempo e o ciclo da vida, e se afasta de uma compreensão de mudança dos tempos no sentido mais amplo. Van Veen interpreta a mudança dos tempos dentro da perspectiva da escola filosófica de Estoa no sentido de O tempora, o mores, que vê a mudança de tempo acompanhada pela decadência moral. Ou como van Veen anota abaixo da pictura em holandês:
Den tijt verargert alle Iaren O tempo piora cada ano.
En heeft ons' Ouders voortghebracht e gerou nossos pais,
Veel arger als hun vaders waren / que eram muito piores do que seus pais[19],
Noch arger sijn wy me gheacht / bem pior do que jamais pensamos.
De fato, um dos interesses da reforma católica nos filósofos estoicos é justamente a sua temporalidade, uma temporalidade oposta à temporalidade privilegiada pelo protestantismo. O bom tempo, melhor ainda, o tempo dourado é, em primeiro lugar, o tempo passado, e por causa disso, garante em especial a manutenção da tradição, a vida e não as ideias das novas gerações. Van Veen empresta a frase de Borbonius, mas, não compartilha as suas expectativas esperançosas quanto à nova temporalidade em plena ascensão. Este aspecto estoico, de fato, neoestoico, partiu em especial do filósofo flamengo Justus Lipsius (1547-1606), treinado por Jesuítas na cidade de Colônia, Alemanha, que fica próxima ao território flamengo. Influente era a sua obra Constantia (1586) – o próprio título já sinaliza uma compreensão temporal de favorecimento da continuidade entre o passado e o presente – na qual ele apresentou uma adaptação do estoicismo clássico ao cristianismo na perspectiva da reforma católica. Segundo Weststeijn (2005, p. 135 e 136), a ênfase neoestoica era numa temporalidade que privilegiava a continuidade e não a mudança, além da submissão humana a esse determinismo, na Antiquidade visto como um fatum, um destino cego, agora considerado inerente à criação divina, um elemento central para os franciscanos reproduzirem as gravuras de van Veen:
Deve-se comportar “de acordo com a natureza” (vivere secundum naturam) e viver de acordo com o fatum stoicum, que significa contar com um certo grau de determinismo na conduta humana [...] para se contentar com o próprio destino (sors sua quemque beat)”. [...] Os franciscanos eram [...] atraídos pela doutrina estoica do determinismo e da constância privada, [...] evidentemente concentrada na noção estoica de vanitas (WESTSTEIJN, 2005, p. 135).
Podemos imaginar o apelo positivo que esta visão neoestoicista tinha dentro da estrutura de uma ordem religiosa, onde a submissão e a obediência ao superior são elementos importantes da organização social, do convívio e do trabalho. E, de imediato, podemos sentir a ameaça que uma visão de mundo menos determinada, aberta e passível a mudanças – eventualmente, por reformas? – significava a essas estruturas. Entretanto, apesar do movimento ousado de reinterpretar o moto Tempora mutantur et nos mutamur in illis em uma perspectiva neoestoicista da reforma católica, o lema traz consigo uma contínua ambiguidade, a ambiguidade sobre a temporalidade realmente vigente, já que a afirmação que os tempos mudam e nós mudamos com eles, em si não articulam nem estabilidade e nem constância, mas, dinâmica e alternância.
A aceleração do tempo e articulações transfronteiriças da temporalidade, compressão espacial e interconfessionalidade
O conceito de aceleração do tempo é abordado neste artigo em face do entendimento de que a inscrição do painel encontrado em conventos franciscanos de Olinda, Pernambuco e de Salvador, Bahia, traduzida como: Os tempos mudam e nós mudamos com eles, tratam a respeito da temporalidade e de suas consequências na vida humana e na sociedade. Como mencionado na segunda parte deste artigo, a inscrição reflete “uma visão temporal articulada pela primeira vez pelo pastor luterano Caspar Huberinus (1500-1553) e finalizada, trocando nosque por et nos, pelo latinista e médico protestante Matthias Borbonius (1566-1629)”.
