A sinagoga das mulheres: Análise Histórico-Crítica Feminista de Atos 16,11-15.40  
The synagogue of women A feminist and critical historical analyze of Apostle Acts 16,11-15.40  

Ivoni Richter Reimer*
Haroldo Reimer**
*Doutora em Ciências da Religião/Teologia pela Universität Kassel. Pósdoutorado em Ciências Humanas (UFSC). Docente no Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da PUC Goiás. Contato: ivonirr@pucgoias.edu.br 
**Doutor em Teologia pela Kirchliche Hochschule Bethel. Pós-doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor na Universidade Estadual de Goiás (UEG). Contato: haroldo.reimer@gmail.com 

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Resumo:

Realizamos uma análise histórico-crítica feminista de Atos dos Apóstolos 16,11-15.40. Escolhemos tema e objeto pelas suas especificidades semânticas, como indícios para adentrar o mundo do texto, o protagonismo de Lídia na missão paulina e a história interpretativa eurocêntrica e patriarcal. Observamos a estrutura de Atos, seu gênero literário, sua origem e objetivo, conjunto no qual caracterizamos essa perícope do ‘Fragmento Nós’ como gênero literário de missão e fortalecimento eclesial. Sua característica literária testemunhal justifica o uso de hapaxlegomena oriundos do contexto histórico-social, ao qual a compilação final se manteve fiel. Trabalho heurístico e hermenêutica feminista possibilitaram reconstruir parte da história das origens da igreja na Macedônia a partir da missão paulina realizada na sinagoga de mulheres em Filipos. A liderança de Lídia com o grupo de mulheres na produção manufatureira e na vivência da fé judaica continuou na igreja em sua casa, após sua declaração teológica e o batismo dela e seu grupo. Compreendemos as especificidades do texto em seu contexto literário e histórico, sociocultural, geopolítico e econômico, sua significação teológica em Atos e sua contribuição para fortalecimento de mulheres e homens também hoje. O artigo pode ampliar aspectos epistemológicos, metodológicos e teológico-eclesiais por meio da análise crítica libertadora interdisciplinar. 

Palavras chave: Literatura e teologia em Atos 16; Lídia; missão paulina; método histórico-crítico; hermenêutica feminista de libertação 

Abstract

We realize a critical historical exegetical exercise on the text of Apostle Acts 16,11-15.40. The object has been selected because its semantic specifities are clues to enter the world of the text, the protagonism of Lydia in the Pauline mission and the interpretative history usually eurocentric and patriarchal. We do observe the global structure of the book, its literary gender, its origin and goal, and we define this pericope of the ‘we-fragment’ as a literary gender of mission and ecclesial enpowerment. Its literary characteristic justifies the use of hapaxlegomena coming from the social and historical context to wich the the final compilation of Apostle Actskeeps itself faithful. Heuristic work and feminist hermeneutic enables to reconstruct a part of the history of the beginnings of the church in Macedonia starting from the Pauline mission in the synagogue of women in Phillipi. Lydia’s leadership together with the group of women manufacturing textile products and living the jewish Faith remains in the church gathered in her house, even after her theological tatementand the baptizing of the group of her house. We try to understand the particularities of the text in its literary, historic, social, cultural, geopolitical and economical context, its theological meaning in context of the Apostles Act and its relevance to strength the struggle of women and men today. The article may enlarge epistemological, methodological and theological perspectives on the basis of a critical and liberating textual analyse.  

Keywords: Literature and Theology in Apostle Acts 16; Lydia; Pauline mission; critical historical method; feminist hermeneutic of liberation 

Introdução 

Este estudo exegético e literário de Atos dos Apóstolos 16,11-15.40 busca ser uma contribuição para ampliar os horizontes para a compreensão do texto em seu contexto literário e histórico-social maior. A partir de abordagem heurística e de perspectiva pautada teoricamente pela hermenêutica feminista da libertação, busca-se também ressaltar a probabilidade histórica da existência de uma sinagoga de mulheres junto ao rio na cidade macedônica de Filipos. Com base no gênero literário da perícope e de seus hapaxlegomena somos desafiados a adentrar os indícios para compreender seu significado para a história de mulheres no contexto histórico e sociocultural do mundo do texto. No conjunto, concentramo-nos na análise para entender o trabalho realiza-do pelas mulheres, o espaço no qual estavam reunidas por ocasião da ação missionária paulina, bem como o significado teológico da confissão de Lídia e do batismo dela e de sua casa, e o sentido mais amplo do termo ‘casa’ neste texto.

A exegese histórico-crítica e social de um texto bíblico1 consiste de um conjunto de passos metodológicos que serão exercitados a seguir. Problema e pergunta centrais se resumem em como melhor compreen-der a atuação de Lídia e seu grupo de mulheres em termos econômicos, religiosos e político-sociais, bem como a atuação de Paulo e Silas junto a esse grupo, num espaço específico na colônia romana de Filipos. Para melhor oferecer resposta(s) a essa questão, perpassamos o trabalho heurístico com perspectivas da hermenêutica feminista de libertação. A partir de indícios textuais e com base no gênero literário próprio da pe-rícope, realizamos a análise semântica com recurso da intra-, inter- e extratextualidade para compreender o texto em seu contexto sócio-histó-rico. O texto grego nos forneceu os elementos para a análise necessária, tecida com base em pesquisa bibliográfica e inscricional, o que permitiu observar também a história interpretativa do texto. Nela, também perce-bemos que o método para construir um processo de compreensão não prescinde da decisão epistemológica, ideológica e hermenêutica. 

A estrutura do artigo segue alguns principais passos do método his-tórico-crítico, destacando, no seu desenvolvimento, os referenciais teóricos necessários, bem como os resultados em construção e alcançados. Com o resultado alcançado queremos contribuir com estudos e aborda-gens interdisciplinares da relação entre literatura sagrada, história e te-ologia, com base epistemológica construída dialogicamente com outras áreas de conhecimento e de maneira crítica construtiva.

1. Tradução inicial de Atos 16,11-15.40

Para a primeira tradução literal do texto, tomamos por base o Novum Testamentum Graece, na 27.ed. de Nestle e Aland (2001) e o dicionário de Taylor (2000), juntamente com os conhecimentos linguísticos adquiri-dos ao longo dos anos. Propomos o seguinte:

11 Ora, tendo partido de Trôade, percorremos em curso direto para Samotraque; no dia seguinte, para Neápolis 12 e dali para Filipos, que é primeira da par-te da Macedônia, cidade, colônia. Ora, estávamos nesta cidade, permanecendo alguns dias. 13 E no dia dos sábados, saímos fora da porta perto do rio, onde pressupúnhamos uma proseuché; e tendo nos senta-do, falávamos às mulheres que estavam reunidas. 14 E uma mulher com nome Lídia, porfyrópolis da cidade de Tiatira, temente a Deus, ouvia; dela o Senhor abriu o coração, para estar atenta às coisas faladas por meio de Paulo. 15 Como, porém, foi batizada e a óikos dela, admoestava, dizendo: “Se julgastes que eu sou fiel ao Senhor, tendo entrado em minha casa, permanecei”. E nos forçou. [...] 40 Ora, saindo da prisão, entraram para a [casa de] Lídia e vendo, admoestaram os (as) irmãos(ãs) e saíram.

O texto apresenta dois hapaxlegómena do Novo Testamento, que dificultam a tradução e por isto merecem destaque: a) o termo porfyró-polis, que será analisado nos itens sobre redação, historicidade e con-teúdo; b) o termo proseuché que, apesar de aparecer em vários textos no Novo Testamento (ver At 1,14; 2,42; 3,1; 10,4; 12,5; 16,13.16), tam-bém será ali analisado. Para esses termos, usaremos a transliteração até a tradução final.

1.1. Algumas Traduções Bíblicas em Português e alguns Destaques

Selecionamos algumas versões bíblicas, com base em sua repre-sentatividade confessional: Bíblia Sagrada (BS), Bíblia na Linguagem de Hoje (BLH), Bíblia do Centenário das Assembleias de Deus (BCAD), Bíblia Sagrada, Edição Pastoral (BSEP), Nova Bíblia Pastoral (NBP), Bíblia Sagrada, Vozes (BSV), Bíblia Sagrada de Aparecida (BSA), Bíblia Tradução Ecumênica (TEB), Bíblia Tradução Brasileira: Introduções Acadêmicas (BTBIA), La Biblia ISHA (BISHA), Bibel in gerechter Sprache (BGS). A comparação entre as traduções indica para semelhanças e di-ferenças, também de significados e inclusão de termos. 

A escolha das palavras, no esforço da tradução, é significativa para interpretação e compreensão do texto, e evidencia pressupostos teológi-cos, históricos e ideológico-hermenêuticos. Destacaremos a análise de três termos: óikos (16,15), porfyrópolis (16,14) e proseuché (16,13.16), centrais para a compreensão histórico-crítica do conjunto.

