Sebastião Lindoberg da Silva Campos*
Jefferson Zeferino **
Glaucio Alberto Faria de Souza***
* Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio). Professor substituto do Instituto de Ciencias Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Contato: lindoberg_pe@hotmail.com
** Doutor em Teologia. Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná por meio do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES). Contato: zeferino.jefferson@pucpr.br
***Mestre em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). Professor de Teologia na Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI. Contato: gafsteologo@gmail.com
Voltar ao Sumário
É comum encontrar nas narrativas humanas expressões de panoramas dos mais diversos acerca da imagem do ser humano e de seu estar no mundo. Esse estar no mundo implica toda uma rede de conexões e interações e mobiliza uma série de crenças e convicções fundadas em narrativas elaboradas a partir do processo de enunciação da realidade. No entanto, como entender essas narrativas? A partir de um processo de elaboração referencial da realidade ou como possibilidade criativa realizada pelo deslocamento referencial, protagonizado pelo processo linguístico metafórico. Se a linguagem realiza uma compreensão da própria realidade, torna-se comum encontrar nessas narrativas uma busca por respostas acerca das mais elementares perguntas que sustentam uma existência humana. Afinal, como interpretar a saga do personagem Severino, de João Cabral de Melo Neto, na sua jornada junto ao rio, numa indiferenciação entre o existir de um e o morrer do outro? Como não olhar a aventura quixotesca do cavaleiro de Cervantes que, inflamado pela alucinação própria, constrói uma aventura que só a ele pertence? Como permanecer incólume ao homem louco de Nietzsche que percorre os mercados com uma lanterna à mão buscando a Deus, fundamento primeiro e último de uma existência? Como não se abalar e lançar aos céus o grito de horror e fúria, tal qual Voltaire em seu poema, diante de uma Lisboa arrasada pelo terremoto a arder em chamas? Como permanecer indiferente à Máquina do Mundo de Drummond, que de repente se abre a exibir todas as respostas desde sempre requeridas?
Essas são parcas imagens de narrativas que operam uma orquestração da referencialidade (conceito) e deslocamento (metáfora) linguística que utiliza de uma experiência humana para pintar pálidas imagens de um mosaico complexo do mundo no qual o sujeito se encontra. A utilização adjetiva não é gratuita, com efeito, as narrativas operam sobre um eixo linguístico que, desde a manifestação literária helênica, se firmam numa possibilidade de elaboração referencial e mimética. A reflexão foi resumida pelo pensador Hans Blumenberg como o paradigma do dictum platônico, isto é, a possibilidade que a linguagem manifeste a realidade ou a falseie, ou melhor dito, seria necessário entender essa falsidade dentro de um horizonte de possibilidades de experimentação. Assim entendido, temos que a ficcionalidade construiu infinitas imagens do mundo no qual o ser humano se encontra, tão variadas e distintas quanto seja possível ao reino do ficcional. No entanto, isso não significa que o ficcional prescinda de uma realidade dada. A seu modo, a ficcionalidade constrói imagens que extrapolam uma mera imitação do mundo natural. É por meio da capacidade criativa e criadora que o humano dá formas e nomes a uma realidade que se apresenta ante sua presença expectadora e atuante. Mas a busca por nomear o mundo circundante também conjuga em seu lastro tentativas enunciativas provisórias e outras mais elaboradas que buscam uma explicação pormenorizada e permanente dos fenômenos.
Não raro, as discussões levantadas pela crítica e linguística textual ampliam a percepção de operação do texto como plataforma de deslocamento da linguagem. O texto, sendo aparato de transmissão do conhecimento por meio da articulação e deslocamento linguístico, opera uma elaboração mimética da realidade. Muitas vezes essa ação mimética elabora novas possibilidades de reflexão, acionando o que Mikhail Bakhtin chama de caráter polifônico da linguagem.
