Janaína Quintana de Oliveira
Mestre em Educação e Tecnologia – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSUL-Pelotas). Contato: profejanastar@gmail.com
Tamara Oswald
Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Contato: toswald@yahoo.com.nr
Resumo: O presente artigo aborda aspectos semelhantes entre a obra portuguesa O crime do Padre Amaro de Eça de Queirós e a obra brasileira O Mulato de Aluísio de Azevedo, pois ambas traçam uma crítica aos costumes burgueses e ao clero oitocentista, fazendo um retrato das sociedades de costumes dos dois países naquela época e como esses espaços eram influenciados e subjugados ao que preconizavam alguns religiosos perniciosos e inescrupulosos em benefício do seu bel-prazer. A primeira é ambientada na cidade de Leiria, em Portugal; já a segunda é em São Luís do Maranhão, Nordeste do Brasil. As duas obras fazem parte dos movimentos Realismo e Naturalismo, momentos em que por meio da literatura fez-se o desenho do homem e da sociedade viscerais, mostrando o aspecto mais animalesco destes, indo ao encontro das novas teorias filosóficas, políticas e científicas que eclodiram no século XIX.
Palavras-chave: Século XIX; Literatura; Clero
Abstract: This article discusses similar aspects between the Portuguese work O crime do Padre Amaro by Eça de Queirós and the Brazilian work O Mulato by Aluísio de Azevedo, as both criticize bourgeois customs and the 19th century clergy, making a portrait of the societies customs of the two countries at that time and how these spaces were influenced and subjugated to what some pernicious and unscrupulous religious advocated for the benefit of their own pleasure. The first takes place in the city of Leiria, in Portugal; the second is in São Luís do Maranhão, northeast of Brazil. The two stories are part of the Realism and Naturalism movements, moments in which, through literature, the drawing of visceral man and society is made, showing their most animalistic aspect, according to the new philosophical, political and scientific theories that emerged in the 19th century.
Keywords: 19th century; Literature; Clergy
Este trabalho surgiu motivado pelo desejo de apresentar pontos em comum nas obras O crime do padre Amaro do Eça de Queirós[1] e O Mulato de Aluísio de Azevedo, mais especificamente a comparação entre as personagens eclesiásticas padre Amaro e cônego Dias da primeira, e cônego Diogo da segunda, com um olhar mais direcionado à hipocrisia da sociedade burguesa e de algumas figuras clericais do século XIX, que os autores traziam em suas narrativas.
Cabe salientar que O crime do padre Amaro é uma obra pertencente ao realismo português, embora alguns estudiosos digam que ela já faz parte do naturalismo, enquanto O Mulato é a obra precursora do naturalismo no Brasil.
A literatura é uma das formas que há para que sejam lidos o homem e o mundo, pois ela é o retrato da sociedade e mostra os caminhos e os desdobramentos no decorrer da história. Cabe à literatura o papel ajudar a registrar os costumes de cada época, juntamente às outras manifestações artísticas. Resumindo, além de ser um instrumento de fruição, a literatura é um documento histórico capaz de esboçar o retrato social de determinados períodos.
A metodologia aplicada neste trabalho são os estudos da literatura comparada. Esta área da literatura aborda as diversas relações entre diferentes textos e variadas culturas, mas vai além, na atualidade, podendo estabelecer relações com as mais diversificadas áreas do conhecimento e das artes em geral. De forma ampla, segundo Carvalhal:
À primeira vista, a expressão "literatura comparada" não causa problemas de interpretação. Usada no singular, mas geralmente compreendida no plural, ela designa uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas. No entanto, quando começamos a tomar contato com trabalhos classificados como "estudos literários comparados", percebemos que essa denominação acaba por rotular investigações bem variadas, que adotam diferentes metodologias e que, pela diversificação dos objetos de análise, concedem à literatura comparada um vasto campo de atuação. (CARVALHAL, 2006, p. 6).
A literatura comparada surgiu como disciplina universitária em Lyon na França, em 1887, mas foi somente no século XX que se expandiu como cadeira obrigatória nos demais países europeus e na América. Ela centra sua teoria nas fontes e influências, buscando semelhanças e diferenças entre diferentes literaturas.
Neste estudo dar-se-á um olhar especial às relações históricas, políticas e sociais que permeiam as duas obras, visto que ambas fazem parte de um mesmo contexto temporal, embora em espaços diferentes. Indo ao encontro desta ideia, ainda de acordo com Carvalhal:
Essa é uma atitude de crítica textual que passa a ser incorporada pelo comparatista, fazendo com que não estacione na simples identificação de relações, mas que a análise em profundidade, chegando às interpretações dos motivos que geraram essas relações. (CARVALHAL, 2006, p. 52).
Ambas as obras, como já mencionado, fazem parte da mesma época, uma portuguesa, a outra brasileira, mas não é por acaso que estas ficções rumaram para o mesmo horizonte, visto que diversos desdobramentos contextuais contribuíram para isto. Segundo Pellegrini a respeito do Realismo:
E, de modo geral, qualquer que seja o ponto de vista teórico, aceita-se que ele emergiu de um processo histórico-social específico, traduzindo a natureza turbulenta da realidade oitocentista: corresponde ao poder crescente da ideologia burguesa europeia, procurando dar forma própria à cultura e trazendo o povo para o centro da cena, com uma postura politicamente revolucionária, ligada, em muitos autores, aos ideais socialistas surgidos da Revolução Francesa. (PELLEGRINI, 2009, p.13).
