Entre a maldade, bondade, ódio e salvação na obra Jane Eyre, de Charlotte Brontë      
Between Evil, Goodness, Hate and Salvation in Jane Eyy Charlotte Brontë     

César Martins de Souza, Universidade Federal do Pará*
Weverton Castro, Faculdade Adventista da Amazônia**

*Doutor e Pós-Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Contato: cesarmartinsouza@yahoo.com.br 
**Doutorando em Educação Religiosa pela Andrews University - USA, Professor da Faculdade Adventista da Amazônia. Contato: weverton.castro@faama.edu.br 


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Resumo 

Jane Eyre, publicada originalmente em 1847, é considerada uma das principais obras de literatura inglesa, trazendo as narrativas da protagonista sobre os sofrimentos, violências e perdas que vivenciou até o encontro com a felicidade. Nesta obra, Charlotte, uma das celebradas irmãs Brontë, traz a possibilidade de problematizar sobre amor, bondade, ódio, redenção e sofrimentos, a partir do olhar da narradora-protagonista, que ficou órfã ainda jovem e traz sua fé como um fio condutor fundamental para compreender não apenas o universo narrativo, como também para refletir a respeito destas temáticas se relacionam com concepções práticas dos cristãos. A forma como ela enxerga o mundo e dialoga com as realidades que enfrenta deixa espaço para pensar as dinâmicas e paradoxos entre os discursos relativos a fé cristã e como ela é vivenciada no cotidiano por diferentes grupos e sujeitos. A vida de Jane traz para os leitores o desafio de pensar, a partir de uma obra literária, conceitos que adentram em diversas temporalidades e trazem reflexões que se estendem da literatura para a realidade social. 

Palavras-chave: Cristianismo; Jane Eyre; Mal; Redenção; Charlotte Brontë 

Abstract 

Jane Eyre, originally published in 1847, it is considered one of the main works of English literature, bringing the protagonist’s narratives about the sufferings, violence and losses experienced until the encounter with happiness. In this work, Charlotte, one of the celebrated Brontë sisters, brings the possibility of problematizing love, kindness, hate, redemption and suffering, from the perspective of the narrator-protagonist, who was orphaned at a young age and brings her faith as a fundamental thread to understand not only the narrative universe, but also to reflect on how these themes relate to practical conceptions of Christians. The way she sees the world and dialogues with the realities she faces, leaves space to think the dynamics and paradoxes between the discourses on the Christian faith and how it is experienced in daily life by different groups and subjects. Jane’s life brings to readers the challenge of thinking, from a literary work, concepts that enter different temporalities and bring reflections that extend from literature to social reality.   

Keywords: Christianity; Jane Eyre; Evil; Redemption; Charlotte Brontë 

Introdução  

Jane Eyre, de Charlotte Brontë (2017), traz o olhar de uma das três celebradas irmãs Brontë (Emily, Charlotte e Anne), que estão entre as maiores escritoras de literatura inglesa do século XIX, e permite pensar sobre o sofrimento humano e a possibilidade de não se deixar vencer pelo mal, buscando vivenciar a felicidade, mesmo em meio às tragédias e mantendo a fé cristã enquanto uma experiência concreta. A protagonista narra suas agruras desde muito jovem, quando perdeu os pais, mostrando as humilhações e torturas que lhes são impostas pela Sra. Reed, a viúva de seu tio, e o paradoxo da tristeza x felicidade no encontro de amor com o Sr. Rochester, após um período de renúncias e amadurecimento trabalhando ao lado da família do clérigo Sr. Rivers e as irmãs deste. 

Godfrey (2005, p. 853-854) ressalta que, em uma obra romântica, Brontë lança luz sobre as complexidades da afirmação de crenças e valores na sociedade vitoriana do século XIX, por adentrar nos paradoxos e nas contradições dos valores cultivados àquela época, em uma obra universal que possibilita pensar sobre outras temporalidades pelas temáticas que aborda: amor, ódio, cristianismo, reconciliação e felicidade. 

A protagonista-narradora não aceita a realidade que lhe parece predeterminada como sendo uma vida infeliz, de desencontros entre sua fé e o cristianismo professo por outras pessoas, bem como se recusa a se afastar de Deus, mesmo em situações de grande sofrimento, em meio às humilhações e perdas que vivencia. 

Para Vattimo (2018, p. 84-85) toda a humanidade estaria afastada da presença divina e condenada à incompreensão da fé ou à transformação dos ideais pautados no monoteísmo abraâmico em somente uma série de normas que deveriam seguir para se proteger da ira divina. Ele analisa a kenosis de Cristo, como uma ruptura nos padrões religiosos de povos da antiguidade, marcados por oferendas como mecanismo para aplacar a fúria dos deuses. O princípio da graça, presente na metamorfose de Jesus em humano, demonstraria dramaticamente a inversão da lógica dos povos antigos e uma reelaboração do monoteísmo abraâmico, pois ao invés de receber ofertas, o próprio Deus renunciava a sua autoridade para se fazer humano, para reinventar a relação com as pessoas e se ofertar para transformar as vidas, as perspectivas, trazendo um novo olhar sobre a religião que deveria ser vivenciada na concretude da fé. 