Com efeito, a recuperação da categoria de mímesis enquanto vetor de elaboração de um conhecimento próprio sobre o humano lança luzes para um alargamento da linguagem poética como lugar de manifestação do humano. Deste modo, o campo de diálogo entre Teologia e Literatura já se converteu no campo da possibilidade em que o conceito de Deus pode ser apreensível por meio da linguagem poética. Aqui já não paira uma reserva à expressão linguística nem um interdito porque sua expressão pode ser falsa, mas porque o que está em foco não é mais o antagonismo entre a busca pela verdade em contraposição à beleza, mas justamente como essa experiência singular que se dá numa atitude relacional é exibida e transmitida, num processo de continuidades e rupturas. Neste ponto é interessante notar que Agostinho havia posto uma predileção entre a contemplação do belo e da verdade, depreciando a primeira por sua imagem ludibriar e falsear a possibilidade do conhecimento. É Heidegger, ao recuperar a poesia de Hölderlin, que afirma que o lugar do humano está no habitar (construir) poético. Esse habitar extrapola uma mera expressão linguística e se funda na própria experiência “desta terra” como uma consciência que interroga e experimenta sua vivência.
Se tomarmos o exemplo de Daniel Everett, linguista contemporâneo que trabalhou durante anos com a língua pirahã na região amazônica, ao afirmar que o fim de determinadas culturas que não deixam rastro de sua herança cultural ou linguística levam consigo uma expressão muito singular da organização do mundo, torna-se claro que a permanência de narrativas escritas, ainda que não tragam ou permitam vislumbrar sua dinamicidade no momento em que se realizam, são “restos” que fermentam, se renovam e fornecem um interessante modo pelo qual o humano pode acessar sua própria forma de autoconhecimento e refletir sua imagem de estar-no-mundo bem como de nomear e dar sentido ao mundo que o circunda. É no processo constitutivo do texto que a tessitura da experiência humana se realiza.
No entanto, a mera inserção do caráter mítico não seria suficiente se um panorama da compreensão da operacionalização da mímesis e metáfora no interior da narrativa textual fosse ignorado. Portanto, seguimos a reflexão resgatando o valor de mímesis enquanto uma elaboradora imagem de mundo que, ainda que provisória, torna-se válida em sua forma de enunciar o mundo. Não se compreende o valor da mímesis se a ela não for incorporada à operacionalização da metáfora enquanto constituinte da linguagem humana não apenas como figura retórica de transposição. A concordar com Jacques Derrida em Margens da filosofia concluímos que a mímesis é própria do humano não apenas porque é um sujeito mimético e imita a natureza, mas porque elabora um sentido de verdade ao expandir a própria concepção de si e da natureza.
Paul Ricoeur em seu livro Metáfora viva define que metáfora é a capacidade de referir-se a uma realidade fora da linguagem – e mímesis – a capacidade de superar o valor referencial representativo, caminhando para uma perspectiva criativa e criadora. Sendo assim, proceder a uma investigação que aponte o valor positivo da metáfora e da mímesis é proceder a uma operacionalização do valor heurístico da linguagem poética na configuração de expressão da realidade.
Nos artigos reunidos, neste número da Teoliterária, parece emergir uma interessante imagem de uma tentativa de expressão do transcendente por meio da articulação linguística, e é na operacionalização do discurso linguístico que se manifesta a própria expressão artística/religiosa. Os artigos elaboram, de uma forma ou de outra, uma tentativa natural de expressão/interpretação/reelaboração da realidade através da articulação linguística.
Em A teopoética de T. S. Eliot – Considerações sobre The Journey of the Magi a metáfora reaparece em seu aspecto de desestabilização da referencialidade da linguagem. Refletindo sobre o paradoxo da tradução/traição do texto e sua mensagem a ser transmitida, Carlos Caldas constrói uma reflexão sobre a tessitura do texto teopoético de Eliot como expressão metafórica de vida.
Cristianismo e revolução: uma leitura do romance Directa, de Nuno Bragança, à luz do conceito de evolução de Teilhard de Chardin investiga de que forma cristianismo e revolução se associam no romance Directa, em especial no modo de pensar e agir do protagonista Aníbal. Para isso, Carlo Conte Neto lança mão de alguns elementos centrais do pensamento do padre jesuíta Teilhard de Chardin, sobretudo seu conceito de evolução, entendido como expressão de uma criação inacabada e que, portanto, continua nas mãos dos seres humanos.
O artigo A ciência moderna e o cansaço da vida: pensamentos sobre a finalidade da ciência e a estética de Fernando Pessoa é ensaístico e procura analisar a ciência moderna dentro de questões filosóficas antigas que remontam inclusive as origens comuns entre teologia e filosofia. Para tanto, Rízia Eduarda Andrade parte de um pequeno texto escrito por Fernando Pessoa como forma de colocar em questão os sentimentos de inquietação que toda a vida moderna suscita dentro dos seres humanos.