Integramos, daqui para frente, as contribuições de Hartmut Rosa que publicou as suas ideias sobre a aceleração do tempo, primeiro em inglês (2010) e depois em alemão (2013). Uma primeira tradução em português (2019) integra um conceito adicional, a ressonância, por meio do qual ele resume a sua “sociologia da relação com o mundo”, primeiro publicado em alemão (2017) e depois em inglês (2019). Ao apresentar o conceito de aceleração do tempo, Hartmut Rosa afirma ser hoje “algo comum que os principais processos sociais e econômicos estão passando por uma dramática aceleração, enquanto as taxas gerais de mudança social estão se intensificando em um ritmo menor” (ROSA, 2010, p. 2). Rosa conceitua o processo de aceleração:
Como sintoma e consequência da circunstância de serem as sociedades modernas capazes de se estabilizar apenas dinamicamente, de serem sistemáticas e estruturalmente dispostas a crescer, transformar-se e acelerar-se sempre mais para poder conservar sua estrutura e estabilidade (ROSA, 2019, p. x).
O fato da estabilidade ser possível “apenas dinamicamente”, segundo Rosa, impõe às sociedades modernas a disposição para “crescer, transformar-se e acelerar-se”, ressaltando o movimento, o crescimento constante, “sempre mais”, como requisito para conservar sua estrutura e estabilidade, o que configura o fenômeno da aceleração. Neste sentido, Rosa propõe a definição de que “uma sociedade é moderna quando apenas consegue se estabilizar dinamicamente; quando é sistematicamente disposta ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (ROSA, 2019, p. xi). Em adição, podemos acrescer que uma sociedade pré-moderna é caracterizada por uma visão do mundo, do cosmo e da história mais circular do que linear. O mesmo vale, em geral, para as religiões pré-modernas, talvez com a exceção do judaísmo.
Junto com o conceito de aceleração, Rosa apresenta também os conceitos de alienação e ressonância. A alienação, segundo ele, “diz respeito, a um modo de relação no qual sujeito e mundo se colocam um ante o outro intrinsecamente desconectados, no qual a assimilação de um fragmento do mundo fracassa” (ROSA, 2019, xxxvii), enquanto a ressonância diz respeito a “um modo relacional no qual sujeito e mundo colocam-se numa relação responsiva” (2019, p. xxxi), como um contraponto à alienação, a ponto de conceituar ressonância como “o outro da alienação” (ROSA, 2019, xxxvii). Desta forma, considera-se o conceito de aceleração social como uma ferramenta indispensável para a análise social, política e religiosa da modernidade (e modernidade tardia).
Ao responder à pergunta sobre “o que é a aceleração social”, em reflexão preliminar, Rosa aponta como problema “o fato de se poder observar, nas diferentes áreas da sociedade, fenômenos de aceleração muito heterogêneos, que dificilmente poderão ser categorizados sob um conceito comum e cuja relação mútua não fica evidente à primeira vista” (ROSA, 2019, p. 126). Como “hipótese central” de sua investigação, Rosa afirma que:
A sociedade moderna pode ser entendida como “sociedade da aceleração”, no sentido de que ela contém em si (através de inúmeros pressupostos estruturais e culturais) uma junção de ambas as formas de aceleração – a aceleração técnica e a intensificação do ritmo de vida através da redução de recursos temporais – e a tendência à aceleração e ao crescimento (ROSA, 2019, p. 135).
Quanto à aceleração técnica, Rosa aponta como “a mais evidente e mais consequente figuração da moderna aceleração”, e indica que é “a mais simples de ser medida e verificada” (ROSA, 2019, p. 141), caracterizada não apenas pelo “movimento mais rápido de pessoas, bens, informações e projéteis militares sobre a terra, mas também a produção mais veloz de bens, a transformação mais ágil de matéria e energia e, embora em menor proporção, a aceleração dos serviços” (ROSA, 2019, p. 144). Também, apresenta a aceleração da mudança social, “como um aumento das taxas de expiração de experiências e expectativas orientadoras da ação, e como encurtamento dos intervalos de tempo que, para cada esfera funcional, de valor e de ação, podem ser determinados como presentes” (ROSA, 2019, p. 152). Além disso, Rosa detecta ainda a aceleração do ritmo de vida que,
[...] implica um encurtamento ou um adensamento de episódios de ação que podem ser verificados principalmente através de estudos de uso do tempo [...] por exemplo, a diminuição da duração das refeições, do sono ou do tempo médio de comunicação na família, e ainda tentativas de reduzir a duração total, seja de uma visita ao cinema, de uma festividade ou de um enterro – em suma, reduzir o intervalo de tempo entre o término de uma atividade e o início de outra (ROSA, 2019, p. 155).