 Os pressupostos acima mencionados aparecem na tradução de ói-kos para “família”, por ocasião do batismo (BSEP, BSA, BSV, BISHA), e sua representatividade maior situa-se em versões católicas. Nesse mes-mo quesito, a tradução “com os da sua casa” (NBP), “também as pesso-as em sua casa” (BGS), “e as pessoas da sua casa” (BLH) não restringe o significado ao círculo nuclear da família, o mesmo sucedendo com a tradução literal “ela e (toda) a sua casa” (TEB, BCAD, BS). As duas últi-mas traduções têm sua maior representatividade protestante, evangélica e ecumênica. Há de se perguntar em que implicam e o que pressupõem essas traduções. Seria uma forma de maior ou menor literalidade e fi-delidade ao texto? Ou trata- se de expressão de sua própria doutrina e, assim, as traduções atuam mais no campo político do que heurístico?

O segundo termo - porfyrópolis - é traduzido por “vendedora de púr-pura” (BS, BCAD, BSV, BTBIA), “comerciante de púrpura” (BSEP, TEB, NBP), “negociante de púrpura” (NSA), “vendedora de lãs purpúreas” (BGS) e “vendia roupas finas” (BLH), “vendia tecidos finos de cor pur-púrea” (BISHA). Todas as traduções pressupõem que se trata de venda, comércio, negócio de púrpura ou produtos de cor purpúrea. A questão que se coloca é: qual teria sido a base para as traduções desse hapax-legomenon bíblico? O que as traduções expressam em termos sociais, étnicos e econômicos?  

O terceiro termo - proseuché - é traduzido como “lugar de oração” (BS, BCAD, BLH, TEB, BSA, BSV, NBP, BTBIA), “onde parecia haver oração” (BSEP), “ali se reuniam os judeus para orar” (BISHA), “sinago-ga” (BGS). A maioria das traduções opta por “lugar de oração”. Apenas a GBS traduz “sinagoga” e BISHA identifica o lugar com uma prática de oração judaica. Perguntamos: visto ser esta a única vez, no Novo Testamento, em que aparece o termo proseuché como um lugar, e não como uma prática religiosa, qual teria sido a base para a tradução ma-joritária como “lugar de oração”? Quais são os pressupostos e as con-sequências dessa tradução para a compreensão do fenômeno religioso, seus lugares, suas práticas e acessibilidade? 

2. Análise textual de proseuché e óikos

A análise textual, um passo metodológico na análise histórico críti-ca, consiste basicamente em perceber se existem diferenças entre os vários manuscritos que transmitiram o texto grego e compreender essas diferenças, para, então, poder avaliar as variantes existentes e decidir--se por uma delas, como sendo a que apresenta maior probabilidade de corresponder ao texto original (WEGNER, 1998, p. 39). O pressuposto mínimo para essa análise é o conhecimento da língua grega e do apa-rato crítico que contém os sinais de alteração na transmissão de texto, as siglas dos manuscritos etc.. Para a decisão, consideram-se critérios internos (textuais) e externos (datação do manuscrito, origem, represen-tatividade regional, circulação). Aqui, analisamos apenas esses dois ter-mos, pois são centrais para nosso estudo e porque o termo porfyrópolis não apresenta nenhuma variante em seu processo de transmissão.

Para a expressão enomídzomen proseuchén (“pressupúnhamos uma proseuché” 16,13) existem três variantes, que se referem ao verbo com algumas mudanças de conjugação, mas permanecendo a mesma raiz, sendo que não afetam o conjunto de seu significado, principalmente porque nenhuma versão indica alguma mudança em relação ao termo proseuché. Para a decisão, critérios externos fazem considerar a maior fidelidade do texto alexandrino (Unciais2 ALEF, A, B, C, PSI, Minúsculas3 33 e 81) na cópia dos textos existentes, visto que o Uncial ALEF, impor-tante para Atos dos Apóstolos, e a tradução copta boáirica remetem aos séc. II-III, e são, portanto, os mais antigos e que tiveram ampla circulação na transmissão do texto4. Portanto, em se referindo à proseuché, em ter-mos textuais e sua representatividade geográfica, o texto foi transmitido unanimamente, sem tentativa de inserção ou exclusão de palavras para explicar ou apagar o seu uso e significado. Isto é relevante para a análise histórica e de conteúdo. Além dos critérios externos, também critérios in-ternos de coesão gramatical nos fazem optar pela versão transmitida por Nestle-Aland (2001): toda a perícope, que é a primeira do ‘Fragmento Nós’ em Atos5, está formulada na primeira pessoa do plural. A análise histórica e de conteúdo justificará esta escolha, por causa da dinâmica missionária do grupo paulino. A versão pela qual nos decidimos é: “onde pressupúnhamos uma proseuché” ou “onde julgávamos haver uma pro-seuché”. Este termo será analisado na crítica histórica e de conteúdo.

No versículo 15, o termo óikos, usado duas vezes, recebeu uma variante apenas em seu primeiro uso: o Uncial ocidental D e poucos outros (não mencionados), as traduções coptas nos dialetos saídico e boáirico, além da tradução no dialeto w acrescentam o termo pás (“toda”) antes de óikos: “e toda a casa dela”. Uma das características da Uncial D (séc. V-VI) é colocar palavras como acréscimos (KOESTER, 2005, p. 28), a fim de harmonizar o texto também em função de outras pas-sagens bíblicas (WEGNER, 1998, p. 43) (p.ex. At 11,14). O texto eleito por Nestle-Aland tem maior representatividade quantitativa e geopolítica, sendo que o texto alexandrino - aqui especificamente os Papiros 45 e 74, Unciais ALEF, A, B - é reconhecido como mais fiel na cópia dos originais antigos, o mesmo valendo para os Minúsculos 33, 81, 1175. Aliás, estes são os mais importantes manuscritos para a transmissão de Atos dos Apóstolos, e permitem avaliar sua qualidade e representatividade como muito boas.6 Como critério interno, valemo-nos da versão mais curta e em si clara, que serve como base para outras versões mais explicati-vas, além de questões de conteúdo, a serem analisadas mais adiante. Permanecemos, pois, com a versão: “e a casa dela”.

A análise textual dos termos proseuché e óikos demonstrou a exis-tência de variantes que, contudo, não resistiram aos critérios externos e internos aplicados. O conteúdo dos termos será analisado mais adiante.

3. Análise literária, da redação e das formas

A análise literária de um texto visa perceber a delimitação da unida-de literária, sua estrutura e as partes que a compõem, sua integridade literária e o uso de fontes literárias (WEGNER, 1998, p. 84-89, 122-126). Sua função é clarear se o texto forma uma unidade coesa. A análise da redação tem por objetivo perceber e compreender a história da redação do texto e os interesses autorais em transmitir e fixar, por escrito, narra-tivas e testemunhos. A análise da forma da comunicação por escrito se ocupa em compreender intencionalidades presentes na transmissão por meio do gênero literário, bem como o Sitz im Leben no qual a narrativa (oral e escrita) foi repetida, transmitida e ensinada, sendo ele a “situa-ção geratriz do texto”7. A análise literária e redacional observará estilo, conteúdo e a inserção da perícope no conjunto de Atos dos Apóstolos (estrutura).

Atos dos Apóstolos é uma obra com características singulares, mes-mo tendo algumas familiaridades com gêneros literários da Antiguidade. As práxeis (“obras”, “atos”) de homens famosos como Alexandre, o Grande, contavam seus feitos, com o objetivo de assegurar sua me-mória. Tais obras buscavam intervir socialmente com a construção de valores, e garantir as memórias do referido herói/líder. Penner (2003, p. 02-21) e Norelli (2015) apresentam o seguinte Estado da Questão do gê-nero literário maior de Atos:  prágmata (séc. XVII), monografia histórica e historiografia apologética (séc. XX) e epopeia (séc. XXI). As pesquisas, respeitando as divergências entre si, reconhecem que o objetivo princi-pal da obra era apresentar convincentemente, com os recursos literários e dinâmicas retóricas da época, os inícios da história do cristianismo na-quele contexto geopolítico e religioso. Central é que a narrativa, por meio do testemunho oral e da tradição, confere status de verdade histórica para seu conteúdo.8 Projeta-se um consenso de que a obra missionária é iniciada e acompanhada por Deus por meio do Espírito Santo, que con-voca e capacita homens e mulheres para o trabalho de evangelização, missão e organização de comunidades cristãs. Para a análise, optamos pela datação da escrita de Atos dos Apóstolos nos últimos anos do sécu-lo I, após a escrita do Evangelho Lucas9.

Trata-se, enfim, de uma obra literária e redacionalmente complexa, riquíssima em termos geopolíticos e em conteúdos religiosos, sendo re-comendada também para estudos de quem se interessa por gêneros literários e história da Antiguidade. O livro de Atos, como obra complexa e minuciosa, contém muitos gêneros literários menores10, como conversão e batismo, exemplos, fenômenos e visões teofânicos, oração, itinerários vinculados com ação missionária, biografia antiga etc. 