Outro ponto importante que cabe salientar é o fato de os escritores brasileiros oitocentistas consumirem bastante literatura portuguesa, sobretudo Eça de Queirós, que, por assim dizer, era considerado um ídolo para muitos deles. De acordo com a autora Jamel:
Consumia-se a literatura estrangeira com mais facilidade e, sem dúvida, Eça de Queirós tornou-se um expoente na relação de artistas estrangeiros que entusiasmavam as letras brasileiras. Não só por partilhar a mesma língua, Eça foi extremamente importante no meio cultural brasileiro, influenciando a consolidação de um público leitor bem como a formação dos escritores. (JAMEL, 2016, p.20).
Conforme salientado, os atravessamentos literários não se deram por acaso, e a influência de Eça de Queirós vai além da circunstância de os dois países compartilharem o mesmo idioma.
A fim de que seja traçado um panorama mais abrangente sobre as relações externas à obra, buscar-se-á desenhar o quadro contextual da época.
O século XIX foi um momento de várias mudanças muito importantes para o mundo em geral. Dentre elas estão a ascensão da burguesia, depois da Revolução Francesa no século XVIII; os desdobramentos da Revolução Industrial, que também começou no século anterior, e que culminou na Segunda Revolução Industrial; o desenvolvimento intelectual em diferentes áreas do conhecimento, etc. Estes fatores resultaram na criação de escolas e museus, havendo desta forma, um avanço nas ciências e nas artes. Por conta das descobertas científicas, houve um crescimento significativo da população ocidental. “Entre 1815 e 1914, a população da Europa ultrapassou o dobro. Em 1800, ela era calculada em 187 milhões; em 1900, ultrapassa os 400 milhões” (RÉMOND1990, p. 153).
Importantes fatos, como as descobertas de Charles Darwin, que a partir da apresentação da evolução das espécies fez com que houvesse um rompimento com questões que eram justificadas pela religiosidade, que até então propunha uma explicação espiritual para todos os acontecimentos da humanidade.
Outras mudanças foram o surgimento de estradas de ferro, ligando as cidades; o declínio do regime escravocrata ao redor do mundo, assim como da servidão na Rússia; a independência de diversos países americanos; o avanço de novas teorias filosóficas e sociológicas como o marxismo de Karl Marx e Friederich Engels, o determinismo de Adolfo Taine, a psicanálise de Sigmund Freud e o positivismo de Augusto Comte, entre tantos outros acontecimentos importantes.
A servidão é abolida, os privilégios suprimidos, a mão-morta eclesiástica desapareceu. A igualdade civil de todos diante da lei, diante da justiça, diante dos impostos, para o acesso aos cargos públicos e administrativos, é agora a regra para uma boa metade daEuropa. (RÉMOND, 1990 p.13)
Todas estas teorias científicas e filosóficas que estavam em voga foram refletidas nas obras literárias daquele tempo, rompendo aos poucos com o subjetivismo romântico e adentrando no objetivismo realista. Para representar o mundo cru e visceral foi necessário que o romance folhetinesco cedesse espaço a narrativas que contemplassem enredos que esboçassem a face mais humana da sociedade com seus instintos mais naturais, muitas vezes “numa observação mais rigorosa e até presumidamente inspirada em métodos científicos; numa reprodução mais fiel do observado, reduzindo ao mínimo a idealização romanesca” (VERÍSSIMO, 1998, 354).
No começo do século XIX, embora já em decadência, pois outrora havia sido um grande reino, Portugal ainda possuía colônias, entre elas o imenso território brasileiro. Na França, durante a era Napoleônica, devido a motivos bélicos, foi promovido o bloqueio continental à Inglaterra. Napoleão exigia que o príncipe-regente de Portugal aderisse ao bloqueio:
A França exigia dele que declarasse guerra à Inglaterra dentro do prazo de vinte dias, que fechasse os portos aos navios ingleses, anuindo ao bloqueio continental, que juntasse os seus navios às esquadras combinadas franco-espanholas, que sequestrasse todas as propriedades inglesas e prendesse todos os súbditos britânicos. (OLIVEIRA MARTINS, 1972 p. 346)
Portugal, tendo continuado seus negócios com a Inglaterra, teve seu domínio invadido pelo exército de Napoleão, fazendo com que a família real portuguesa fugisse para o Brasil, permanecendo até 1821. Neste período os portugueses enfrentaram o exército napoleônico enquanto os desdobramentos da permanência da família real no Brasil e a abertura dos portos, entre outras coisas, culminaram na independência do Brasil em 1822.
Enquanto grande parte da Europa estava em franco desenvolvimento industrial e intelectual, momento em que pensadores estavam questionando a metafísica e debatendo os direitos dos trabalhadores, que sobreviviam em condições precárias nas fábricas, Portugal estava atrasado, ainda convicto e dependente de suas tradições religiosas, do trabalho artesanal, etc. O povo também estava descontente com a política do país (monarquia e clero), que somente atendia aos interesses dos oligarcas. Percebe-se a estagnação de Portugal, segundo as palavras de Oliveira:
Apesar de o liberalismo já estar consolidado em Portugal, assentado sobre um discurso oficial progressista, a sociedade encontrava-se ainda estagnada tanto do ponto de vista científico, como do tecnológico e do econômico. Havia uma crise no campo, sinalizada por uma grande massa de emigrantes que vinham, sobretudo para o Brasil. A produção industrial crescia no restante da Europa a passos largos, mas Portugal ainda se debatia com a produção artesanal. Os dois partidos existentes, o Progressistas e o Regenerador, cederam às pressões das oligarquias e o descontentamento da população era crescente. (OLIVEIRA, 1999, p.259).