Assim, apresentadas as definições das três formas, aceleração técnica, aceleração da mudança social e aceleração do ritmo de vida, seguimos na busca de compreender o fenômeno da aceleração social e suas implicações sobre o ser humano, sobre a sociedade e sobre a religião.
Referindo-se ao tempo de uma forma geral, Norbert Elias afirma que “a experiência humana do que chamamos ‘tempo’ modificou-se ao longo do passado, e continua a se modificar em nossos dias, não de um modo histórico ou contingente, mas de modo estruturado, orientado e, como tal, passível de explicação” (ELIAS, 1998, p. 34). Desta forma, a reflexão sobre a temporalidade e aceleração relacionadas com a análise da inscrição dos painéis sobre a mudança dos tempos e a mudança da sociedade parece bastante oportuna, com a intuição de que o fenômeno da aceleração afeta também a religião como um todo.
Quanto ao emblema em análise, verificamos que se trata de uma inscrição católica, de conventos franciscanos, datada de aproximadamente meados do século XVIII, porém, criado por um luterano (Caspar Huberinus) e um reformado (Matthias Borbonius). Essa diferença confessional acompanha uma visão temporal distinta. Van Veen e os Franciscanos, no século 18, promovem a reforma católica, idealizando a Antiguidade e a época medieval, enfim, a pré-modernidade, que favorece a tradição e desconfia da mudança. Já, a perspectiva protestante acompanha a ideia humanista de que a mudança é necessária, leva a melhorias desejáveis, e traduz tudo isso para o campo religioso com a ideia de uma “igreja reformada, sempre reformando”. Isso nos leva a pensar sobre o lugar teológico-temporal da inscrição.
Ao que parece, o protestantismo é mais propenso a consentir com a afirmação contida na inscrição, enquanto o catolicismo, parece mais propenso a rejeitar a afirmação da inscrição, no propósito de manter a tradição. Neste sentido, novamente recorremos a Hartmut Rosa que, ao abordar sobre Alienação e Aceleração, sugere que “a mudança nesses dois domínios - família e trabalho - aceleraram, movendo-se de um ritmo intergeracional na sociedade moderna a um ritmo geracional na modernidade clássica, e a um ritmo intrageracional na modernidade tardia” (ROSA, 2016, p. 27). Significa que a mudança nos domínios da família e do trabalho parte de um ritmo intergeracional na sociedade moderna para um ritmo geracional na modernidade clássica e intrageracional na modernidade tardia, evidenciando não somente a aceleração, mas também a mudança do ritmo da aceleração do tempo. Ou seja, as mudanças ocorrem de geração em geração (sociedade moderna), entre as gerações (modernidade clássica) e dentro de uma geração (modernidade tardia).
Quanto às mudanças na família, Rosa ressalta que a tendência da estrutura familiar na sociedade agrária era permanecer estável, isso ao longo dos séculos, e que na modernidade clássica tinha sido projetada e tendia a durar uma geração, geralmente em torno de um casal e que se dispersa com a morte, enquanto na modernidade tardia, se observa a tendência a que a estrutura familiar dure menos ainda do que a vida de um indivíduo (ROSA, 2016, p. 28). Já, sobre o mundo do trabalho, Rosa afirma:
Nas sociedades pré-modernas e no início da modernidade, a ocupação era herdada do pai pelo filho e tinha potencial para repetir o processo por muitas gerações, enquanto que na modernidade clássica a tendência era de mudança com as gerações, enquanto que na modernidade tardia as ocupações não abrangem mais uma vida ativa, com mudanças em ritmo muito mais rápido do que a mudança de gerações (ROSA, 2016, p. 28).
Novamente, o ritmo das mudanças ressalta a aceleração do ritmo de vida. Neste sentido, ao tratar sobre éticas situacionais na temporalidade pós-moderna, Helmut Renders afirma que “a modernidade tardia é caracterizada por uma nova fase de aceleração de todos os aspectos da vida e de suas respectivas estruturas e instituições” e explica que “escolhas profissionais, relações humanas, tudo fica cada vez mais fluido, sujeito a alterações” e que “as palavras da moda não são mais credibilidade e perseverança, mas flexibilização e flexibilidade” (RENDERS, 2014, p. 60). A flexibilização, inclusive de valores fundantes de uma instituição ou mesmo de uma sociedade, de fato, é uma marca que se identifica como efeito do fenômeno da aceleração.