Em termos de estrutura literária, a perícope de Atos 16,11-15.40 consta no contexto da passagem geopolítica da missão paulina da Ásia Menor (15,41-16,11) para a Macedônia (16,11), no âmbito da segunda viagem missionária, logo após a narrativa e as decisões do Concílio de Jerusalém (15,22-35). O que marca essa mudança é At 16,1, e a mu-dança de cenário foi anunciada por meio de uma visão (hórama 16,9-10) ainda em território da Ásia Menor, em Trôade, cidade portuária no Mar Egeu. Em gênero literário na forma de itinerários, informa-se de que dali partiam navios que, de forma mais rápida do que a pé ou com animais de carga pela estrada Via Egnatia, passavam pela ilha de Samotrácia e atra-cavam em Neápolis (atual Kavala), marcando a chegada à Macedônia.11 Dali, pela Via Egnatia, seguia-se até Filipos, uma cidade próxima ao lito-ral. Esta, pois, é uma mudança geopolítica e topográfica importante na delimitação da perícope e na estrutura literária de Atos: a missão adentra novos espaços, outros territórios e tece relações com outros povos, ou-tras culturas, etnias e realidades.

Uma nítida diferença narrativa acontece entre os versículos 9 e 10, que se mantém até 16,18: é a mudança do uso da 3. singular para a 1.plural. Quem narra os eventos que baseiam na visão que Paulo teve, a qual fundamentou a partida imediata para a Macedônia, é a pessoa “nós”, o que será analisado adiante.

Outro elemento para a delimitação da perícope é a mudança de per-sonagens, de cronologia e de conteúdo (WEGNER, 1998, p. 86). No caso, At 15 está centrado nas discussões que conduziram ao Concílio de Jerusalém e seus resultados, e ali atuam apóstolos, presbíteros e missionários homens. Fora deste contexto, realizando aquilo que foi es-tabelecido pelo Concílio para a missão gentílica, em 16,1 aparece uma mulher anônima, mãe do discípulo Timóteo, caracterizada como “judia fiel”, casada com um grego. Aqui há indícios de casamentos mistos, cujos filhos não eram circuncidados; quando Paulo e Silas chegaram em Listra, Timóteo já era discípulo que missionava na região de Derbe, Listra e Icônio, na província romana Galácia (atual Turquia). Como vín-culo entre espaços, lugares e tempos, permanece o personagem Paulo, que faz a ligação com o Concílio, mas aparecem novas personagens: Timóteo, Barnabé e Silas, que acompanha Paulo à Macedônia. 

Geopoliticamente, a primeira grande parada missionária é Filipos, colônia romana (16,12), e “nesta cidade permanecemos alguns dias”. Aqui, ao lado de Paulo, a principal personagem é Lídia (16,14). Na pró-xima perícope narrada em “nós”, a personagem principal é a escrava pitonisa e seus senhores (16,16ss)12. Fazendo parte da moldura estrutu-ral que tem Lídia como figura central, também são acrescentados outros personagens, vinculados a autoridades (archóntes) do império romano (pretores, carcereiro, oficiais de justiça), oponentes de Paulo e Silas. 

O recurso comunicativo e o conteúdo central que fundamentou a viagem missionária para a Macedônia foi a visão, elemento literário e fenomenológico importante para o livro de Atos dos Apóstolos. Os des-dobramentos da visão e das decisões conciliares são, aqui, o anúncio do evangelho por meio de Paulo, a conversão e o batismo de Lídia e sua casa. Na construção desse conteúdo central, importantes característi-cas são tempo, lugares e práticas explicitados para apresentar Lídia e sua casa, condensadas num só versículo: dia de sábado, fora da porta/do portão da cidade, perto do rio, mulheres reunidas, falar e proseuché (16,13).

Entre 16,15-16 verifica-se mudança de lugar e de personagem: Da casa de Lídia, Paulo e Silas foram novamente para a proseuché e houve um encontro com a escrava pitonisa, que tinha vários senhores. Aqui, o assunto central é o anúncio da pitonisa (16,17) e a ação exorcística de Paulo (16,18), que termina com tumulto e consequente repressão das autoridades (16,19ss13).

Portanto, 16,11 marca especificamente a mudança topográfica da Ásia Menor para a Macedônia, sendo que Lídia e sua casa (16,14) ca-racterizam a mudança de personagens. Os espaços de referência são a cidade colônia Filipos, a proseuché e a óikos “casa” de Lídia. Em termos cronológicos, central é o sábado e os vários dias em que o grupo de missão ali permaneceu. Assim, At 16,11-15 é unidade bem delimitada, fazendo parte, porém, do conjunto maior de 16,9-40. O trabalho redacio-nal teve relevância por manter a coesão pós-conciliar, influenciando de-cididamente com o desenvolvimento das decisões ali firmadas, com des-taque à missão paulina. Este trabalho redacional pode ter contado com a contribuição de várias pessoas, de vários tempos e lugares. A compo-sição final considerou tradições, oralidades, transmissões, fragmentos escritos, comunidades com seus problemas e vocações específicas, en-fim, porta-vozes múltiplos, cujo interesse centrava no serviço das ekk-lesíai “igrejas” no testemunho do ressurreto presente nas comunidades (At 1,8-11). Criatividade e fidelidade andavam juntas nesse trabalho re-dacional, de interpretação e de testemunho elaborado (WEGNER, 1998, p. 123-24), com vistas ao convencimento e ao fortalecimento da fé e da comunhão (SELVATICI, 2005).

O gênero literário mudou significativamente em termos de quem nar-ra o que foi vivenciado (“nós”), e caracteriza uma narrativa da primei-ra conversão cristã na Macedônia. No todo, trata-se de ‘itinerário mis-sionário plural de conversão’. No conjunto de Atos, há cinco perícopes que são narradas no plural “nós”, que nomeamos de ‘Fragmento Nós’: At 16,10-17 (Filipos); 20,5-15 (Trôade); 21,1-18 (Cesareia de Filipe e Jerusalém); 27,1-37 (rumo à Itália); 28,1-15 (Malta, viagem e Roma).14 Essas perícopes podem ter atuado como testemunho praxiológico para conferir maior veracidade e legitimidade apostólico-missionárias para as ekklesíai naqueles contextos no final do século I (VIELHAUER, 2005, p. 417). São perícopes situadas na segunda e terceira viagens missioná-rias e que apresentam a missão cristã paulina e conflitos dela decorren-tes, que envolvem autoridades romanas, religiosas judaica e artemísia. Em termos geopolíticos, elas estão vinculadas ao Mar Egeu (RICHTER REIMER, 2012) e tratam de um longo itinerário, considerando-se as con-dições de viagens naquele tempo. No centro desta região estão Trôade (16,8.11; 20,5) e Filipos (16,12; 20,6), o que também pode ser indício significativo para o lugar da redação. 

O interesse redacional lucano foi registrar atividades missionárias paulinas e a fundação de ekklesíai naquela região, como expressão da ação do Espírito Santo e suas manifestações (ver At 1,8; 16,9-10). Na apresentação do itinerário missionário, foram registradas ilhas famosas da Antiguidade greco-romana, tendo como elo a comunidade no noro-este da Ásia Menor, em Trôade (ver 20,7-8). O gênero literário é um itinerário narrativo de missão e conversão, cujo Sitz im Leben está vin-culado ao trabalho missionário paulino, seus desafios, dificuldades e su-cessos, na perspectiva de Atos, bem como à divulgação dessa missão, seus sucessos e dificuldades. O contexto literário da perícope apresenta conflitos político-religiosos complexos e violentos em torno dessa ação missionária, resultando em perseguição, flagelos e prisão para Paulo, que contava com a proteção de Lídia (ver Rm 16,2 Febe) e a solidarieda-de da comunidade em Filipos (ver Fp 4,10-16). Além disso, em relação à intencionalidade redacional, é inquestionável o interesse em destacar a presença, a participação, a responsabilidade e a autonomia de mulheres no exercício de funções religiosas e profissionais. Este protagonismo de mulheres é significativo para o conjunto das atividades missionárias e eclesiais desenvolvidas nos princípios, na região macedônica.

A estrutura de 16,11-15.40 pode ser assim disposta: 

16,11-12 – itinerário da viagem missionária e permanência em Filipos 
16,13-15 – narrativa da missão e conversão da casa de Lídia 
16,14a – caracterização da personagem central, Lídia 
16,14b – caracterização da obra divina
16,15a – resultado da missão: batismo
16,15b – a fala de Lídia 
16,40 – itinerário final, conclusão

Essa estrutura permite visualizar a centralidade da ação, participação e liderança de Lídia na missão paulina, sendo ela uma das poucas mu-lheres em Atos que fala; ela tem voz por meio de sua interpelação. Para a contextualização da perícope no contexto literário estrutural de Atos, consideramos a obra, as viagens e as práticas missionárias paulinas e a existência de pessoas e suas práticas locais. Em se tratando de uma narrativa em que a centralidade de Lídia e sua casa estão focalizadas por causa do anúncio da palavra - feita por Paulo - e da abertura do coração de Lídia - feita por Deus -, consideramos também o fato de que as narra-tivas em Atos utilizam técnicas comunicativas persuasivas, existentes na época, para convencer as pessoas e assembleias acerca daquilo que era anunciado e proferido (KOESTER, 2005, p. 76). Essa técnica persuasiva, no caso, foi recíproca, funcionando na relação de Paulo com Lídia e sua casa, bem como de Lídia em relação a Paulo e Silas.