Na metade do século, o romantismo português entrou em derrocada e os jovens intelectuais da escola de Coimbra olhavam com interesse para os avanços em diversas áreas que se desenvolviam no restante da Europa, principalmente na Alemanha, Inglaterra e França, surgindo a partir daí ideias realistas e à continuação naturalistas. Este antagonismo entre o passado e o novo foi denominado Questão Coimbrã, de acordo com Oliveira (1999, p.259).
Mais adiante, na seção destinada a esmiuçar as escolas literárias realismo e naturalismos, voltar-se-á a evocar a Questão Coimbrã.
Enquanto isso no Brasil, devido à chegada da família real portuguesa, houve alguns desenvolvimentos cruciais como a abertura dos portos às nações amigas, como já mencionado; criação da Biblioteca Real (contendo 60 mil volumes); abertura do primeiro jornal do país e a impressão local de livros e periódicos; obras públicas tais como o Banco do Brasil, a Casa da Moeda e o Jardim Botânico foram criadas; escolas de ensino superior foram inauguradas; ou seja, houve um avanço intelectual significativo no Brasil no começo do século que se expandiria no decorrer deste. O intuito da família real era dar ares europeus ao Brasil e atender aos seus próprios interesses. De acordo com Boaventura:
Com a desorganização do sistema de ensino pela expulsão dos jesuítas, a educação colonial veio a tomar novos rumos com a vinda da família real portuguesa. Tão logo chegou ao Brasil, na sua passagem pela Bahia, o Príncipe Regente abriu os portos às nações amigas e criou o curso de Medicina e Cirurgia junto ao Hospital Militar. A ação realizadora atingiu os setores da economia, da política, da agricultura, com destaque para o ensino. Cursos que até então não existiam foram criados em área diversas. Com o curso médico, iniciou-se um período novo para o ensino superior público, pois até então só havia o ensino superior religioso. (BOAVENTURA, 2009, p.129).
Na cultura, a chegada de novas ideias e costumes, com a entrada constante de estrangeiros cultivou uma nova ideologia contestadora e emancipacionista, o que foi benéfico para o desenvolvimento intelectual no Brasil.
Após a independência, em 1822, o Brasil passou por diversas mudanças. Um sentimento nacionalista emergiu nos cidadãos. A busca da identidade nacional ligada ao sentimento ufanista do momento foi ao encontro das ideias românticas, que ainda na primeira metade do século estavam em auge no país, encontrado ali um terreno fértil para se desenvolver.
Da geração que testemunhou, acompanhou e até fomentou ou promoveu os sucessos da nossa independência política, surgiu um seleto grupo de homens de estudo e letras que lhe completaram o feito insigne, dando à recente nação o abono indispensável da sua capacidade de cultura. (VERÍSSIMO, 1998, p.182)
O curso da história brasileira, porém, seguiu caótico durante o século. Confusões, conflitos, rebeliões eclodiram em diversos cantos do país, principalmente após 1831, quando D. Pedro I abdicou ao trono.
Já no final do século, uma mudança política era ansiada pelos brasileiros que estavam descontentes com o império e vislumbravam mudanças. “Houve dois movimentos de ideias que sacudiram o país e tiveram grande efeito, tanto na vida mental quanto na vida social: a divulgação das novas correntes europeias de pensamento e o Abolicionismo” (CANDIDO, 1999, p.50). Logo, o fim do tráfico de seres humanos, a iminência abolicionista, a chegada de imigrantes europeus e a decadência da lavoura açucareira fizeram surgir novos ventos, trazendo ideais republicanos, intelectuais e progressistas, que romperam com temática romântica. Ainda segundo Candido:
Foi de fato uma transformação cheia de modernidade, que pôs em cheque o idealismo romântico e as explicações religiosas, questionando a legitimidade das oligarquias, propondo explicações científicas e interpretações de cunho relativista e comparativo. (CANDIDO, 1999 p. 51).
Foi neste contexto histórico e social que o Realismo teve espaço para despontar no Brasil, juntamente com o amadurecimento do sistema literário brasileiro, que se consolidava.
Realismo é o conjunto de tendências artístico-literárias que surgiu a partir da metade do século XIX, contrapondo-se ao movimento romântico. O Naturalismo é uma corrente do Realismo, em que a ciência é demonstrada por meio da arte. As obras Realistas e Naturalistas são objetivas e racionais; as narrativas descritivas e lentas com linguagem clara; o amor tem características carnais e não mais idealizadoras como no Romantismo.
Em consonância com o pensamento revolucionário e reformador da geração de 70, o romance abandona o esquema anterior, vigente no Romantismo, segundo o qual a prosa de ficção, como aliás a poesia em vários momentos, era baseada na intriga e visava ao entretenimento, além de ser a apologia do casamento e de suas "verdades" afetivas e morais correlatas. O romance passa a ser, no Realismo, obra de combate, arma de ação reformadora da sociedade burguesa dos fins do século XIX. Transforma-se em instrumento de ataque e demolição, por um lado, e de defesa implícita de ideais filosóficos e científicos, por outro. (MOISÉS, 1975, p. 234).
No Realismo, a análise psicológica das personagens se propõe a uma literatura crítica, cujo objetivo é conscientizar o leitor. Pode-se dizer que era uma literatura quase pedagógica, no sentido de ter a intenção de formar a consciência cidadã e social dos indivíduos.