Esta ascensão de uma nova temporalidade marca então, primeiro, uma verdadeira virada temporal. Uma, aposta na promessa da continuidade, enquanto outra, constrói, baseada na promessa de mudança; a primeira, identifica os promotores e apoiadores de mudanças como hereges, pessoas fora do e opostas ao sistema religioso, enquanto que a outra, suspeita da tradição, como sendo o maior obstáculo para os avanços. Essa virada do tempo, é então, por um lado, uma questão de direcionamento entre passado, presente e futuro: o modelo católico procura preservar a vida no presente com a sabedoria dos tempos anteriores; o protestantismo, quer caminhar na direção de um futuro melhor e vê a necessidade de se mudar como a oportunidade que o novo tempo oferece, em busca de novas verdades. Nesta encruzilhada entre verdade e sabedoria, o neoestoicismo opta pela sabedoria com atributo da religião:
A ética de Vaenius é melhor descrita como a adaptação cristianizada do atomismo antigo que, nos estudos modernos, recebeu o nome de neoestoicismo. Propaga não a busca pela verdade, mas pela sabedoria, que, como afirma a introdução aos Emblemata, é o único “guia para uma vida em constância” (WESTSTEIJN, 2005, p. 132).
Essa ênfase, por sua vez, entra em linha de colisão com a busca científica da verdade, enquanto ela ocorre mais e mais independente de perspectivas religiosas. Na primeira perspectiva, um mundo aberto é considerado um problema por causar instabilidade;[20] no segundo caso, o mundo aberto é entendido como um mundo inacabado, em construção, o que, por sua vez, leva a uma contínua adaptação ou reforma das instituições governamentais, administrativas e religiosas. Somente um mundo aberto requer uma igreja sempre em reforma ou em reforma contínua. Hartmut Rosa sugere que essa virada do tempo como uma virada de uma esperança focada no passado para uma esperança que aposta no futuro, não é a única mudança do tempo que ocorreu na Renascença. Além da questão da direção do tempo, ele também identifica o fenômeno da aceleração como a sua causa.
Segundo Morgan, mudanças sempre ocorreram, porém, na antiguidade e na época medieval, estas mudanças paradigmáticas se instalaram ao longo da vida de diversas gerações. Uma das consequências disso era que, no nível subjetivo, a lentidão das mudanças resultou em uma sensação maior de estabilidade – algo que a edição espanhola diretamente articula como desejável – porque não desestabilizaram as gerações por si. Na Renascença, porém, a velocidade das mudanças ocorreu entre as gerações e não mais depois de muitas ou diversas gerações. Van Veen detecta o fenômeno, mas o identifica como falta de moral ou decadência moral das respetivas novas gerações em relação às gerações anteriores. Consequentemente, a reposta dada é viver virtuosamente e deixar para trás os vícios. O fenômeno da aceleração do tempo que se agrava com o início da modernidade, tira essa oportunidade e, coloca toda opção temporal do sistema católico em crise, o que se articula, no caso do Brasil, pela tentativa do isolamento e da blindagem dos seus territórios do protestantismo e das ciências, cujos resultados trazem instabilidade aos sistemas cosmológicos (Galileu Galilei, Copérnico), sociais (revolução francesa) e religiosos (movimentos de reforma). Hartmut Rosa entende que a mudança da temporalidade medieval e clássica para a temporalidade moderna, a partir da Renascença, é um primeiro e significativo passo da aceleração do tempo atual. Com isso, ele não somente critica a sua linearidade, mas ressalta que nesta linearidade mudanças ocorrem em períodos ou prazos cada vez mais curtos, o que por sua vez, causa um tremendo mal-estar no ser humano por desafiar seu desejo de estabilidade e controle. Em vez disso, começam a ocorrer recorrentes mudanças cada vez mais aceleradas, e em sua percepção pessoal, essas atropelam as pessoas. Isso se intensifica, quando essas mudanças ocorrem não mais entre as gerações – que já era conflitante – mas, continuamente na vida da maioria das pessoas, até não mais envolver as pessoas. Nesse caso, as pessoas de fato não mais mudam com as viradas dos tempos, mas, se sentem mais alastradas por elas, o que por sua vez alimenta, novamente, a ideia de um destino no mínimo desinteressado, talvez, cego, de uma força superior e incontestável que rege sobre as suas vidas. Assim, se instala ao final da modernidade, na modernidade tardia, novamente uma forma de fatalismo baseado na sensação da força esmagadora da realidade como algo que governa tudo, representando uma poderosa Wirklichkeit[21] da qual ninguém escapa.