Concluindo este item, temos 16,11-15.40 como unidade literária bem amalgamada em torno dos elementos supracitados. Os detalhes que for-necem indícios e subsídios para a análise de conteúdo estão vinculados a esses elementos. Coesão narrativa, de conteúdo, estrutura e gênero lite-rário são argumentos para esta decisão em favor da unidade literária e do interesse redacional. Em termos de gênero literário menor, ela é caracteri-zada como itinerário de missão, conversão/batismo e organização de ekk-lesia com liderança local, no caso, de Lídia, a primeira mulher convertida na missão paulina em território macedônico. Entre suas intencionalidades, destacamos a referencial, que por meio de informação quer convencer e, para tal, toma por recurso literário o vocacionamento de Paulo por meio de visão, como legitimadora da missão e simultaneamente do fortaleci-mento das ekklesíai contemporâneas à escrita e divulgação do texto. O protagonismo de mulheres, representado por Lídia e o grupo de mulheres, é inquestionável e pode dar suporte à compreensão da carta de Paulo à comunidade cristã em Filipos (ver Fp 4,2; 2,1-4). A base para esta unidade literária está posta em 16,9-10 e o seu desfecho, em 16,40. A visão é o vocacionamento, o suporte e o fundamento para a atividade missionária paulina na Macedônia; o seu resultado teve êxito com Paulo e Silas junto com a casa de Lídia, e sua continuidade dependerá do que “as irmãs e os irmãos” (16,40) farão desses esforços primordiais...

4. Análise de conteúdo

A identificação do “eixo em torno do qual gravita o assunto do texto” (WEGNER, 1998, p. 260), o tema central e os subtemas, bem como a capacidade de perceber se esse eixo implica ou mapeia situações de conflitos e perspectivas de solução é a característica central nesse passo metodológico. Para descobrir esse eixo é preciso considerar o conjunto da perícope dentro da obra toda, nos elementos anteriormente analisados, para destacar o caráter sintético-integrativo das partes da perícope. Aqui faremos a análise histórico-crítica em perspectiva femi-nista de libertação (SCHOTTROFF, 2008, p. 161-225).

O eixo temático que norteia a narrativa está alicerçado no conjunto de Atos: em At 16,11-40 começa a ser realizado o objetivo central e geral de testemunhar a ação salvadora de Deus por meio de Jesus, o ressur-reto e assunto ao céu, e no poder do Espírito Santo, para todos os povos, “até a extremidade da terra” (1,8), que se refere ao mundo habitado na-quela época. Trata-se do mundo imperial romano, com os muitos povos que a ele foram anexados por meio da sua política mundial de ocupação e dominação, especificamente parte do entorno de Mediterrâneo.15 O eixo central em torno do qual essa perícope é articulada e elaborada é a proclamação do Evangelho de Jesus Cristo e a construção de novas comunidades cristãs, que, agora, ultrapassam as já conhecidas terras da Judeia, Samaria, Síria e Ásia Menor, adentrando o ‘novo mundo’, aqui a Macedônia. Com isso, o trabalho literário e redacional elabora uma historiografia teológica (NORELLI, 2015), que vincula a história de Deus e a história mundial. Ela apresenta o cristianismo incipiente como realidade histórica, não apenas restrita ao povo judeu, mas que adentra outros territórios e culturas, marcando presença também por meio de relações conflitivas com autoridades políticas, religiosas e econômicas em nível local e global (At 16,19-21; 17,5-9.13; 18,12-13; 19,23ss; 26,26; 28,22), bem como de anuência e conversão de pessoas de diversas ori-gens étnicas, socioculturais e econômicas em algumas cidades (16,34; 17,12.34; 18,8). Esta abertura à gentilidade não nega a história de Deus com o povo judeu, mas a reinterpreta para o contexto histórico no final do século I, em várias regiões no entorno mediterrâneo. 

O Concílio em Jerusalém foi decisivo para essa ‘missão mundial’, inaugurada por Paulo e seu grupo, que foram escolhidos, nomeados e autorizados pelos apóstolos, presbíteros e “toda a igreja” (15,22): Paulo, Barnabé, Judas Barsabás, Silas. Com a autoridade missionária legiti-mada pelo Concílio, Paulo escolheu novos companheiros de missão: Marcos e Timóteo (15,39; 16,1). Mulheres e homens como Priscila e Áquila (At 18,1-4.18-23; Rm 16,3-5; 1Co 16,19) também participaram da missão paulina, inclusive em viagens e lideranças eclesiais. Em Atos, Paulo figura como o fio de conexão, não pouco turbulenta, entre a his-tória salvadora de Deus com seu povo judeu e sua mesma ação por meio de Jesus Cristo e no poder do Espírito Santo, que vai configuran-do a ekklesia cristã. Ele é o “portador da continuidade [dessa história, tornando-se] transmissor da proclamação cristã comum [...] que se cha-ma ‘a doutrina dos apóstolos’, e ele o é como delegado da comunidade primitiva” (VIELHAUER, 2005, p. 431). Essa continuidade reinterpretada baseia e é garantida pela até então existente e desenvolvida ‘tradição da doutrina apostólica’, que de acordo com Atos tem origem em Jesus e chega até as ekklesíai. Por meio dela, Jesus se faz presente na atualida-de, e a missão cristã pode enfrentar os conflitos, sendo esse Paulo quem “lança a ponte para o presente, de modo que, portanto, o período após o concílio dos apóstolos desemboca no presente da Igreja sem interrup-ção histórico-salvífica” (VIELHAUER, 2005, p. 432).

4.1 Aspectos geopolíticos

Para a análise de At 16,11-15.40, no contexto literário maior que apresenta a missão paulina pós-concílio (15,30-19,20), interessa a Ásia Menor e a Macedônia (15,41-17,1) para uma aproximação geopolítica estratégica, como visto anteriormente. Uma simples observação em ma-pas antigos e atuais, disponíveis online, permite perceber a densidade das informações acerca do itinerário feito pelo grupo, com o objetivo de fortalecer igrejas criadas na primeira viagem missionária e anunciar o evangelho de Jesus Cristo em regiões ainda não alcançadas. Muitos dias de viagem foram feitos e muitos quilômetros foram trilhados via ter-restre, entre rios, montanhas e planícies férteis pela Ásia Menor, impor-tante via de acesso terrestre e marítimo entre o mundo oriental e ociden-tal, visto estar ligada a três mares: Egeu, Negro/Mármara e Mediterrâneo (RICHTER REIMER, 2012; ELLIGER, 1987). 

Naquele tempo, toda a Ásia Menor com suas províncias e subre-giões político-administrativas estava dominada pelo Império Romano. Politicamente isso significava que cada província tinha um procônsul ro-mano, vinculado ao Senado, como representante imperial. Tinha a seu serviço grande aparato militar, bem como escravos(as) que trabalhavam na produção de minério, armas, alimentos, tecidos etc.16 Assim como a Ásia Menor, também a Macedônia era uma província senatorial, e Filipos era uma de suas principais cidades, colônia romana17

Importante, no conjunto da obra de Atos e da perícope em questão, é At 16,9-10, que relata sobre ocorrido em Trôade: 

E uma visão (hórama) de noite apareceu para Paulo: Um certo homem (anér) macedônio estava em pé e cha-mando-o, disse: “Tendo atravessado para a Macedônia, socorre-nos!”. E como teve a visão, imediatamente pro-curamos sair para a Macedônia, tendo concluído que Deus nos chamou para evangelizá-los. 

Nos primeiros versículos do ‘Fragmento Nós’ são expressas três questões fundamentais: a) uma visão convocando para mudar o rumo, o que dá legitimidade ao que for feito18; b) o chamado para ir à Macedônia; c) a confirmação de que a fé cristã se abre para povos gentílicos, pos-sibilitando ou exigindo uma reconfiguração da práxis missionária. Esses aspectos remontam à centralidade do Espírito Santo na obra de Atos: por duas vezes, impediu que o grupo permanecesse na Ásia (16,6-7). Em Trôade, por meio da visão e da interpretação da mesma, ele impeliu grupo para a gradativa realização do objetivo central da obra (1,8): cruzar fronteiras desconhecidas para a evangelização, o que mais uma vez mostra a importância estratégica geopolítica, missionária e teológica de At 16,11-15.19

Alguns indícios em At 16,12-13 permitem identificar a cidade colônia Filipos20: era uma cidade do primeiro distrito da Macedônia, uma colô-nia romana, por causa de sua importância econômica e estratégica na região. Para lá foram transferidos e assentados veteranos de guerras romanas, que receberam o título de cidadãos romanos, bem como fun-cionários imperiais e religiosos, para manter a ordem da pax romana, também por meio da prática das religiões romanas.21 Esses recebiam terras tomadas da população autóctone nas guerras ou na ocupação pós-guerra. Geralmente, os funcionários públicos e os políticos eram fi-lhos desses veteranos (veja At 16,19-39). Como colônia, nela vigorava a lei romana, representando uma ‘Roma em miniatura’, onde funcionavam as instituições políticas e econômicas romanas, bem como suas expres-sões religiosas e várias construções. 