Para Gunjevic (2016, p. 225), as práticas transformadoras que Cristo oferece a toda a humanidade, inclusive se doando por ela, “não são baratas, ainda que gratuitas”, de modo que se tornam um convite a todos os que se dizem seus seguidores a vivenciar de modo concreto a reconstrução de conceitos e práticas a que Ele conclama. 

Diferentemente das narrativas presente em obras conhecidas da literatura brasileira e universal, Lucíola, de José de Alencar (2018), e A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho (1953), Jane Eyre não morre, mas é compelida a uma vida de sofrimentos que não escolheu, na casa de sua tia, e a vivenciar a renúncia voluntária, por amor. Jane é a heroína humilhada desde a infância e que em sua inocência não consegue entender o mal que lhe é imposto, apesar de conseguir identificá-lo. Seu desafio inicial é compreender para agir e poder lidar com a tia opressora. 

Ao ter sua inocência arrancada, a protagonista tenta agir logicamente para poder superar sua condição de sofredora subalternizada. Ela racionaliza sua situação e julga inicialmente o mal que vivencia como se fosse apenas fruto de um problema de informações adequadas sobre a situação, pois, em sua inocência, não consegue visualizar o mal em si mesmo, como não carecendo de uma explicação racional. Ao tentar racionalizar o mal e a dor que outra pessoa lhe impõe, Jane, na prática, não consegue identificá-lo adequadamente e nem compreendê-lo, de forma que o enfrenta com argumentos pautados em ideais de justiça e equidade, o que não lhe ajuda a superar a sua condição atual. 

É a obra literária trazendo, como afirma Eco (1994, p. 9), o leitor para entender o universo narrativo a partir das limitações impostas pelo olhar da narradora que, neste caso, é a protagonista. No presente artigo se busca mergulhar em uma obra, uma das maiores do romantismo inglês, como afirma Godfrey (2005, p. 854-856), que aborda uma complexidade de temáticas presentes no cristianismo e que, mesmo tendo sido escrita no século XIX, permite pensar sobre outras temporalidades. 

1. Jane, entre o mal e o sonho de felicidade

Jane, a protagonista, vivencia o sofrimento pela perda de seus pais e de suas referências na vida. Diversas indagações acompanhariam a vida da protagonista que pensava sobre seu presente e seu futuro ou se teria algum no restante de sua vida que se inclinava a ter curta duração. No meio da tragédia, ela cai na única alternativa que lhe restava: ser colocada sob a proteção de seu tio materno, que amava sua falecida irmã, ao ponto de recebê-la como filha. 

Mas o drama acompanhava a vida desta menina que sonhava com a redenção de tristezas e aspirava a encontrar um dia, em algum lugar, a felicidade. Um lugar que lhe trouxesse novas possibilidades. O tio, contudo, também veio a falecer e as infelicidades constituem o fio narrativo que conduzem a um processo de transformação na vida da protagonista. 

Eagleton (2020, p. 90-91) afirma que nenhuma cena é colocada ao acaso na narrativa de Charlotte Brontë, pois toda e cada cena se encadeia para conduzir o fio hermenêutico de forma a entrecruzar os leitores e a narradora. Ele nos lembra que quem narra é Jane Eyre e todo o enredo é, portanto, conduzido pela própria protagonista, de modo que somos conduzidos a pensar em sua trajetória a partir de seu próprio olhar sem termos a possibilidade de fazer o contraponto com outras vozes que apontem caminhos ou interpretações diferenciados do eixo narrativo central. 

É na sua própria voz que acompanhamos uma vida transformada em tragédia pelos acontecimentos que não pode controlar, que busca, porém, com a força de sua fé, enfrentar. Ela passa a ser maltratada pela esposa do tio, sendo assim transformada em criada dos primos, oprimida pelo descaso, pela arrogância, pela inveja, pelo ciúme e pela maldade. Busca outras possibilidades que lhe permitam um encontro consigo mesma, escapando dos descaminhos em que foi transformada sua jovem vida. Não aceita o papel de sofredora que não pode obter momentos de felicidade, nem contribuir nas vidas de outras pessoas e assim passa a ser vista como uma menina perversa, por não se contentar com a humilhação e exploração que lhe são impostas: 

- O que estamos dizendo é para o seu bem – acrescentou Bessie, em tom suave. - Você tem de tentar ser útil e boazinha. Aí, talvez, possa fazer daqui seu lar. Mas se for uma menina rude e malcriada, a madame vai mandá-la embora, tenho certeza. - Além disso – disse a Srta. Abbot -, Deus vai castigá-la. Ele pode fazer com que ela caia mortinha no meio de um desses ataques, e aí o que seria dela? (BRONTË, 2017, p. 20-21).  