No exemplo a seguir, consegue-se visualizar o íntimo, o mais profundo dos sentimentos da personagem padre Amaro, cujo orgulho e desejo o colocavam em um frenesi colérico de inveja, querendo punir os que poderiam gozar o matrimônio. Nesta passagem, é bastante claro o âmago psicológico desta personagem no seu caráter mais humano e mais perverso.
E era isso que lamentava, esta diminuição social da igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens… O que lhe faltava era a autoridade dos tempos em que a Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho. Que lhe importava, no seu caso, o direito místico de abrir ou fechar as portas do céu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou fechar a porta das masmorras. […] pensando em João Eduardo e Amélia, lamentava não poder acender as fogueiras da Inquisição! (QUEIROZ, 2006, p. 106).
A ficção realista, em suma, tinha como objetivo esmiuçar e narrar os costumes da sociedade da época; “é sempre válido dizer que as vicissitudes que pontuaram a ascensão da burguesia durante o século XIX foram rasgando os véus idealizadores que ainda envolviam a ficção romântica” (BOSI, 2017, p.179).
No Naturalismo, havia a proposta de demonstrar de teorias científicas vigentes na época. O instinto colocava-se sobre a razão e o homem era reduzido à sua condição animal. O homem, como produto do meio, ia ao encontro da teoria determinista.
Já os naturalistas, comprometidos com a ótica cientificista da época, objetivavam desenvolver o “romance de tese”, no qual seria possível a demonstração de diversas teorias científicas. Tinham uma perspectiva biológica do mundo, reduzindo, muitas vezes, o homem à condição animal, colocando o instinto sobre a razão. Os aspectos desagradáveis e repulsivo da condição humana são valorizados […]. Os naturalistas retratam preferencialmente o coletivo, envolvendo as personagens em espaços corrompidos social e/ou moralmente, pois acreditavam que a concentração de muitas pessoas num espaço desfavorável fazia aflorar os desvios psicopatológicos. (OLIVEIRA, 1999, p. 257).
Sobre o ser humano corrompido, condicionado aos aspectos mais desagradáveis e vis da condição humana, cabe apresentar um trecho do livro O Mulato, em que o cônego Diogo, que sendo sacerdote deveria demonstrar compaixão e mirar-se no exemplo de bondade cristã, transborda-se em maldade ao falar sobre os negros para o seu compadre Manuel Pescada:
Ora o que, homem de Deus! Não diga asneiras! Pois você queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? Você queria, seu Manuel, que a D. Anica beijasse a mão de um filho da Domingas? Se você viesse a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta batina? Ora, seu compadre, você às vezes até me parece tolo. (AZEVEDO, 2010, p. 36).
A descrição da realidade é um ponto forte na narrativa naturalista, pois evidenciar o homem da maneira mais exata e carnal possível é o objetivo do escritor. Nesse projeto entram em evidência as sensações como gosto, olfato, visão, tato, audição; pequenos detalhes são esmiuçados; a predileção se dá por espaços e ambientes miseráveis e/ou insalubres; os fatos, preferencialmente, são apresentados em sequência lógica e os períodos são curtos; o narrador mostra-se impessoal.
Abaixo segue um trecho da obra O Mulato, que traz exemplos de descrição minuciosa, apresentação de um ambiente insalubre e mostra períodos que são curtos com linguagem objetiva.
Os dois seguiram adiante, penetrando o interior da casa. Ao transporem cada porta, fugia na frente deles uma nuvem de morcegos e andorinhas. O solo, empastado por excrementos de pássaros e répteis era pegajoso e úmido; o telhado abria em vários pontos, chorando uma luz morna e triste; respirava-se uma atmosfera de calabouço. (AZEVEDO, 2010, p.181).
Também se percebe as mesmas características composicionais na obra O crime do padre Amaro:
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatório, a bacia e o jarro com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali cheirava a mofo, e fora, na rua negra, caía sem cessar a chuva triste. (QUEIROZ, 2006, p.102).
À continuação, será mostrado um pouco da história das escolas literárias presentes neste estudo nos países Portugal e Brasil.
Em 1865, inicia-se em Portugal os movimentos realista e naturalista, devido ao acontecimento denominado Questão Coimbrã.
Os jovens intelectuais portugueses, descontentes com o Romantismo e ávidos pelas novidades científicas, ideológicas e filosóficas que eclodiam em grande parte da Europa, começaram a legitimar as novas ideias e conceitos no meio acadêmico. Uma das ações dos jovens intelectuais foi a criação da Sociedade do Raio pelo poeta Antero de Quental. O grupo contava com mais ou menos 200 componentes.
A Questão Coimbrã surgiu quando o escritor romântico português Antônio Feliciano de Castilho escreveu no posfácio do poema Mocidade de Pinheiro Chagas uma carta acusando os jovens de Coimbra de exibicionismo e de apresentarem temas impróprios em suas obras.
Em 1965, Feliciano de Castilho escreveu uma carta-posfácio ao editor do livro Poemas da Mocidade, de Pinheiro Chagas, na qual fazia irônica referência aos jovens Antero de Quental, Teófilo Braga e Vieira de Castro, defensores das novas ideias na arte, dizendo que lhes faltava bom senso e bom gosto. A obra de Pinheiro Chagas era ingênua e repetitiva, a carta de Castilho, ofensiva, e a resposta não tardou. Antero publicou um folheto, em que atacava violentamente o velho mestre. (OLIVEIRA, 1999, p. 259).