O sistema socioeconômico que vigorava no Império era o escra-vismo (ver At 16,16) (FERREIRA, 2019). Também nesse sentido, as grandes estradas eram importantes: para além do fato de terem sido construídas por escravos e para além da interconexão entre territórios e mundos, serviam de rotas comerciais, de trânsito cultural e eram usadas para atividades militares. A extração de minério era atividade manufatu-reira estatal que necessitava de mão de obra escrava, e estava a serviço principalmente do exército para a construção de armas. Filipos se tornou uma cidade, cuja beleza e fama foram difundidas por todas as partes do mundo (16,14), e para lá se dirigiam pessoas de todas as classes e etnias, também na esperança de realizar o comércio de seus produtos, bem como de propagar sua cultura, filosofia e religião.

4.2 Aspectos socioculturais

 Era dia de sábado. A menção da porta/portão do muro de Filipos e da proseuché à beira do rio (16,13a) permite adentrar um texto excepcional do Novo Testamento. O ‘Fragmento Nós’ e o uso de hapaxlegomena (proseuché como lugar e porfyrópolis como profissão) são significativos para a análise e a compreensão dessas informações, junto com as infor-mações em 16,13b.

A primeira constatação é que, em Atos, a metodologia da missão paulina é semelhante em todos os lugares: chegando a uma nova ci-dade, os missionários observam seus espaços e habitantes; no sábado buscam pela sinagoga para participar do culto sabático, e nele anunciam o Evangelho de Jesus Cristo; o grupo reunido reage, acolhendo ou re-jeitando o anúncio; acolhido, acontece o batismo e o trabalho pioneiro de organizar uma ekklesia com lideranças locais, nas suas casas (ver 13,5.14ss.42-50; 14,1ss; 17,1ss.17; 18,4.19.26; 19,8). Aqui, a descrição da localização da proseuché é minuciosa: fora do muro da cidade, per-to do rio (16,13a). É preciso buscar por extratextos para entender esta condição, pois não há nenhum texto paralelo no Novo Testamento que mencione proseuché como lugar.

As informações histórico-legais22 obtidas ajudam a explicitar e a compreender o texto: desde o século II a.C., na diáspora judaica, o termo proseuché era utilizado para a construção sinagogal. No império romano e pela legislação romana, ela devia ser construída fora dos muros da cidade, principalmente nas colônias, para além do pomerium (área de plantio de frutíferas e hortaliças) e, quando possível, por causa da cultura religiosa judaica, próximo a rio ou fonte, para facilitar ritos de purificação. Proseuché é termo técnico para designar o espaço sinagogal para rea-lização das atividades religiosas e sociais judaicas: durante a semana, era usado como albergue, hospital, escola e, aos sábados, ali eram reali-zadas assembléias (sinagogué) religiosas, os cultos sabáticos. Estes da-dos permitem compreender melhor também o termo enomídzomen em relação à existência de uma proseuché naquele espaço: por causa da legislação romana e da tradição judaica na diáspora, o grupo missionário saiu, no sábado, pela porta/portão do muro da cidade, em direção ao rio, porque seria lá que poderiam encontrar uma comunidade judaica reuni-da para culto sabático. Trata-se de realidades existentes naquele tempo e contexto maior, registradas em documentos e inscrições da época23, também contempladas em At 16,13a. Com base no exposto, concluí-mos que, em At 16,13, trata-se de uma construção sinagogal judaica na diáspora. A possível pergunta de porque Atos não teria usado o ter-mo sinagogué, comum nas outras passagens que mostram um ‘roteiro’ missionário, pode ser respondida: a) por causa do ‘Fragmento Nós’ e de seus hapaxlegómena, mantendo fidelidade com tradições locais; b) pela situação específica do adentramento em ‘novo mundo’ e numa ‘miniatura de Roma’, onde igualmente as sinagogas/proseuchái eram construídas fora dos muros da cidade, no Trastevere.24

Para corroborar a decisão de traduzir o termo por “sinagoga”, reu-nimos mais alguns argumentos textuais e intertextuais: De acordo com Atos, fazia parte da estratégia e da dinâmica missionária paulinas parti-cipar do culto sabático e, nele, fazer uso da palavra (ver 13,14.43; 14,1; 17,1.10; 18,4.26)25, o que expressa uma prática judaica comum26. Esta participação sinagogal também se evidencia pelo uso de três verbos no final de 16,13b: katídzein “(as)sentar-se” é um termo frequente na obra lucana, em grande parte usada para indicar postura de ensino (Lc 4,20 (!); 5,3; At 8,31; 13,14 (!); 16,13b (!); 18,11) e em três dessas ocorrên-cias trata-se de tomar assento em espaço sinagogal. Também o termo lalêin “falar” é frequente na obra lucana, na prática do ensino e do anún-cio da Palavra (Lc 1,19.45.55.70; 2,17.20.33.38;9,11; 24,6.25.32.44; At 2,11.31; 3,22.24; 4,1.20; 5,20; 6,10.11.14; 7,38; 8,26; 9,27.29; 10,7.44; 11,14.15.20; 13,42-46(!); 14,1-3(!); 16,13-14(!); 17,19; 18,9.25-26(!); 26,22), comum em espaço religioso. O termo synérchesthai “reunir-se”, “congregar” (em Lucas é usado apenas em 23,55 = At 1,21; At 1,6; 2,6; 5,16; 9,39; 10,27.33; 15,38; 16,13(!); 22,30; 28,17) refere-se a pessoas que se reúnem com objetivo específico, no caso, celebração religiosa.

A junção desses verbos permite compreender At 16,13b em con-formidade com a tradição e os costumes judaicos na diáspora. Em 13,42ss; 14,1ss; 17,1ss; 18,1-4.26, mulheres encontram-se reunidas junto com homens nas sinagogas em Antioquia, Icônio,Tessalônica e Corinto. Em Filipos, há uma situação distinta, pois apenas mulheres são mencionadas nessa reunião sabática sinagogal. Era comum que o grupo missionário se juntava à comunidade reunida, dela participava e anunciava o Evangelho, resultando em adesão ou negação e persegui-ção (SCHWARTZ, 2003). O extraordinário, para quem lê e interpreta At 16,13-15, é esta reunião sinagogal composta exclusivamente de mulhe-res! E aqui, no decorrer dos séculos, também se coloca(ra)m problemas interpretativos, entre eles a afirmação de comentaristas27 de que, neste caso, não poderia se tratar de uma sinagoga, porque ali só haviam mu-lheres. Argumenta-se que não havia comunidade nem sinagoga judaicas em Filipos e que, com base em texto talmúdico, ali não podia haver culto sabático sinagogal por falta de um minjan, um mínimo de 10 homens, não mencionados no texto. Sem homens, pois, não haveria sinagoga nem culto sabático... 

Os comentários que aludem a essa exigência e restrição normativa judaica baseiam no que afirmaram Strack e Billerbeck (baseados tam-bém em Krauss e Schürer), estudiosos das relações entre judaísmo e cristianismo, no final do séc. XIX e início do séc. XX. Apontamos, aqui, para uma significativa diferença entre a pesquisa de Strack e Billerbeck e do uso que deles se fez e se faz. As fontes usadas e que informam sobre a necessidade desse minjan são rabínicas, portanto, fixadas por escrito a partir do séc. II d.C. No caso do minjan, esses autores remetem a Meg 4,3; Sanh 1,6; Berakh 6b; Meg 1,3; Baraitha pMeg 1,70b, 41 e usam a tradução para o alemão “10 Personen” (10 pessoas) (STRACK; BILLERBECK, 1928/1986, p. 153). Krauss (1922, p. 100) já informara que se tratava de “10 Personen” e que o termo minjan inicialmente re-metia a toda a comunidade reunida em culto. Contudo, nas referências que comentaristas passaram a fazer dessa(s) referência(s), utilizaram indistintamente o termo “10 Männer” (10 homens)28. A tradição do minjan, portanto, não é sem problemas, nem unívoca, a começar por sua tra-dução. Bernadette Brooten (1982, p. 94-95; RICHTER REIMER, 1992, p. 111-114) abriu perspectivas novas para sua compreensão e interpre-tação: o texto talmúdico, algumas linhas adiante das mencionadas por comentaristas cristãos, informa sobre situações em que entre essas 10 pessoas poderão constar também meninos e mulheres para realizar o culto sabático!