Há um apelo à religiosidade como elemento condenatório visando impor um padrão religioso desigual, no sentido de manter o status social e considerar como uma conduta não cristã a atitude de se opor à opressão. Nesta lógica, a maldade não advém de quem maltrata, e rouba o direito, mas de quem não aceita a condição que lhe é imposta. Nos últimos séculos, o cristianismo aparece com frequência como tema central, ou um dos temas possíveis, em diversas obras consagradas da literatura brasileira e universal. Diversas obras literárias infanto-juvenis, como Pollyanna (PORTER, 2020), ou O pequeno lorde (BURNETT, 1970), também trazem como pano de fundo ou como temática central o cristianismo em diferentes aspectos. 

Leonel (2020) argumenta que o cristianismo tem no texto uma parte importante de sua existência e de sua própria concepção. Ele afirma que a Bíblia é dotada de construções literárias em um processo de comunicação que “significa reconhecer que ela propõe um diálogo com o leitor” (Leonel, 2020, p. 18). Por outro lado, textos literários não canônicos possibilitam problematizar aspectos fundamentais do cristianismo por entrarem em diálogos com a Bíblia e com valores e crenças cristãos, para adentrar em diferentes universos espaço-temporais dos leitores. 

A tia de Jane se coloca como se fosse uma benfeitora que oferece um lar à sobrinha de seu falecido marido, ignorando-se o fato de que a humilha e se utiliza de violência psicológica contra ela. O cristianismo é utilizado neste contexto como legitimador da exploração e opressão, condições que as pessoas devem aceitar como dádivas divinas para aperfeiçoar seu caráter e assim se livrarem do inferno. 

Vattimo (2018, p. 28-29) considera que o sacrifício redentor de Cristo foi mal compreendido, pois um ato voluntário e transformador é metamorfoseado ideologicamente em prática legitimadora da violência e da passividade diante da opressão. Em diálogo com a obra de Chesterton, Zizek inverte esta lógica atribuída ao sacrifício redentor de Cristo, pois não o vê como algo que direcione os humanos à inação e legitimação da opressão, mas como um caminho transformador de um Deus que se ofereceu à humanidade para lhe devolver a liberdade: 

É esse Deus que garante o sentido do universo, o Deus que é uma espécie de senhor escondido manobrando os cordéis por detrás do palco. Em contrapartida, Chesterton nos oferece um Deus que abandona sua posição transcendente e se precipita na sua própria criação. Esse Deus-homem compromete-se inteiramente com o mundo, chegando ao ponto de até mesmo morrer. Nós, humanos, ficamos sem qualquer poder superior que vele sobre nós, e resta-nos apenas o terrível fardo da liberdade e da responsabilidade do destino da criação divina – e, portanto, do próprio Deus (ZIZEK, 2014, p. 146). 

A liberdade é vista aí como um fardo que conduz não à passividade, mas à responsabilidade. Ao ser interrogada pelo diretor da escola, onde é colocada pela Sra. Reed, sob a pecha de menina malvada, Jane não consegue se conformar com a ideia da esposa do tio como uma benfeitora e nem se conforma com sua própria situação neste contexto: 

- Espero que este suspiro tenha sido sincero, e que você se arrependa de já ter causado constrangimentos em seus excelentes benfeitores. “Benfeitores! Benfeitores!”, disse para mim mesma. “Chamam à Sra. Reed de minha benfeitora. Então, o benfeitor é alguém muito desagradável.” 
- Você reza todos os dias, de manhã e à noite? 
- Continuou meu inquisidor. 
- Sim, senhor. 
- E lê a Bíblia? 
- Às vezes. 
- Com prazer? Você gosta da leitura? (BRONTË, 2017, p. 48-49) 

Ela não pode expressar oralmente, mas, em seus pensamentos não compreende que benfeitor seja algo bom, se a Sra. Reed assim é definida, enquanto a exclui de uma estrutura familiar e a trata de modo agressivo e abusivo. A leitura da Bíblia surge como elemento não de transformação do humano diante do Deus que desce até sua condição, mas como forma de impor discursivamente práticas pautadas na violência e na exploração, através de leituras que distorcem o conteúdo. Salles (2012, p. 136-139) considera que o fato de boa parte do cristianismo se pautar na compreensão de um livro sagrado, a Bíblia, torna a crença em Deus diretamente ligada à ideia de interpretar. 