O folheto escrito por Antero de Quental chamou-se Bom Senso e Bom Gosto e além de fazer críticas a Castilho, defendia a nova geração de escritores. Resumindo, o confronto entre as ideias conservadoras e os adeptos às novas modernidades foi o estopim da Questão Coimbrã; o confronto entre o antigo e o novo; entre o romantismo e o realismo.
Depois de graduados, houve várias palestras e conferências realizadas pelos jovens intelectuais, no Cassino Lisbonense, e tinham por objetivo discutir temas políticos, artísticos e filosóficos.
O Realismo e o Naturalismo brasileiros têm início no ano de 1881, com a publicação das obras Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis (Realismo) e O Mulato – Aluísio de Azevedo (Naturalismo).
A apresentação de críticas sociais da época nas narrativas era uma marca de destaque na ficção realista brasileira. E também, como em outras partes do mundo, foi um movimento antirromântico e contra os valores burgueses vigentes na sociedade da época. Sobre o Realismo, Bosi diz que:
Desnudam-se as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima; e buscam-se para ambas causas naturais (raça, clima, temperamento) ou culturais (meio, educação) que lhes reduzem de muito a área de liberdade. O escritor realista tomará a sério suas personagens e se sentirá no dever de descobrir-lhes a verdade, no sentido positivista de dissecar os móveis do seu comportamento. (BOSI, 2017, p.179).
O realista/naturalista é o artista que pinta o quadro da realidade, dos temperamentos do homem biológico, que age por extinto, ao mesmo tempo que descreve os espaços e os meios que se inter-relacionam com esse ser vital. No Brasil do final do século XIX, o ambiente é extremamente favorável para a apresentação deste desenho, visto que as relações com o contexto sócio-histórico contribuem para essa construção.
A religião foi um grande poder do Estado por mais de mil anos. Era o braço direito da nobreza, com a autoridade de promover tanto a guerra quanto a paz. Política e religião (com intuito de poder) sempre andaram de mãos dadas, sendo nefastas para a população.
Durante o século anterior, XVIII, a Igreja Católica recebeu inúmeras críticas por parte dos iluministas. Foi o século do aufklärung[2], época em que as pessoas despertavam-se das trevas por tempos perpetuadas nos séculos anteriores.
Os pensadores iluministas acreditavam que a intolerância religiosa, o fanatismo e as crendices eram os grandes empecilhos para a formação e desenvolvimento de uma sociedade racional, menos individualista e mais humana. Em outras palavras, devido à intolerância religiosa e aos dogmas muitas vezes arbitrários que norteavam a sociedade, esta não evoluía. O enciclopedismo francês[3], de acordo com (CASSIRER, 1992, p.189), “censura-lhe [a religião] não só ter freado desde sempre o progresso intelectual, mas, além disso, ter se revelado incapaz de fundar uma verdadeira moral e uma ordem política social e justa.”
O obscurantismo religioso e as superstições levaram à morte milhares de pessoas, e para que ela fosse reprimida seria necessária uma sociedade esclarecida e rompida com o poder do clero.
O objetivo deste trabalho não é enxovalhar igrejas ou religiões, que isto fique bem claro, mas sim mostrar como as relações de poder, financeiras e de aparências existiram e existem em todos os meios.
Nas obras aqui apresentadas, os falsos profetas valiam-se da retórica e desenhavam um retrato místico para controlar e ludibriar, assim levando a cabo os seus desejos mais vis.
Os beatos não tinham noção do que deveria ser a verdadeira fé, que seria mirar-se no exemplo de bondade cristã. Suas religiosidades eram baseadas em conchavos e agrupamentos burgueses. Os sacerdotes utilizavam o poder para angariar benesses para si, enquanto os fiéis eram acorrentados nas trevas do obscurantismo e da ignorância. No trecho da obra O crime do padre Amaro abaixo, segue a reflexão de um bom sacerdote, o abade Ferrão, a respeito da manipulação praticada pelos seus colegas eclesiásticos:
O abade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o rebanho naquelas trevas da alma, mantendo o mundo dos fiéis num terror abjeto do céu, representando Deus e os seus Santos como uma corte que não é menos corrompida nem melhor que a de Calígula e dos seus libertos. (QUEIROZ, 2006, p.320).
Muitos homens movidos por diferentes objetivos entravam na vida religiosa sem ao menos ter inclinação. Esse pensamento é apresentado no seguinte trecho sobre a reflexão de Amaro, então no seminário, acerca dos colegas seminaristas que não tinham vocação.
Não compreendia também os ambiciosos: os que queriam também ser caudatários dum bispo, e nas altas salas dos paços episcopais erguer os reposteiros de velho damasco, os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados, servir uma igreja aristocrática, e, diante das devotas ricas que se acumulam no frou-frou das sedas sobre o tapete do altar-mor, cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fora da igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lajeadas o tlim-tlim dum sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um chapéu desabado e bem montados, tratar pelos caminhos, dar ordem nas largas eiras cheias de medas, apear à porta das adegas. E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando o sacerdócio, ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminário para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres. (QUEIROZ, 2006, p.27).
Alguns desejos de poder eram representados de forma tão incisiva, que inclusive os poderes da inquisição de outrora, que há muitos anos era finda em Portugal, emergiam dos cantos mais obscuros da mente humana. Na passagem abaixo, há uma destas demonstrações em um momento em que Amaro está com ciúmes de Amélia com João Eduardo:
Desejaria ser um sacerdote da antiga igreja, gozar das vantagens que dá a denúncia e dos terrores que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a jurisdição de sua Sé, fazer estremecer, a ideias de castigos torturantes aqueles que aspirassem a realizar felicidades – que lhe eram a ele interditas: e pensando em João Eduardo e em Amélia, lamentava não poder acender as fogueiras da Inquisição. Assim aquele inofensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão contrariada ambições grandiosas de tirania católica […] (QUEIROZ, 2006, p.104).