Reunidas neste espaço não estavam quaisquer mulheres. Em 16,14a apresenta-se uma delas como seboméne tón Theón “temente a Deus”. Frequente na obra lucana, o termo caracteriza pessoas con-vertidas ao judaísmo: recebem ensino, participam das práticas religio-sas e vivem de acordo com preceitos judaicos.29 Várias passagens em Atos demonstram a adesão dessas pessoas à missão paulina, entre elas muitas mulheres (At 13,43; 16,14; 17,4; 18,7.13; 19,27; ver Lc 1,50; At 10,2.22.35; 13,16.26). Elas já conheciam e professavam a fé judaica, sabiam da promessa do Messias, viviam misericórdia e reuniam-se em comunidade, praticando a fé judaica. É por isso que, no sábado, estão reunidas no espaço sinagogal em Filipos! O destaque de Lídia indica a liderança que ela exercia nesse grupo de mulheres, assim como acon-tece com Ananias (9,10ss), Tabita (9,36ss), Maria (12,12ss), Priscila e Áquila (18,1-3.18-19).30 

Aqui investigamos mais um detalhe em 16,14a: a menção da na-cionalidade e da profissão de Lídia, no contexto deste grupo. O termo porfyrópolis é traduzido geralmente como vendedora/comerciante/nego-ciante de púrpura, o que também consta nos comentários de Atos, que imediatamente remetem à riqueza e ao luxo envolvidos com a púrpura, deduzindo que Lídia teria sido uma mulher rica e inclusive proprietária de escravos(as); teria tido uma empresa de importação e exportação de produto luxuoso, herdada de seu marido falecido...31 Contudo, pesquisas extratextuais mais recentes questionam este consenso conjetural e per-mitem que esse hapaxlegomenon abra novos horizontes interpretativos.

Richter Reimer (1992)32 apresentou resultado de sua tese que reu-niu vasto material bibliográfico e epigráfico, podendo-se concluir: a) esta profissão era muito exercida na Ásia Menor, especialmente na província Lídia, cuja capital era Tiatira, cidade natal da nossa personagem. Essa profissão era realizada por collegia purpurarii “corporações de produto-res/as e vendedores/as de tinturas e tecidos purpúreos”, que em grego eram nomeadas óikos “casa”; b) tais associações cuidavam dos interes-ses profissionais, econômicos, sociais e culturais de seus membros, o que também incluía uma religião comum e sua prática: seus membros exerciam a mesma profissão e praticavam a mesma religião, inclusive tendo garantido seu enterro; c) este trabalho implicava buscar, selecio-nar e preparar o material para a tintura, tingir fios e lãs, tecê-los em tecidos para fazer vestimentas e outros produtos, e vender os produtos feitos; d) a cor purpúrea, nessa e na maioria das regiões, era extraída de vegetais, misturados junto com urina para fixar a cor. Esta púrpura era vegetal, diferente da púrpura marítima, produzida na região de Tiro, extraída de conchas marinhas somente ali existentes e que, por isso, era um produto muito caro e raro, usados por reis, imperadores e sacerdotes. Diferente ocorria com os produtos da púrpura vegetal, feitos, comprados e usados por toda a população, inclusive escrava; d) por ser trabalho manual, exercido por pessoas migrantes de estratos inferiores, era con-siderado trabalho ‘sujo’ e indigno de ser realizado por cidadãos romanos; e) era uma profissão exercida por homens e mulheres de origem es-crava, libertos(as), que viajavam em grupos para confeccionar e vender seus produtos, portanto, migrantes. Análise onomástica evidenciou que o nome da personagem é um ethnicon, usado para pessoas escravas/libertas para identificar a região de sua origem (Lídia); f) essas pessoas geralmente moravam perto de águas, necessárias para a produção. Em Filipos, como costume no exercício dessa profissão, isso aproxima a ói-kos de Lídia à sinagoga fora dos muros da cidade, junto ao rio.Resumindo os aspectos socioeconômicos: Lídia era asiática de ori-gem, escrava ou liberta que continuava a produzir o que aprendera em Tiatira e que, junto com seu grupo de mulheres (ver At 9,36ss), produzia tinturas, tingia e fazia tecidos e vestimentas e outros produtos, comercia-lizando-os ao final. Para tal, o grupo viajava, permanecia por tempos em alguns lugares significativos para o comércio, junto a rotas conhecidas e muito utilizadas, como, no caso, parte da Estrada Real Persa e a Via Egnatia. A casa de Lídia pode ser entendida como collegium/óikos que interconectava as dimensões pessoais, sociais, profissionais e religiosas de seus membros. Não podemos saber quantas mulheres compunham esse grupo, nem por quanto tempo permaneceram em Filipos33, visto que tais trabalhos eram feitos de forma itinerante, como no trabalho manual realizado por Paulo, Priscila e Áquila (At 18,1-4). Podemos afirmar que este grupo, como muitos outros naquela época, viajava pelas estradas no Império Romano, desenvolvendo seu trabalho profissional em todas as etapas e que celebrava e divulgava a sua fé. Lídia era a líder desse grupo profissional e religioso e, portanto, sua representante legal em termos sociais, econômicos, políticos e socioculturais34. Também isso é um dado significativo para a afirmação teológico política em At 16,16, como veremos.

4.3 Aspectos teológicos, missionários e eclesiais

A visão que antecede a perícope é elemento hierofânico que voca-ciona, convoca, legitima e autoriza a práxis missionária na Macedônia: de Deus parte a iniciativa e tudo o que acontece, sendo “de peculiar im-portância quando o agir de Deus vai de encontro ao dos homens [e das mulheres]” (BERGER, 1998, p. 324). Uma visão faz parte dos sonhos, que podem ser divididos em simbólicos, oráculos e hórama, sendo esta última uma forma de “premonição direta de um acontecimento futuro” (GONÇALVES, 2003, p. 29), parte do fenômeno religioso na comuni-cação com divindades que impelia homens e mulheres à ação. Essa manifestação religiosa tem o poder de propaganda, pois legitima as de-cisões e as práticas oriundas a partir dela e “emergia como manifestação sacralizada do favor divino”35 para com quem as executava. At 16,10 afir-ma: “Depois da visão, imediatamente procuramos sair para Macedônia, concluindo que nos chamou para evangelizá-los(las)”. A visão fornece autoridade e legitimidade divinas para a práxis missionária paulina na Macedônia. Como se trata de um fenômeno conhecido pelas religiões existentes no mundo romano, esta narrativa objetiva repercutir com maior força propagandística e de credibilidade naquele ‘novo mundo’.  

Assim como na visão, é Deus o sujeito principal da ação que acon-tece entre Lídia, as mulheres e os missionários. Esta característica está expressa na afirmação “o Senhor abriu o coração” de Lídia, para que ela atendesse às coisas que Paulo anunciou ao grupo de mulheres reunido na sinagoga (16,14b-15). Após Deus ter agido no coração de Lídia, foi realizado o batismo (16,15a). 

É frequente a prática batismal em Atos, no decorrer da missão, como sinal de adesão ao que foi proclamado e de conversão à fé cristã (2,38.41; 8,12.13.16.36.38; 9,18; 10,47.48; 16,15.33; 19,5). Trata-se de sinal de compromisso e fidelidade em relação ao objeto da fé, Jesus Cristo, que Lídia então confessa como “Senhor”. Compreendemos, com base no acima exposto, que o batismo de “Lídia e da casa dela” refere--se àquele grupo de mulheres reunidas naquele sábado para culto si-nagogal sabático. A menção explícita de Lídia destaca sua função de liderança, também agora como líder da igreja que se reúne em sua casa (cf. CRÜSEMANN; RICHTER REIMER, 2016).

Este batismo é feito “em nome de” Jesus Cristo, do Senhor Jesus, pressupondo o recebimento do Espírito Santo (9,17; 10,47). É o selo da decisão, da adesão, da conversão, para lembrar em nome de quem se viverá a partir daquele momento; decisões e ações representarão a divindade em cujo nome se foi batizado(a). A primeira decisão e pro-posição de Lídia foi feita em forma de convite e determinação, e seu argumento foi a fidelidade que ela dedica ao Senhor (15b): “Se julgastes que eu sou fiel ao Senhor, então, tendo entrado em minha casa, perma-necei!”. A ação no passado (“julgastes”) indica o pressuposto da fé para realização do batismo e serve, agora, de argumento para a hospedagem na casa dela. O imperativo denota uma ordem, expressa por alguém que tem autoridade, no caso, de liderança dessa casa/igreja (1Co 16,19; Rm 16,5; Fm 2; Cl 4,15). O verbo que finaliza a ação, demonstrando que Paulo e Silas ali se hospedaram é parebiásato hemás “e nos forçou” (latim cogere “persuadir”) para fazer algo, ou seja, permanecer na casa dela. Como já demonstrado por Richter Reimer (1992), este termo é usa-do apenas duas vezes no Novo Testamento, exclusivamente na obra lucana (At 16,15b; Lc 24,29). Uma pesquisa lexiológica na Septuaginta mostrou que o mesmo termo foi usado em Gn 19,3 e Jz 19,7, no sentido de proteger os homens contra a pederastia praticada à noite em lugares a céu aberto. A análise conduz à compreensão de que este termo era usado para obrigar pessoas a se abrigarem em casas, porque quem ofe-recia hospedagem sabia dos perigos existentes e iminentes que essas pessoas corriam naquele determinado contexto. No caso de Gn 19 e Jz 19 tratava-se de pederastia. E no caso de At 16,15?