Sobre este aspecto, Vattimo (2018, p. 100-101) chama a atenção para a necessidade de reinterpretar o cristianismo, para que ele possa ser enxergado como doutrina de salvação e transformação da humanidade de modo a não se conformar mais com a violência, o arbítrio e o abuso como formas de manifestação religiosa. O sacrifício redentor é um tema fundamental para o cristianismo e está na estrutura básica das crenças, pois parte da ideia de que Deus se fez semelhante aos humanos para assumir experiências como as suas e libertá-los do mal. Godoy (2009, p. 224-234) afirma que o sacrifício de Cristo é uma superação daqueles praticados na antiguidade, nos quais se ofereciam dádivas aos deuses, pois no cristianismo é o ser divino que oferece a si mesmo como dádiva libertadora e transformadora. É a kenosis de Deus, à qual Vattimo (2018, p. 62-63) chama a atenção, como um princípio que reinventou a estrutura do monoteísmo, pois retirou Deus da condição de autoridade suprema, a partir do rebaixamento à condição humana, que o fez se aproximar estruturalmente de cada pessoa e assim fazer-se em vida sacrifício para redimir e transformar a humanidade. 

A fé de Jane é sua força, pois desenvolve relação pessoal com o Deus em que acredita, sempre recorrendo a Ele em cada decisão para conseguir novas alternativas que tornem seus dias no mínimo um pouco melhores, e para que a bondade redentora atue sobre ela em um cenário de violência. Ela não consegue compreender o paradoxo entre a oposição ao mal e submissão voluntária a ele, como se fosse um bem: “Devo resistir àqueles que me punem injustamente. Isto é tão natural quanto amar os que mostram afeição ou me submeter a um castigo que acredito merecido” (BRONTË, 2017, p. 81). 

Ela tenta compreender como conjugar a crença na passividade humana diante da agressão imerecida, com o cristianismo. Os argumentos de sua professora do internato se baseiam em uma visão de que são as condutas morais que diferenciam o verdadeiro cristão do falso, enquanto Jane enxerga na busca por Deus uma oportunidade de não se conformar com o mal. Na lógica adotada pela professora, o sacrifício de Cristo funcionaria como um mecanismo religioso utilizado para impor a aceitação da agressão e do abuso ao invés de uma forma de libertação da humanidade. Nesta lógica hierarquizada do cristianismo, Deus teria se precipitado até a humanidade para definir hierarquias e a imposição de determinadas condutas morais exteriores e não para trazer sua libertação. 

Gunjevic ressalta que entre os cristãos há muitas visões diferentes sobre quem é Jesus, que se relacionam com concepções de vida muito diversas entre si e com os sentidos até mesmo utilitários que podem ser atribuídos à religião. O autor lembra que, quando Jesus pergunta aos discípulos quem eles pensam que Ele é, “a questão é dirigida a nós, leitores. Quem pensamos que é Jesus? Cada resposta que oferecemos nos compromete, mas não podemos deixar de responder” (GUNJEVIC, 2016, p. 216). 

Para Gonçalves (2012, p. 106), a experiência religiosa é como um encontro com o divino no interior de cada ser humano, trazendo a possibilidade de ter esperança. É de ter esperança que Jane não abre mão, mesmo que em sua mais tenra idade ainda não tenha aprendido a se opor ao mal, porque a violência, o autoritarismo e a opressão não lhe parecem condizentes com a conduta de pessoas que se autodefinem como cristãs. De sua condição de adolescente ou de uma mulher ainda jovem, emerge a narradora adulta que nos traz a possibilidade de entender como a personagem vê o mundo e o que explica sua inconformidade com este cristianismo: 

Foi uma tarde chuvosa, em que ventou muito. Georgiana caiu no sono no sofá, enquanto lia um romance. Eliza se foi para participar da celebração de um dia santo na nova igreja – porque em matéria de religião ela era de um rígido formalismo. Não havia tempo ruim que a impedisse de cumprir o que considerava seus deveres de devoção. Com chuva ou com sol, ia três vezes à igreja todos os domingos, e, durante a semana, sempre que havia preces (BRONTË, 2017, p. 318). 

Em suas considerações sobre os primos, agora adultos, que mesmo quando crescem, não demonstram incômodo com o sofrimento que a Sra. Reed lhe havia imposto, Jane não aceita um cristianismo entendido apenas como formalidades, deveres e regras a serem cumpridos, ao mesmo tempo em que se nega às pessoas os direitos mais básicos que lhes são devidos. A bondade e generosidade cristãs não parecem se encontrar na figura de sua egoísta prima Eliza, que não enxerga o cristianismo como experiência transformadora, mas apenas como deveres a serem cumpridos para legitimar condutas. Mal e bem surgem muitas vezes se confundindo ao longo da narrativa, que traz o problema da banalização da transformação discursivo-prática do cristianismo de experiência religiosa transformadora em princípio legitimador de agressão e indiferença ante o sofrimento alheio. 