Na obra O Mulato, cônego Diogo utiliza de estratagemas no ritual religioso para ludibriar e alcançar seus intentos, que é obter a confissão da afilhada, separá-la de Raimundo e assim deixar seu crime de assassinato velado:
O cônego Diogo calculara bem. A encenação da missa, os amolecedores perfumes da igreja, o estômago em jejum, o venerando mistério dos latins, o cerimonial religioso, o esplendor dos altares, as luzes sinistrantes amarelas dos círios. A pobre moça considerou-se culpada; pela primeira vez, entendeu que era crime o que havia praticado com Raimundo, sentiu minguar-lhe aquela energia de aço, que lhe inspirara o seu amor, e, ao terminar a missa, quando a vó a depusera nas mãos do velho lobo da religião, a sua vontade era chorar. (AZEVEDO, 2010, p. 240).
Ainda continua comparando-se a Cristo e a juiz do céu. Depois, segue seu discurso carregado de ódio e preconceito sobre Raimundo, preconceito racial (sem anacronismos, pois segundo o amor de Cristo, o cônego deveria amar todas as pessoas) e preconceito religioso:
Abra-me seu coração!… Fale, minha afilhada!… Aqui represento mais do que seu pai; se fosse casada, mais do que seu marido! Sou o juiz, compreende, represento Cristo! Represento o tribunal do céu! Vamos, pois, conte-me tudo com franqueza; conte-me tudo e eu lhe conseguirei a absolvição!… Eu pedirei ao Senhor Misericordioso o perdão aos seus pecados. […] Ana Rosa, esse Raimundo tem a alma tão negra quanto o sangue! Além de mulato, é um homem mau, sem religião, sem amor de Deus! É um pedreiro-livre! É um ateu! (AZEVEDO, 2010, p.241).
Como exemplificado por meio de alguns trechos das obras estudadas, desenha-se aqui um pequeno panorama de como funcionava certos tipos de estratagemas religiosos na sociedade e como esses clérigos dispunham de suas autoridades para manobrar os fiéis e realizar seus desejos.
As duas obras aqui estudadas são contemporâneas entre si e compostas pelas características vigentes da época, as quais já foram mencionadas neste estudo. Ambas abordam o quanto são perniciosos os maus sacerdotes para a sociedade e como eles são capazes de manipular os incautos.
Cabe salientar que os dois autores são críticos ferrenhos à burguesia e ao clero, cada um em seu país. Inclusive, houve uma suposta menção de plágio por parte do autor brasileiro em relação ao português. De acordo com Jamel:
Porém, a acusação de plágio mais conhecida contra Aluísio Azevedo foi a que sofreu em 1881, após a publicação do romance O Mulato. Em uma série de crônicas no periódico Civilisação[4](sic), Joaquim de Albuquerque o acusa declaradamente de ter plagiado as obras de Eça de Queirós. (JAMEL, 2016, p.27).
Muitos pontos em comum na obra são atribuídos ao contexto socio/histórico que convergiam em diversos aspectos, proporcionando um terreno fértil para produções de cunho progressista e críticas.
Fazia parte da geração realista/naturalista o rompimento com o passado e a exposição do homem pragmático e de seus extintos mais humanos e animalescos. O realista/naturalista era o artista da verdade, o desenhista da psicologia, da biologia e das demais correntes científicas que se descortinavam àquela época.
Alguns pontos em comum entre as duas obras, além dos já mencionados nos capítulos anteriores, serão demonstrados a partir dos próximos parágrafos e trechos.
Um fato que chama atenção entre as duas obras é a crítica aos sacerdotes vaidosos. Não somente o fato da vaidade que o cargo lhes atribui, mas as vaidades comuns do dia a dia. Da obra O crime do padre Amaro segue o seguinte trecho:
O cônego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com peru, e tinha reputação o seu vinho Duque de 1815. Mas o fato saliente da sua vida – o fato comentado e murmurado – era sua antiga amizade com a sra. Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira, por ser natural de S. João da Foz. (QUEIROZ, 2006, p. 9).
Sobre o cônego Diogo no livro O Mulato apresenta-se a seguinte passagem também referente à ostentação:
O cônego passou a vestir-se, esticando muito as suas meias de seda escarlate; calçando com a calçadeira de tartaruga os seus sapatos de polimento azeitado, cujas fivelas levantavam cintilações. Enfiou depois a batina de merinó lustroso ameigado a barriga redonda e carnuda saracoteando-se todo, a sacudir a perninha gorda, indo ao espelho do toucador alcochetar no pescoço a sua volta de rendas alvas. Estava limpo, cheiroso e penteado; tinha, no rosto escanhoado e nos anéis dos seus cabelos brancos, uns tons frescos de fidalgo velho e namorador; o cristal dos óculos redobrava-lhe o brilho dos olhos, e o seu chapéu novo, de três bicos, elegantemente derreado um pouco para a esquerda, dava à sua cabeça distinta e ao seu rosto todo barbeado o ar pitoresco e nobre dos cortesãos do século XVII. (AZEVEDO, 2010, p. 211).