Para construir uma resposta, duas questões são centrais na fala de Lídia: a) o argumento da fidelidade/fé em relação ao “Senhor” Jesus Cristo é confissão teológica e manifestação político-ideológica naquele contexto, excluindo a possibilidade de ser fiel a algum outro senhor, no caso, ao imperador e seu sistema; b) a autoridade da líder Lídia está fun-damentada em sua fé, e o ato de “forçar” a hospedagem está permeado de argumento estratégico de enfrentamento pacífico às dinâmicas de dominação e controle por parte das autoridades imperiais, bem como do povo, que rapidamente se põe a delatar e apoiar as práticas coercitivas de controle (16,22).

A sequência narrativa dos acontecimentos que envolvem o grupo missionário em Filipos evidencia que o perigo iminente do qual Lídia queria proteger o grupo era o controle das autoridades romanas, que tinham a função de manter a colônia romana livre de quaisquer tumultos. Na permanência de vários dias na casa de Lídia e no caminho entre a casa e a sinagoga, houve um conflito de interesses, do qual resultou a ação exorcística feita por Paulo, que “em nome de Jesus Cristo” expul-sou o espírito Python da menina escrava de vários senhores (16,16-18) (cf. RICHTER REIMER, 1992, p. 162-201). Isso resultou em prejuízo econômico e social dos senhores, que se apressaram em arrastar violen-tamente Paulo e Silas à presença das autoridades romanas (16,19ss), com a denúncia de perturbação da ordem e de propaganda de costumes judaicos, que não são tolerados nem acolhidos por romanos. A hospeda-gem forçada evidencia que Lídia tinha conhecimento desse contexto imi-nentemente perigoso e queria proteger seus irmãos de fé das violências que poderiam sofrer, o que acabou acontecendo fora da proteção de sua casa (na rua, na praça e na prisão). Lídia, assim como Febe, caracteri-zada como prostátis “protetora” (Rm 16,2), oferece proteção em contexto político-legal que não admitia costumes e práticas divergentes da lei e da cultura romanas (16,20-21). A atitude de Lídia pode ser entendida como ação preventiva em face aos conflitos conhecidos e iminentes, provoca-dos por práticas religiosas que não estavam desassociadas de aspectos ideológicos e políticos (cf. STEGEMANN, 2012, p. 263-300). Assim, a perícope neste contexto literário e geopolítico maior trata de preparar teologicamente para confrontações e conflitos que serão parte narrativa central dos próximos capítulos, rumo a Roma.

No final, com vários detalhes sobre os procedimentos das autorida-des romanas em relação a quem ‘tumultua’ as relações estabelecidas em território romano, Paulo e Silas foram soltos da prisão e expulsos da colônia. Saindo da prisão, dirigiram-se até a casa de Lídia, admoestaram “as irmãs e os irmãos” (adelfói, 16,40) e partiram.

A casa de Lídia é a moldura literária e sociocultural para a narrativa da chegada da missão cristã na Macedônia. No final dessa moldura, aparece um detalhe importante: por causa do uso plural masculino adel-fói  “irmãos/irmãs” pode-se concluir que na igreja que se reunia na casa de Lídia não mais participam apenas mulheres, mas também homens. É provável que nos dias de permanência de Paulo e de Silas, as ativida-des missionárias também realizadas pelas mulheres batizadas tenham resultado na conversão e batismo de mais pessoas, também homens e, por isso, agora se utiliza o termo adelfói.36  

Importante é destacar ainda que a primeira igreja doméstica no ‘novo mundo’ descortinado por meio de uma visão foi constituída em solo ma-cedônico que, na Antiguidade, não fazia parte da Europa. É equivocado o senso comum exegético que afirma que Lídia teria sido a primeira cris-tã em solo europeu, a primeira cristã europeia, uma mulher rica.37 Ora, no contexto geopolítico do texto, Filipos não fazia parte de ‘Europa’ ou de Grécia, e Lídia era asiática, migrante e trabalhadora. Sua casa serviu de base para abrigo do grupo missionário paulino e para construção da primeira igreja que se reunia na casa de mulheres.

Esta perícope é excepcional no Novo Testamento. Ela atesta a exis-tência de situações fronteiriças, diferente daquilo que se tem aprendido e ensinado em cursos de Teologia: Lídia é líder de um grupo de mulhe-res que tinham a mesma profissão e professavam a mesma fé, primeiro judaica e então cristã; existiam grupos de mulheres que compunham e lideravam comunidades sinagogal e eclesial; a fé judaica e cristã tinha o poder de criar grupos que se organizavam como sinagoga e igreja para acolher e proteger pessoas que corriam riscos frente à situação de controle e dominação romana; o fundamento de tal instituição é Deus, que abre perspectivas por meio de visões e acompanha a missão por meio de sua Palavra, abrindo corações e mentes para se tornar Vida em comunidade, em todas as dimensões religiosas, sociais, políticas e pro-fissionais; mulheres circulavam em todos os espaços de poderes e fa-zeres, domésticos e públicos, nas casas, estradas e mares; elas enfren-tavam dificuldades, conheciam os perigos e se colocavam a serviço de vidas que corriam riscos, porque se declaravam fiéis a Deus em Cristo, o Senhor. Atos 16,11-15.40 testemunha que, desta forma, Lídia e seu gru-po de mulheres também agiam no poder do Espírito Santo, ruah divina. 

5. Tradução final

Após desenvolvermos a análise exegética histórico-crítica em pers-pectiva feminista de At 16,11-15.40 e termos tomado decisões acerca do significado de hapaxlegómena que aparecem no texto grego, concluí-mos o estudo com a seguinte tradução:

11 Ora, tendo partido de Trôade, navegamos rumo à Samotrácia e, no dia seguinte, para Neápolis, 12 e dali para Filipos, que é a primeira cidade de uma região da Macedônia, uma colônia. Ora, permanecemos alguns dias nessa cidade. 13 E no sábado, saímos pelo portão do muro da cidade para perto do rio, onde julgávamos haver uma sinagoga. E tendo nos assentado, falávamos às mulheres que estavam reunidas. 14 E uma mulher com nome Lídia, produtora e vendedora de produtos de púrpura, da cidade de Tiatira, temente a Deus, ouvia; o Senhor abriu-lhe o coração para compreender o que era anunciado por Paulo. 15 Ora, assim que ela e as mulheres foram batizadas, ela admoestou, dizendo: “Se julgastes que eu sou fiel ao Senhor, tendo entrado em minha casa, nela permanecei!”. E ela, persuasivamente nos forçou a isso. [...] 40 Ora, saindo da prisão, foram até a casa de Lídia, e tendo visto as irmãs e os irmãos, adomoestaram-nas(nos), e partiram.

Conclusão

Apresentamos alguns resultados da análise exegética de Atos 16,11-15.40, realizada com base no método histórico-crítico, fazendo-o em perspectiva feminista de libertação. Perscrutamos o texto em seu con-texto literário, histórico e sociocultural. Buscamos demonstrar, passo a passo, como o método contribui para o descortinamento e compreensão do texto, destacando sua relevância para a análise textual, redacional, literária e histórica. Esse procedimento, na medida em que o método convida a adentrar o texto para compreender o mundo em que foi es-crito, abre horizontes interpretativos e teológicos, pois situa o texto em seu contexto religioso, geopolítico, econômico e sociocultural. Científico, contribui para compreender o texto, sem aprisioná-lo a uma ‘verdade’ preestabelecida, geralmente de cunho dogmático e sobreposta ao texto. Contudo, o trabalho metodológico científico não prescinde da decisão hermenêutica e teológica no processo da interpretação, porque, mesmo descobrindo o mundo do texto a partir de indícios que se revelaram deta-lhes exegéticos significativos, a opção da(o) exegeta ainda pode retroce-der aos pressupostos desenvolvidos em determinado contexto histórico--teológico, afirmando-os mesmo contra o texto e seus descortinamentos possibilitados por meio do método histórico-crítico. Isto ficou evidente na análise do termo proseuché e porfyrópolis, quando se observou o Estado da Questão nos comentários. Contra todas as fontes e evidências epigrá-ficas e textuais, a maioria de exegetas afirma não poder tratar-se, p.ex., de uma sinagoga, porque ali só havia mulheres, o que seria impossível no judaísmo, e que Lídia teria sido uma mulher rica, que trabalhava no negócio de importação e exportação da luxuosa púrpura. Ao contrário, a análise demonstrou que At 16,13 deve ser agregado às fontes e aos estudos extrabíblicos como sendo historicamente relevante e concorde com o uso desses termos no contexto da diáspora judaica no mundo mediterrâneo. Com isto, temos uma única fonte no Novo Testamento que corrobora com percepções e experiências registradas em textos talmúdi-cos, inscrições e estudos arqueológicos no sentido de evidenciar a pos-sibilidade histórica da participação e liderança de mulheres em espaços sinagogais e eclesiais, bem como sua atuação na produção e venda de manufaturas, para o que também viajavam pelo mundo. Considerar essa fonte como tal vai depender da opção hermenêutica, teológica e ecumê-nica, e não metodológica. Aqui o fizemos heurística e politicamente, com método histórico-crítico e a perspectiva feminista de libertação.