Não conhecemos todos os elementos da narrativa, pois como problematiza Eco (1994, p. 84), somos sempre limitados pelo universo contido nas letras narradas na obra literária e não temos como criar super interpretações que recriem o livro, desconsiderando as limitações que são impostas aos leitores. Porém, na história narrada por Jane Eyre – a protagonista – a redenção surge como uma alternativa ao mal imposto como se fora manifestação de bondade cristã. 

2. Do confronto com o mal ao encontro com a salvação

O mal na obra aparece como a ausência da concretização do bem ou como a sua negação e também como algo que pode ser vivenciado e recebido por uma pessoa para impor sofrimento às outras pessoas. Para Godinho (2016), na lógica do cristianismo, o mal se constitui em uma ausência que se concretiza em práticas. O mal seria, portanto, a ausência de Deus, o divino depositário do bem nas práticas humanas. 

Mesmo reconhecendo a existência de diferenças culturais sobre a noção de mal, Berlin (2016, p. 40-42) se preocupa com conceitos que buscam relativizá-lo, pois em sua visão esta perspectiva poderia fazer com que o bem não existisse em si mesmo ou que o mal pudesse concretamente desaparecer no interior das práticas humanas. Em sua concepção, todas as pessoas “têm um senso básico do bem e do mal, não importa a qual cultura pertençam” (BERLIN, 2016, p.42). 

Em Jane Eyre, as maldades da Sra. Reed e de outros personagens surgem travestidas de atos bondosos, como se houvesse um desconhecimento do sentido de mal que se confundiria então com o ideal cristão de bem. Assim, as maldades da viúva do tio de Jane são vistas pelo diretor da escola onde Jane foi colocada como uma bondosa tentativa de educar a jovem para uma vida cristã correta em que ela estivesse pronta para superar as artimanhas do mal: 

- Suas decisões são muito pertinentes, madame – retorquiu o Sr. Brocklehurst – A humildade é uma graça cristã, sendo particularmente apropriada aos alunos de Lowood. Eu cuido pessoalmente para que seja cultivada entre eles. Tenho analisado as melhores maneiras de esmagar nas crianças esse sentimento mundano que é o orgulho. (BRONTË, 2017, p. 50)  

Segundo o diretor Brocklehurst, ao trancá-la em quartos escuros, suprimir sua alimentação, gritar com ela, excluí-la do convívio familiar e humilhá-la, a Sra. Reed não adota condutas maldosas contra a adolescente, mas uma forma de cultivar em sua personalidade os valores cristãos. São diversas formas de violência manifestas sob o pretexto de ensinar a moral cristã e a humildade, e de “esmagar o orgulho”. 

Em uma obra publicada originalmente em 1847, por uma das celebradas irmãs Brontë, Charlotte, o tema do mal como forma de manifestar o bem no cristianismo, ganha força do protesto contra a hipocrisia e a violência que são manifestadas como se fossem formas de trazer o reino de Deus mais próximo a todas as pessoas, em processos que visam despersonalizar e arrancar liberdades e identidades. 

A tia pretende despersonalizar Jane, ao lhe arrancar o direito a utilizar sua grande imaginação, sob o pressuposto de utilizar o cristianismo como instrumento de padronização e homogeneização dos sujeitos através do uso de mecanismos violentos de imposição e coerção. Como uma “boa cristã”, a Sra. Reed pretende retirar a jovem de sua própria estrutura emocional e de sua identidade para lhe impor a “bondade”, o dever e a resignação a valores supostamente cristãos. 

Ao se utilizar de estruturas discursivas que se apoiam na construção de uma suposta bondade cristã em Jane, a tia pretende educá-la para o reino de Deus. Neste momento, a narrativa força à reflexão sobre discursos pretensamente pautados no cristianismo que se apoderam de discursos, ideologias e poderes violentos para impor o que se considera como sendo práticas cristãs para que toda a sociedade possa viver este “cristianismo”. 

Dialogando sobre a importância da religiosidade na experiência humana, Figueira traz o questionamento sobre em que ela tem contribuído na vida em sociedade: 

O que importa é saber que existe uma abordagem da experiência religiosa que levanta a indagação: em que a religião contribui para que os humanos sejam menos cruéis? O que faz valer a pena que humanos prossigam fazendo religião?” (FIGUEIRA, 2012, p. 53-54). 