Em Renato Russo e o desencanto político-existencial dos anos 80, Ingrit Jeampietri Paiva e Carlos Eduardo Calvani propõe encontrar nas letras das músicas do compositor carioca uma expressão de uma experiência singular e ao mesmo tempo coletiva. Mais uma vez o texto opera seu deslocamento de referencialidade a partir da expressão metafórica.
O texto As origens teológicas e literárias de Satã em “Paraíso rdido”, de Milton, escrito por Isaac Malheiros, coloca em relevo o modo como a figura de Satanás é descrita, de modo mais humanizado, como alguém que passa por conflitos pessoais. Apresenta-se o poema de Milton como herdeiro de uma determinada tradição cultural, mas também original em sua proposição.
Em Pacto e exorcismo no cordel “A mulher que enganou o diabo’, Alair Matilde Naves nos apresenta como o cordel, ao estar embevecido de uma forte tradição cultural de raízes pretéritas, nos exibe interessantes panoramas miméticos em que as figuras de Deus e o Diabo ganham novos e contínuos contornos sempre ressignificados a partir de um rearranjo do discurso da tradição.
O artigo Uma genealogia do inferno: do sheol à divina comédia, de Henrique Mata de Vasconcelos, ancorado numa pesquisa textual histórica descortina, breve e sinteticamente, de qual maneira a imagética e imaginário do inferno surgiu e desenvolveu-se na cultura e no pensamento judaico-cristão, tendo o texto como plataforma de transmissão.
No artigo O conceito de cristianismo a partir da metáfora de acorde temos uma reflexão que busca na própria linguagem sua expressão de possibilidade. Operando sobre os eixos próprios da linguagem, o metafórico e o conceitual, José D’Assunção Barros interrelaciona diversos campos dos saberes humanos em torno da metáfora do acorde como possibilidade para uma conceitualização mais substancial do cristianismo.
O artigo O sentido do sacrifício: o mal e a salvação em René Girard, de Bianca Vicêncio Leis e Glauco Barsalini, contribui para o debate sobre o fenômeno do mal e o tema da salvação, a partir de um recorte epistemológico específico, em que a antropologia e a teologia se conectam, tendo como um dos pontos centrais o estudo do sentido literário dos mitos.
Ivoni Richter Reimer e Haroldo Reimer, em A sinagoga das mulheres: análise histórico-crítica feminista de Atos 16,11-15.40, buscam compreender as especificidades do texto em seu contexto literário, histórico, sociocultural, a sua significação teológica em Atos e sua contribuição para fortalecimento de mulheres e homens também hoje. O artigo pode ampliar aspectos epistemológicos, metodológicos e teológico-eclesiais por meio da análise crítica libertadora interdisciplinar.
Angela Natel e Luiz José Dietrich, em Intertextuality allows to see the Goddess ‘Anat winning the battle of Yahweh in Jdg 4-5, dão atenção para elementos textuais e intertextuais no que diz respeito a personagens bíblicos. Como resultado, buscam desconstruir processos de silenciamento presentes em produções bibliográficas que hoje compõem o livro sagrado do cristianismo.
Já o artigo O eco da reforma protestante na retórica de Jonathan Edwards: uma análise de Heaven, a World of Love revela, escrito por Raynara Karenina Veríssimo Correia, através de uma retomada dos dispositivos operacionais do discurso retórico, como o sermão de Edwards se apropria desse jogo linguístico para promover uma práxis efetiva das ações humanas.
Teologia sistemática e questões hermenêuticas da linguagem: contribuições da teologia como discurso em Robert Jenson e o potencial epistemológico da linguagem metafórica em Paul Ricoeur, texto escrito por Adriani Milli Rodrigues, considera a virada linguística atuante também nas produções teológicas, de modo a abrir novas possibilidades de compreensão e construção do conhecimento teológico. Conceitos como metáfora e discurso informam a interpretação de modos sistemáticos de apreensão da mensagem evangélica na contemporaneidade.
A diversidade e pluralidade de artigos ampliam as fronteiras do debate acadêmico e conectam à linguagem aquilo que de mais expressivo possui: sua capacidade de elaboração de possibilidades por meio da ficcionalização da realidade. Metáfora e mimesis permanecem atuantes no processo de experimentação que elaboram. Espera-se que a cada dia frutifique mais as possibilidades que se pode experimentar a partir do contato com o texto e com o mundo que ele nos apresenta.