Na Renascença, na perspectiva dos seus articuladores protestantes, a virada dos tempos é, porém, ainda, algo promissor, um horizonte que carrega consigo a noção de esperança e que leva a disposição de responder na altura do desafio: “... e nós mudamos com os tempos”. No caso das primeiras gerações de protestantes, cujas lideranças não poucas vezes eram formadas por religiosos católicos, essa mudança incluía a mudança confessional. Demonstramos pela análise iconográfica do emblema de van Veen, que ele procura reafirmar a temporalidade da antiguidade e da época medieval, inclusive, por um movimento renascentista, a valorização da antiguidade e das suas referências. Nesse caso, porém, não leva a uma articulação moderna do mundo e da temporalidade moderna, mas, à reafirmação do mundo pré-moderno por meio de uma releitura iconográfica. Em outras palavras: nesse caso, a pictura “corrige” o significado original da inscriptio. Van Veen confirma isso pelo seu subcriptio, que porém, no caso dos azulejos, falta. Esta ausência deixa automaticamente mais espaço para a imaginação do próprio observador que lida somente com o lema e a imagem. Abre isso, também, o espaço para a possibilidade de que os próprios franciscanos, no momento em que eles encomendaram estes azulejos, queriam também fazer uma releitura da releitura, valorizando, por exemplo, de novo a inscriptio no sentido de imaginar que uma virada dos tempos pode trazer mudanças positivas e não revelar, em primeiro lugar, a debilidade e pecaminosidade humana, fazendo as escolhas erradas que levam à morte? Por um lado, ao final do século 18, quando os azulejos chegaram no Brasil, a citação de Horátio por meio de van Veen aparentemente não se distancia da tradição. Mas, considerando a expulsão dos Jesuítas do Brasil no ano 1759, os tempos estavam mudando no Brasil e, em muitos casos, os franciscanos assumiram igrejas jesuítas. Considerando, além disso, que essas mudanças ecoaram ideias iluministas, mesmo que no formato de um despotismo esclarecido de uma monarquia absolutista, podemos ou devemos interpretar a frase subordinada “e nós mudamos com os tempos” nesse contexto, já que os jesuítas eram também considerados os representantes mais militantes da reforma católica? Em comparação a eles, os franciscanos fizeram parte dos movimentos medievais da reforma da igreja católica. Ou seja, eles tinham uma história de reforma bem antes da reforma protestante e da reforma católica, e introduziram na época medieval novidades na igreja. Pode ser, que a frase tenha ganhado, na época, mais uma virada no tempo, frente a chegada de ideias de um estado mais moderno, um novo significado, ou um significado modificado.
Em termos iconográficos e iconológicos, representam os azulejos com a inscriptio Tempora mutantur, et nos mutamur in illis um fascinante exemplo de um emblema cuja pictura proposicionalmente relê o significado original dessa inscriptio. Além disso, levantamos a pergunta se, eventualmente, o uso desse emblema no Brasil, cerca de 170 anos depois da sua criação ao redor de 1607, mantém essa releitura ou já sinaliza uma outra interpretação, uma abertura ou até uma concordância com a virada de tempo, ocorrida na época da sua instalação no Brasil.