Figueira diverge, portanto, de uma perspectiva sobre o cristianismo que pensa o processo violento como forma de trazer a moral e a bondade, a partir da violação dos direitos das pessoas. Deste modo, as ações da Sra. Reed em relação a Jane, agredindo e ameaçando, como formas de educar e supostamente trazer valores cristãos para o centro da cena, são contrárias ao debate proposto por Figueira sobre o legado das religiões para a sociedade. 

Esta confusão entre maldades que lhe são impostas como se fossem a manifestação de bondades cristãs, em um processo discursivo que é defendido por empregados da casa e pelo diretor da escola, gera a confusão na mente cada vez menos ingênua de Jane. Ela não compreende o bem e o mal porque o que lhe ensinam como sendo o bem é a prática de maldades, violações, imposições e outras formas de opressão e violência, supostamente em nome do bem comum e de Deus. 

Zizek (2016, p. 132-133) considera que uma parte significativa dos cristãos esquece o legado transformador desta religião, no sentido de pensar o ser humano e a resistência ao mal, por enfocar crenças pautadas em uma suposta fúria divina contra todos os desviantes de alguns conceitos pretensamente cristãos que devem ser rechaçados e, de algum modo, agredidos, através de ações que destroem a dignidade humana. 

Para além da tortura e das ofensas que recebe, Jane se vê como uma pessoa que busca a Deus, pois não acredita que sua conduta seja religiosamente reprovável e nem consegue enxergar a bondade da Sra. Reed. Ela busca a Deus e tem em sua fé, mais do que um alívio, a própria construção de sua existência. Ela se agarra à busca intensa por Deus, não como um lenitivo para a situação desesperadora em que encontra, e sim porque é a fé que a leva a pensar o mundo e a buscar compreender o outro que a marginaliza, exclui e agride em nome de um deus que ela não consegue reconhecer: 

Apenas uma ideia vívida ainda se movia dentro de mim: a lembrança de Deus. Esta trazia uma prece não dita, cujas palavras iam vinham dentro de minha mente inerte, como algo que pedisse para ser sussurrado, sem contudo encontrar energia para tal. “Não Vos afasteis de mim, porque o mal se aproxima, e não há ninguém a quem eu possa recorrer” (BRONTË, 2017, p. 401). 

O Deus que ela acredita é diferente do Deus de sua tia. Ela não enxerga o Criador como alguém que retira a alegria, a singularidade e a individualidade de cada pessoa para prepará-la contra as armadilhas dos demônios, mas como alguém que a recebe com amor e a aceita como ela é, e se coloca ao seu lado no sofrimento e não contra ela. A violência e a agressão do deus do diretor e de sua tia não combinam com o Deus em que ela acredita. O uso de poderes terrenos como forma de impor valores supostamente cristãos não parece condizer, em sua jovem experiência de vida, com o Deus que ela aprendeu amar e no qual demonstra confiar em todos os momentos. 

Zizek (2016, p. 158), refletindo sobre a religiosidade cristã, argumenta que a manifestação concreta da fé, na vida de uma pessoa, “nunca se trata apenas de acreditar - é preciso acreditar na própria crença”. São as crenças de outras pessoas em Cristo, que não parecem as mesmas de Jane e tornam um pouco confuso o universo religioso para ela, que a levam a identificar o surgimento do mal nas práticas supostamente de beneficência cristã da Sra. Reed e do Sr. Brocklehurst 

Este bem que aparece em sua concepção na forma de mal a leva a questionar não a Deus, mas aos humanos e sua compreensão sobre as crenças cristãs. Jane fica confusa e tem algumas irrupções de fúria, por não entender e nem aceitar o cristianismo como lhe é imposto e nem o desejar como um caminho viável para sua existência, ao mesmo tempo em que clama a Deus para que Ele fique junto a ela frente ao mal que a cerca. 

Olhar para obras literárias é importante para compreender a realidade social e ser capaz de reinventá-la. Deleuze e Guattari (1995, p. 10-14) veem os livros de literatura como máquinas que imitam o mundo sob perspectivas ressignificadas. Em sua concepção, “o mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo a imagem do mundo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 14). Esse livro-imagem do mundo nos permite pensar a sociedade a partir de narrativas literárias e mergulhar na complexidade de temáticas trazidas pelas obras. Sayao (2020) afirma que não podemos perder de vista o caráter transgressor da literatura construindo imagens do mundo e abrindo caminhos para pensar sobre nossas realidades, a partir de ângulos que não se conformam com as padronizações e conceitos impostos pela sociedade. 

Quando Jane sai da função de professora na escola de Lowood e, após uma jornada, finalmente se estabelece como preceptora da menina protegida pelo Sr. Rochester, apesar do mau humor do patrão e de uma atitude não muito educada dele para com todas as pessoas, ela passa a pensar em novas possibilidades em sua vida. O que a protagonista passa a enxergar é o sonho do surgimento de uma nova oportunidade como forma de ser retirada da condição de tristeza e humilhação para assumir a alegria que teve apenas no lar materno/paterno. Sua fé faz com que perceba a transitoriedade de sua atual condição e coloque em destaque a esperança de que a redenção da vida de humilhações que é obrigada a experimentar possa ser superada pela crença em um Deus que busca se relacionar intimamente com os humanos. 