Portanto, nesse estudo foi possível perceber que o método histórico--crítico é um instrumento que contribui para a obtenção de um resultado científico, mas também que o mesmo não é livre de decisão hermenêuti-ca. Desse conjunto resulta a interpretação e sua divulgação em práticas de ensino em várias instâncias de construção de conhecimento teológico e afins. O dilema entre a política e a heurística não está resolvido, mas com a análise de At 16,11-15.40 ficou muito evidente que grande parte de exegetas comentadores de textos bíblicos é também refém de suas opções ideológicas e que, especificamente, em suas conclusões, histo-ricamente deixou-se conduzir por questões restritivas em termos de gê-nero, de classe e de etnia, que foram sobrepostas ao trabalho exegético. 

O método histórico-crítico foi sendo forjado e aplicado em meio a conflitos e tensões de ordem institucional. O dilema continua no pre-sente não só do ponto de vista dos seus críticos, mas também de seus usuários(as). O que aqui realizamos pode abrir portas e horizontes para um mais significativo conhecimento histórico e crítico de nossas próprias tradições, em atitude ecumênica com tradições das quais também nós procedemos. 

 

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Notas

[1]  Para estudo da história e do desenvolvimento desse método exegético, recomenda-mos a leitura do dossiê “Métodos Histórico-Críticos de Interpretação Bíblica: avaliação e perspectivas” em ESTUDOS TEOLÓGICOS (2019)

[2]  Uncial é o termo dado para os códigos/manuscritos gregos escritos em letras maiúsculas, escritas sobre pergaminho, sendo que os mais antigos são do século IV. Ver Nestle-Aland (2001, p. 16*-22*, 684-720) 

[3] Minúsculos é o termo que se refere aos manuscritos gregos escritos em letras minúsculas, datados a partir do século IX. Conferir a mesma referência da nota anterior. 

[4] Acerca desses critérios, ver Paroschi (2010, p. 84). Em relação às características do texto ocidental, ver Vielhauer (2005, p. 411-413) e Wegner (1998, p. 43).    

[5] Acerca disto ver no item da Análise Literária e da Redação, abaixo. 

[6] Apresentação e informações acerca dos manuscritos e das traduções, ver em Koester (2005, p. 23-34).   

[7] Este Sitz im Leben não é sinônimo de ‘contexto da escrita’, mas pressupõe o uso de seu conteúdo transmitido em forma oral e escrita, seja na missão, na catequese, nas disputas entre diferentes grupos missionarios e evangelísticos etc. (WEGNER, 1998, p. 172). 

[8] Este assunto é trabalhado em Byrskog (2003, p. 257-284), Richter Reimer (1992/1995). 

[9] Propostas de datação, autoria e lugar de redação, ver em Richter Reimer (1992/1995), Penner (2003), Norelli (2015), Vielhauer (2005) e Koester (2005), entre outros. 

[10] A este respeito, ver Wegner (1998, p. 183-218), Berger (1998, p. 76-78, 280-289). 

[11] Ver acerca do itinerário e das vias marítimas e terrestres em Richter Reimer (2012) bem como o mapa em https://www.jw.org/pt/publicacoes/biblia/nwt/apendice-b/mapa-expansao-do-cristianismo/ 

[12] Análise desta perícope, ver em Richter Reimer (1992, p. 162-200), com bibliografia 

[13] Exegese e interpretação dessa narrativa, ver em Richter Reimer (2012). 

[14] Detalhes ver em Vielhauer (2005, p. 415-423) e Koester (2005, p. 52-55). Acerca desse ‘Fragmento Nós’, temos estudo em andamento. 

[15] Recomendamos (re)ler Wengst (1991), que elabora com material bibliográfico e documental as várias dimensões do sistema de dominação romana. 

[16] Informações básicas ver em Wengst (1991), Schottroff (1994, p. 122-129) e Funari (2010, p. 81-110). 

[17] Conferir em Plinio (Nat.Hist. V, 124) apud Elliger (1987, p. 24) e Richter Reimer (1992/1995). 

[18] Ver a esse respeito Gonçalves (2003). Aqui não é nosso objetivo analisar especificamente esta passagem, mas a consideramos por causa do contexto literário e objetivo geral da obra de Atos.  

[19] Informações sobre importância estratégica das antigas estradas Via Egnatia e Estrada Real Persa para a conexão das regiões em torno dos três mares, ver Elliger (1987, p. 45), Richter Reimer (2012). 

[20] As informações aqui resumidas foram extraídas de vários estudos, entre eles Elliger (1987), Richter Reimer, 1992/1995), com referências. 

[21] Sobre esse contexto e ações, ver especialmente Wengst (1991), Elliger (1987), Funari (2001) e Arens (1997, p. 106). 

[22] Pesquisa detalhada sobre isto, ver em Hengel (1971), Richter Reimer (1992/1995), Brooten (1982). Alguns comentários também reproduzem esses estudos, sendo que há um consenso em relação à questão histórico-legal para a compreensão do termo pro-seuché. O dissenso está na interpretação do dado obtido, como veremos mais adiante.

[23] Ver detalhes em Brooten (1982) e Richter Reimer (1992/1995) com muita bibliografia. 

[24] Muita informação acerca das condições legais para a construção de proseuchai “sinagogas” na diáspora, especificamente em Roma, e a base documental e inscricional, ver Lampe (1989). 

[25] O mesmo também está registrado em Lc 4,16-21, no caso, com Jesus. 

[26] Comentários e fontes ver Strack; Billerbeck (1928/1986. p. 153-188). 

[27] Estado da Questão/da Arte, ver em Richter Reimer (1992/1995), o que desde então não mudou muito para além dos esforços de análise exegética feminista. Ver recepção positiva desse conhecimento em Stegemann e Stegemann (2004, p. 295- 295,434,437,447 p.ex.) 

[28] Representativamente referimos Roloff (1981), que também tem ampla adesão nos comentários e nos estudos de Teologia no Brasil, como p.ex., Comblin (1987). Informações e estado da questão até final do séc. XX, ver Richter Reimer (1992/1995). 

[29] O tema em questão é tratado detalhadamente em Hengel (1971). Sebómenoi e fobúmenoi ton Theón são duas categorias de pessoas convertidas, mas que não aderem completamente às práticas judaicas, como, p.ex., para homens, a circuncisão. Diferente é o caso dos prosélytoi, que aderem completamente ao judaísmo. 

[30] Acerca da liderança de mulheres e sua menção à frente de igrejas domésticas, ver Crüsemann; Richter Reimer (2016), com bibliografia. 

[31] Veja-se, representativamente, Roloff (1981). 

[32] A tese foi publicada em forma de livro, em alemão por editora comercial, traduzido para o inglês em 1995, pela Fortress Press. Esta pesquisa tem repercussão internacional, sendo citada em várias obras de nosso tempo, p.ex. em Schottroff (1994); Stegemann; Stegemann (2004), Richard (1998). 

[33] At 20,1-6 menciona outras visitas do grupo missionário às igrejas na Macedônia, também em Filipos, sem, contudo, informar detalhes. O apóstolo Paulo, em sua carta à comunidade cristã em Filipos, tampouco menciona o nome de Lídia, mesmo que semanticamente haja semelhança entre o nome Lídia e Evódia (Fp 4,2). Independentemente disso, a carta testemunha que mulheres eram ativas participantes e líderes da comunidade, e sua relação afetiva de Paulo com a comunidade era inquestionável. 

[34]  Era comum na Antiguidade referir o nome de líderes desses grupos profissionais entre homens. Temos, aqui, um raro e rico exemplo de que também mulheres eram representantes de tais grupos e participavam ativamente da vida pública. Ver vários exemplos para isso em Pomeroy (1985), Schottroff (1994; 2008). 

[35] A citação é de Gonçalves (2003, p. 31), que se ocupa em analisar a legitimação das ações políticas de detentores do poder no Império Romano por meio das narrativas oníricas. Como também nessas situações, os sonhos e visões são causados por divindades. 

[36] Sobre a questão da linguagem androcêntrica, ver Schüssler Fiorenza (2009, p. 132- 133). Ver também Richter Reimer (2019), que trata do silenciamento e da invisibilização de mulheres no início da igreja em Jerusalém, de acordo com Atos 1. 

[37] Uma rápida olhada nos comentários bíblicos evidencia este senso comum. Partese do pressuposto da moderna geopolítica, que insere Macedônia à Grécia, e Grécia à Europa... Como exemplo, seja aqui remetido novamente a Roloff (1988, p. 243-244, nossa tradução): “primeiro passo do Evangelho em solo europeu”, “Lídia, a primeira cristã europeia”; Comblin (1989, p. 62): “viagem para a Grécia”.