Como contexto maior entendemos que, além das diferenças políticas e confessionais, a inscriptio Tempora mutantur, et nos mutamur in illis, originalmente representa uma reação a uma mudança de temporalidade e sua aprovação. Para isso nos apropriamos das categorias da aceleração do tempo de Hartmut Rosa que localiza na época da Renascença uma virada da temporalidade da regência do passado sobre o presente, articulada pela tradição, para a regência do futuro sobre o presente, inspirada pelo pensamento utópico, promovido pelo desenvolvimento e a reforma contínuas, por exemplo, da instituição igreja. Nessa perspectiva, as confissões religiosas envolvidas na criação e o uso do lema, no caso, os luteranos, reformados e católicos, interagem em boa parte com as consequências da mudança da temporalidade, todos, aliás, relendo do seu jeito a máxima renascentista de voltar ad fontes. Pelo lema, interpretam luteranos e reformados a virada dos tempos positivamente e se projetam como à altura desse novo tempo. Já a primeira releitura católica procura reestabelecer o alerta estoico da mudança como decadência em potencial.
Mas nossa pergunta era se esse emblema no Brasil, eventualmente, adquiriu mais uma vez um outro significado. De fato, há prós e contras em relação a isso, e se for o caso, certamente, foi de forma mais sutil do que direta. Contra a ideia de uma releitura da releitura fala a importância e reprodução exata da pictura original que visualiza o abandono da ideia e do contexto original da inscriptio. Também pode se alegar que nos dois locais onde os azulejos foram instalados, em Salvador e Olinda, as instituições franciscanas tinham sido destruídas por Holandeses, no caso, reformados. Seria altamente incompreensível introduzir nesses lugares reconstruídos uma ideia protestante que articula justamente a diferença confessional. Por outro lado, era o final do século 18, já não mais tanto marcado pela diferença confessional, mas, pelo avanço do mundo moderno em termos econômicos e políticos. No impacto sobre o Brasil, os franciscanos levaram a vantagem sobre os jesuítas (o que talvez, também seja documentado pela sua capacidade de reconstruir os seus prédios justamente depois da expulsão dos jesuítas). Em tudo, fica a importância de integrar nos estudos da religião os estudos de impacto das temporalidades sobre as religiões. E, nesse caso, os estudos da cultura visual religiosa podem ajudar na sua articulação.
Um último comentário: em 1889 o pintor gaúcho Pedro Weingärtner (1853-1925) apresentou uma cena da colonização do Rio Grande do Sul retratando um casal de imigrantes alemães ocupados com o desmatamento de seu lote recebido, para preparar a terra para a plantação. Ele chamou essa obra Tempora Mutantor.[22] A obra regionalista que integra elementos dos estilos romântico e realista, retrata, em primeiro plano, um único casal cansado, em segundo, a terra preparada e árvores cortadas, em terceiro, duas simples casas e, em quarto, uma floresta imensa, verde e intacta. A obra foi comprada pelo governo do Estado de Rio Grande de Sul e permanece desde então no Palácio Perantini, a sua sede. É a única obra de arte brasileira com esse título, segundo o nosso conhecimento e foca nos desafios enfrentados na fase inicial da imigração de alemães e italianos. O título retrata que o lema ainda no final do século 19 era conhecido e traz consigo a ideia da necessidade de mudar com as circunstâncias dos novos tempos da colonização. Prevaleceu, então, nesse caso, parcialmente o significado original, porém, no sentido crítico de uma piora: nesse caso, não por uma falta de virtude, mas, pelas condições da vida.
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Figura 11: Pictura do emblema. [Bartolomeu Antunes de Jesus]. Azulejo “Os tempos mudam, e nós mudamos com eles “. In: Claustro do Convento de São Francisco, Salvador, Baihia, [174?]. |
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Fonte: Fátima Nader Simões Cerqueira (2009, p. 47). |
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[1] No monastério de São Francisco em Salvador de Bahia, existe uma segunda coletânea de trinta e sete painéis baseadas em Otto van Veen (cf. WESTSTEIJN, 2005, p. 125-145). Salvo engano nosso, as duas nunca foram comparadas.
[2] A barra sinaliza a mudança da linha do texto no painel.
[3] Observações detalhadas em relação a essa tradução comum, especialmente em relação a forma passiva dos verbos, veja mais para frente.
[4] J.M. dos Santos Simões (1965, p. 129 apud. THIJS, 2005, p. 12) sugere entre 1746 e 1750 para a série de Salvador.
[5] Refere-se ao poeta romano Quintus Horatius Flaccus (65-8).
[6] Além disso, falamos das obras Amorum Emblemata (1608) e Amoris Divini Emblemata (1615).
[7] Enenkel (2019, p. 366) menciona três edições dessa versão espanhola: 1669, 1701, e 1733.