Ao longo do fio narrativo temos vários momentos, e sob ângulos diversos, a metaforização poético-literária do plano da salvação cristã e da kenosis de Cristo. Ele perpassa a lógica das incompreensões e do desnível entre discursos e crenças e atravessa os sofrimentos que preparam a protagonista para assumir em sua própria experiência a condição de uma mulher com a oportunidade de oferecer gratuitamente o amor como forma de redenção a outra pessoa que se encontra na obra na condição de alguém que não consegue mais distinguir adequadamente o bem do mal. 

É como se sua presença humilde trouxesse a oportunidade de percepção dos desvios alheios e de ela mesma se reinventar no contato com outras pessoas. Nela, a obra metaforiza conceitos importantes do cristianismo como kenosis e o amor fraterno, ao mesmo tempo em que traz narrativas presentes em diversos momentos dos evangelhos, a partir do uso de figuras literárias como alegorias, paradoxos, alusões, metáforas e analogias. É a literatura permitindo olhar para valores do cristianismo em diálogos sobre temas importantes para o cristianismo, a partir da construção narrativa ficcional, como afirma Manzatto (2012, p. 23-24). 

A obra traz um olhar por dentro da sociedade, sob a perspectiva de experimentar a graça de Jesus Cristo, o Messias redentor prometido desde o Antigo Testamento, que assumiu as culpas de toda a humanidade para oferecer gratuitamente a salvação que lhe retira a condenação e lhe atribui uma justiça da qual não é merecedora. 

Na concepção de Vattimo (2018, p. 51-52), a kenosis é um tema fundamental para o cristianismo e por isso deve ser examinado de forma mais densa para além de eventuais simplificações discursivas que muitas vezes parecem predominar. O autor chama a atenção para o fato de a metamorfose de Cristo de divino em humano ser o começo de um processo de afirmação do reino de Deus que estava distante da realidade humana, reinventando concepções de mundo e formas de agir diante do outro e de si próprio, superando (pre)conceitos enraizados no cerne da sociedade, inclusive naquelas predominantemente cristãs. 

Para Martins de Souza & Castro (2021, p. 488-490), Tolstói defende em O reino de Deus está em vós que este não é somente um porvir, mas um agora que deveria se traduzir em um processo de transformação das pessoas, no sentido de se aproximar da proposta de Cristo que perpassa a renúncia a si mesmo para proclamar uma nova oportunidade de vida para todos. Os autores consideram que Tolstói, ao defender que Cristo renunciou à sua condição divina para se encontrar com a humanidade e salvá-la do mal, coloca os seus seguidores diante a necessidade de assumir diversas renúncias, para buscar a paz e o bem de todos, mesmo em detrimento de si mesmos. 

Jane amava o Sr. Rochester, quase se casou com ele, mas foi impedida pelo fato de, sem que ela o soubesse, ele já estar casado com uma mulher que sofria de sérios problemas psiquiátricos. Ela se reconcilia com a tia e com as primas, mas ainda distante da residência delas e do Sr. Rochester, trabalhando humildemente como professora ao lado do clérigo John Rivers, sonhava com o antigo patrão e ex-noivo. Ela não aceita o amor de Rivers, embora amasse a toda sua família, porque cultivava um sentimento proibido por Rochester. É então que ocorre o que Eagleton (2020, p. 106-107) considera uma estratégia manipuladora dos autores para construir finais felizes para seus protagonistas: a mulher de Rochester morre em um acidente e ele fica seriamente ferido ao ponto de perder a visão. 

Como Jane se encontra fisicamente muito distante de Rochester e ele é casado, a solução para o encontro entre os dois somente seria possível a partir de tragédias e elementos sobrenaturais. Sem muitas informações a respeito da condição do ex-noivo, Jane pede a Deus que fique ao lado dele e fica mais tranquila porque aprendeu, nos ambientes hostis em que foi socializada desde a morte de seus pais, a ter no encontro com sua fé a esperança de não ser seduzida pelo mal em busca da felicidade, como algo que se sobrepõe a sua condição atual: 

Eu me pusera de joelhos para orar pelo Sr. Rochester. Erguendo o rosto, com meus olhos turvos pelas lágrimas, observei a Via Láctea. Reconhecendo-a – e pensando nos incontáveis sistemas que se espraiam no espaço, em suaves traços de luz – senti toda a força de Deus. Sem dúvida Ele iria velar por aquilo que criara. Concluí que a terra não se acabaria nunca, nem as lamas que ela abriga. E transformei minha prece em agradecimento: a Fonte da vida era também o Salvador dos espíritos. O Sr. Rochester estava em segurança. Estava nas mãos de Deus, e por Deus seria guardado. Tornei a me aninhar no chão, e logo já dormia o sono do esquecimento (BRONTË, 2017 p. 438). 