Nas duas obras há também os grupos de amigos, pequenos burgueses beatos e nutridos de todos os tipos de preconceitos. No trecho a seguir, a horda de beatas sente-se mortificada por medo de uma revista, Panorama, pertencente a João Eduardo, um rapaz ateu:
Todas as senhoras, instintivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto o panorama fatal, arrebanhando-se num arrepiamento de medo, àquela ideia de excomunhão que se lhes representava como um desabamento de catástrofes, um aguaceiro de raios despedidos da mão de Deus Vingador […]. (QUEIROZ, 2006, p.222).
Em O Mulato, segue um trecho de semelhante teor. Neste, no entanto, o preconceito do grupo pequeno burguês é para com os negros, mais especificamente para com mulheres negras:
Entraram a conversar sobre o escândalo de as mulatas se prepararem tão bem como as senhoras. “Já não se contentavam com a sua saia curta e cabeção de renda; queriam vestido de cauda, em vez das chinelas, queriam botinas! Uma patifaria!” Depois falaram nos caixeiros que roubavam do patrão para enfeitar as suas pininchas; e por transição natural, estenderam a crítica até os passeios a carro, as festas de largo e os bailes dos pretos. (AZEVEDO, 2010, p.74).
Nas duas obras a crítica à hipocrisia dos cidadãos ditos “de bem” é bem-marcada e denunciada nas passagens acima citadas e em muitas outras no decorrer das narrativas. Sobre os tipos simplórios e grotescos presentes na obra, Bosi escreve:
Não falha, porém, na sátira dos tipos da capital maranhense: o comerciante rico e grosseiro, a velha beata e raivosa, o cônego relaxado e conivente. Por outro lado, embora se possa entrever a sombra de Eça no meio da frase descritiva que resvala quase sempre para o grotesco, resta o mordente pessoal de Aluísio, então em luta aberta contra o conservantismo e as manhas clericais que entorpeciam a sua província. (BOSI, 2017, 201).
Outro ponto em comum entre as duas obras são os caráteres das personagens João Eduardo, de O crime do padre Amaro, e Raimundo, de O Mulato. Um e outro representam o pensamento progressista e o rompimento com obsoletas instituições e retrógrados costumes. Uma parte da obra em que este pensamento é abordado faz-se presente na fala do Dr. Gouveia a João Eduardo:
-Meu rapaz, tu podes socialmente ter todas as virtudes; mas segundo a religião de nosso país, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade, mas não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura – és simplesmente um maroto. (QUEIROZ, 2006, p. 193).
As duas personagens, João Eduardo e Raimundo, também compartilham outro ponto em comum. Os dois jovens escreveram artigos expondo verdades a respeito da hipocrisia e mediocridade de suas sociedades. O primeiro relacionado ao clero, o segundo à sociedade dissimulada, em que, por exemplo, as mulheres aos olhos de todos lhe eram indiferentes por ele ser um rapaz mestiço e às escondidas enviavam-lhe bilhetes e flores propondo encontros:
Houve um alvoroço! Gritaram que Raimundo atacava a moralidade pública e satirizava as pessoas mais respeitáveis da província. E foi o bastante: […] saltaram logo, espinoteando com a novidade. Meteram-lhe as botas; chamaram-lhe por toda a parte: “Besta! Cabra atrevido!” Os lojistas, os amanuenses de secretaria, os caixeiros frequentadores de clubes literários, em que se discutia durante anos a imortalidade da alma, e os inúmeros professores de gramática, incapazes de escrever um período original, declararam que era preciso meter-lhe o pau! “Escová-lo, para se não fazer de atrevido e desrespeitador das coisas mais sagradas desta vida: a inocência das donzelas, a virtude das casadas e a mágoa das viúvas maranhenses!” (AZEVEDO, 2010, p. 114).
Os três sacerdotes aqui estudados: padre Amaro, cônego Dias e cônego Diogo violaram os votos de castidade, que é uma das normas do sacerdócio. No trecho abaixo, depois de inúmeras manhãs de sexo entre Amaro e Amélia, esta engravida:
Amaro abrira abruptamente a porta do escritório, fechou-a de repelão, e sem mesmo dar bons-dias ao colega, exclamou: - A rapariga está grávida! […] A mulher já há dias andava desconfiada. Já não fazia senão chorar […] Mas agora é certo… As mulheres conhecem, não se enganam. […] Imagine você o escândalo! A mãe, a vizinhança… E se suspeitam de mim?… Estou perdido… Eu não quero saber, eu fujo! (QUEIROZ, 2006, p.284).
No próximo trecho, há a passagem da obra em que Amaro descobre que o cônego Dias mantém relações sexuais com a S. Joaneira, pois espiona-os e vê-os juntos na cama:
- Oh Deus de Misericórdia! A S. Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego Dias resfolegava grosso! […] Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! (QUEIROZ, 2006, p. 76).
Também o cônego Diogo, este de O Mulato, mantinha relações carnais. Ele era amante da esposa do pai de Raimundo, José. Abaixo, segue o momento em que José surpreende a esposa Quitéria como amante Diogo na cama:
Sem esperar mais nada, meteu ombros à porta e precipitou-se dentro do quarto, atirando-se com fúria sobre a esposa, que perdera logo os sentidos. O Padre Diogo, pois era dele a outra voz, não tivera tempo de fugir e caíra trêmulo, aos pés de José. Quando este largou das mãos a traidora, para se apossar do outro, reparou que a tinha estrangulado. Ficou perplexo e tolhido de assombro. Houve então um silêncio ansioso. Ouvia-se o resfolegar dos dois homens. A situação dificultava-se; mas o vigário recuperando o sangue frio, ergueu-se, concertou as roupas e, apontando para o corpo da amante, disse com firmeza: - Matou-a! Você é um criminoso! (AZEVEDO, 2010, p.51).