[8] Uma apresentação detalhada da edição de 1612, com uma reprodução digital de todas as páginas, como uma classificação iconológica (iconclass) de seus elementos visuais principais veja a página do Emblem Projekt Utrecht, Holanda. Disponível em: https://emblems.hum.uu.nl/va1612085.html#top. Acesso em: 1 ago. 2021.
[9] Veja o título da importante edição francesa de Marin le Roy de Gomberville (1600-1674): La doctrine des Moeurs, tirêe de la philosophie des stoïques.
[10] Segundo Martin Knauer (1997, p. 102) essa inovação na representação de Chronos por van Veen como “homem barbudo, forte e musculoso de idade média” se tornou em seguida dominante durante o século 17.
[11] “Pai do tempo” se usa na classificação iconológica iconclass onde tem o número 23A1. Em alemão se refere a “Alten Vater Zeit” e no inglês a “Old father time”. Pelos atributos da gadanha ou do alfanje Chronos é, às vezes, confundido com a morte. Na iconografia clássica, a morte é sempre um esqueleto. Originalmente Chronos segurava uma foice, instrumento da castração de Uranos.
[12] Ela aparece nos seguintes emblemas: n. 20 - “Philosophia vitæ magistra”, n. 24 - “Habenda in primis animi cura”, n. 76: - “A musis æternitas”, 81 – “Tempera te tempor”, n. 82 - “Tempus rite impensum sapiens non revocat”, n. 91 – “Quid enim velocivs ævo” e n. 92 – “Æternum sub sole nihil”. Também aparece no emblema n. 191 – “Mens immota manet“ - da sua obra Amorum Emblemata de 1608.Quanto à sua presença em nosso emblema, surpreende que no Emblem Project Utrecht se fala somente de uma alegoria “do tempo”, em vez do “Pai do tempo”.
[13] Com isso, identificamos um vício a mais dos que constam na lista dos vícios mencionados na página do Emblem Projekt Utrecht.
[14] Cerqueira (2009, p. 48) fala de virtudes, o que é impreciso, mas, demonstra a dificuldade de interpretação de uma pictura somente acompanhada pela inscriptio.
[15] Apostila alemã: uma breve e útil interpretação sobre todos os dias de festa e celebrações comuns dos santos em todo ano.
[16] Apresentamos aqui dados biográficos informados por Rudolf Brázdil e Oldřich Kotyza (1999, p. 47-51).
[17] Talvez seja somente um por acaso, mas, a frase encontra-se hoje em dia especialmente em publicações do campo da medicina.
[18] O foco na necessidade ou na possibilidade depende também da tradução. O verbo mutare que aparece no lema duas vezes, sempre mantém o plural presente passiva, primeiro na terceira (eles = os tempos) como na primeira (nos) pessoa. A tradução literal é então: “Os tempos são alterados, e nós somos alterados com eles”. Mas este aspecto passivo não prevaleceu como as traduções nas edições de obra de van Veen documentam: “Mundanse los tempos, y nosotros com ellos (cf. a figura 4), da edição espanhola de 1701. Na edição de 1683 lemos: “Les temps changent, et nous changeons avec eux”;
[19] Literalmente, refere-se aqui somente aos pais e não às mães.
[20] Diferente do que a edição de van Veen, a versão espanhola conclui: “Viendo la instabilidad,/ Huvo bastante razón,/ Que con el tiempo y la edad / Muda el Hombre de passion”.
[21] No alemão usa-se tanto Realität como Wirklichkeit, muitas vezes, como sinônimos. Entretanto, a primeira palavra se refere àquilo que pode ser medido, inclusive, cientificamente. A segunda palavra articula seu efeito percebido de forma subjetiva.
[22] Mais informações sobre o pintor apresentam Cyanna Missaglia Fachesatto (2015, p. 198-212), e dois artigos na revista 19&20 de Ana Maria Albani de Carvalho (2008, [s.p.]) e Vivian S. Paulitsch (2008, [s.p.]). Somente a primeira menciona a obra em questão, mas, não reflete sobre o seu título.
[23] Uma versão existe também na Biblioteca Nacional do Brasil em Rio de Janeiro. Disponível em: < http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or311574/or311574.pdf >. Acesso em: 20 jul. 2021.