Os dois religiosos, Amaro, O crime o padre Amaro, e cônego Diogo, O Mulato, ainda tencionariam e cometeriam alguns crimes ao decorrer das obras. Amaro, por exemplo, desejou que a sua amante Amélia perdesse o bebê ou que este nascesse morto. Inclusive, ao nascer do bebê forte e sadio, entregou-o a uma mulher conhecida como “tecedora de anjos”, cuja fama era de assassinar recém-nascidos. Embora depois ele tenha se arrependido, foi tarde.
Diogo foi além: assassinou José em uma emboscada e depois, quando mais velho, propôs que Ana Rosa abortasse o filho de Raimundo, cedeu a arma que mataria Raimundo ao caixeiro Dias e ainda inflamou-o, pois o caixeiro estava inseguro, para que cometesse o crime:
- Não seja tolo! Aproveite a única ocasião boa, que Deus lhe oferece! Faça o que lhe disse e será rico e feliz! […] Agradeça à providência o meio fácil que lhe depara, e que estou vendo agora que você não merecia… A maior parte dos homens poderosos tiveram, coitados! Muito maiores provações para chegarem aos seus fins! […] Pois lembro-lhe somente que um homem de cor, um mulato nascido escravo, desvirtuou a mulher que vai ser sua esposa, e isto, fique sabendo, representa para você muito maior afronta que um adultério! Assiste-lhe, por conseguinte, todo o direito de vingar a sua honra ultrajada; direito este que se converte em obrigação perante a consciência e perante a sociedade! (AZEVEDO, 2010, p.261).
Conforme apresentado, as características convergentes entre as duas obras são muitas, fazendo com que haja uma relação de proximidade histórica e temática entre elas.
Os pontos citados no capítulo anterior são alguns traços em comum entre as duas obras. Elas são as vozes de um tempo de denúncia, de rompimento de paradigmas e de abertura para um modelo social que aos poucos se despertava para um sentimento contestador, de reflexão e construção de novos hábitos sociais. A razão se expandia, à medida que o mundo avançava a passos largos. As semelhanças entre as duas obras resultam destes fatores mencionados.
O progresso, a ciência, a filosofia, entre outros, desenvolviam-se por meio de suas descobertas e avanços, e a necessidade de apreciação deste novo modelo social foi muito bem representado pelos grandes escritores da época, cada um à sua forma, na sua terra, mas com os mesmos projetos e anseios.
Convenções e modelos político/sociais tradicionais e corrompidos aos poucos perdiam espaço no contexto do final do século XIX e o Realismo/Naturalismo foi um braço forte que apoiou essas mudanças, pois através da arte o homem expressa-se e ela reflete os anseios de parte da população. O homem produz a arte e a arte muda o homem em uma simbiose profícua.
Muito foi dito e a evolução mostra a cada dia o quanto já foi conquistado em relação aos direitos progressistas e ao bem-estar social, no entanto, ainda há muito a ser trabalhado. Embora a humanidade tenha avançado a passos largos nos últimos séculos, faz-se necessário todos os dias o exercício e a luta contra o retrocesso, que está sempre à espreita dos incautos.
Referências
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BOAVENTURA, Edivaldo M. A educação brasileira no período joanino. BOAVENTURA, EM. A construção da universidade baiana: objetivos, missões e afrodescendência. Salvador: EDUFBA, 2009. <http://books.scielo.org>. Acesso em 08 de novembro de 2020.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira 51ª ed. – São Paulo: Cultrix, 2017.
CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira: resumo para principiantes/ Antonio Candido. – 3. ed.– São Paulo :Humanitas/ FFLCH/USP, 1999.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada / Tânia Franco Carvalhal. - 4.ed. rev. E ampliada. - São Paulo: Ática, 2006.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: UNICAMP, 1992.
EÇA DE QUEIROZ, José Maria. O crime do Padre Amaro. Porto Alegre: L&PM, 2006.
JAMEL, Maíra Contrucci. Uma loja comunal: A questão do plágio de Eça de Queirós a Aluísio Azevedo/ Maíra Contrucci Jamel - Rio de Janeiro: UFRJ – Faculdade de Letras, 2016.
OLIVEIRA MARTINS, Joaquim Pedro de. História de Portugal. Lisboa: Guimarães Editores, 1972. E-book
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1975.
OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Arte Literária: Portugal/Brasil – São Paulo: Moderna, 1999.
PELLEGRINI, Tânia. Realismo: a persistência de um mundo hostil. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.14, 2009.
RÉMOND, René. O século XIX. 1815 – 1814. Tradução Frederico pessoa de Barros. São Paulo: Editora Cultrix, 1990. E-book
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). São Paulo: Letras & Letras, 1998. E-book
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[1] Admite-se duas grafias: Queirós e Queiroz. Nos livros de teoria literária abordados o sobrenome é grafado com S, enquanto que no romance estudado é grafado com Z.
[2]Movimento filosófico setecentista, de caráter racionalista e cientificista, também chamado de Iluminismo.
[3] Os enciclopedistas faziam parte da Société des gens de lettres, que foi uma sociedade de escritores franceses que contribuíram para o desenvolvimento da Encyclopédie, sob o comando de Denis Diderot e de Jean le Rond d'Alembert.
[4] Assim grafado, com S: jornal da igreja que apresentava as ideias clericais da época.