Em seguida ocorre a magia final da narrativa que fica marcada por elementos sobrenaturais. Como ocorre em outras obras conhecidas da literatura universal, como em O jardim secreto, de Frances Burnett (1993), em que o protagonista evoca a presença de seu pai que se encontra fisicamente a quilômetros de distância, através de um antigo ritual, é o sobrenatural que resolve o problema da heroína, como argumenta Eagleton: 

Já vimos que alguns romances usam expedientes de contos de fadas para criar finais felizes que, de um ponto de vista realista, parecem inalcançáveis. Jane Eyre, por exemplo, consuma a reunificação entre Jane e seu patrão ferido, fazendo com que ela ouça a voz dele, bradando ao vento, a grande distância (EAGLETON, 2020, p. 165). 

Como a obra enfoca um encontro da religiosidade com os desafios do cotidiano, é promovido o encontro de fé de Jane com manifestações divinas, pois, após as orações da protagonista em favor de Rochester, ocorre uma comunicação sobrenatural entre os dois, através do vento, mesmo localizados a centenas de quilômetros de distância um do outro: 

E perguntei a Deus, em minha angústia e humildade, se já não era bastante meu tormento, minha desolação. Se não era hora de ter novamente um pouco de paz e felicidade. Sabia que merecia tudo que estava passando, mas não aguentava mais. E todo meu coração explodiu, quase à minha revelia, nas palavras que me escaparam dos lábios: ‘Jane! Jane! Jane!’. 
- O senhor pronunciou essas palavras em voz alta? 
- Sim, Jane. E alguém que me ouvisse, diria que eu estava louco, porque as pronunciei com uma energia frenética. 
- E isso aconteceu na noite de segunda-feira, por volta da meia-noite? 
- Sim. Mas a hora não importa. O mais estranho foi o que aconteceu depois. Você vai achar que sou supersticioso – Alguma superstição tenho em meu sangue, não nego, mas isso foi real – pelo menos foi real o que ouvi e que relatarei a seguir: “Enquanto eu exclamava ‘Jane! Jane! Jane!’, uma voz – eu não saberia dizer de onde veio, mas sem dúvida foi uma voz – respondeu ‘Já vou! Espere por mim!’ E, no momento seguinte, sussurrou, levada pelo vento, ‘Onde está você?’ (BRONTË, 2017, p. 596). 

Enquanto ela orava escutou de forma sobrenatural a voz de Rochester, como uma conclamação à reconciliação e ao encontro com a felicidade. A manifestação do final feliz vem após a tragédia da mulher de Rochester, que cai do telhado em meio ao incêndio na mansão, enquanto ele perde a visão. Ele imagina como Jane poderia lhe mostrar um novo caminho em sua vida que pudesse fazê-lo reencontrar-se consigo mesmo e com as outras pessoas. 

No mesmo sentido, Jane pensa em seu próprio papel junto a Rochester como sendo aquela que ofereceria um amor gratuito que traria profundas transformações em sua vida: “Até aquele momento, minha fuga, eu sabia, ainda não fora descoberta. Seria só voltar a ser aquela que o haveria de confortar, seu orgulho, a redentora de sua miséria, talvez até de sua ruína (BRONTË, 2017, p. 433). 

Para Eagleton (2020), os eventos trágicos na vida dos personagens propiciam um final surpreendente que funciona como solução literária utilizada por muitos escritores para provocar mudanças repentinas na narrativa e assim trazer um final feliz para os protagonistas; e ele considera que Charlotte Brontë utilizou este recurso para reconciliar seus personagens e trazer a realização desejada para a protagonista. 

Assim, na fragilidade humana ressurge a figura de Jane como uma mulher que não se deixou vencer pelo ódio cultivado como valor cristão, que perdoa e se reconcilia com os que a ofenderam, mesmo sentindo raiva da violência que lhe fora imputada, perdoa e se reconcilia, como em um chamado a um encontro com um cristianismo que se pauta na crença de um Deus que, como argumenta Vattimo (2018, p. 50-52), desceu à condição humana para reconciliar os humanos consigo e lhes prover a possibilidade de transformação. 

3. A pedagogia do medo e a religião medieval

Outro tema que transpassa a obra é o uso do medo como ferramenta pedagógica presente na educação de Jane, associado a aspectos religiosos. Ao longo do texto a personagem demonstra estar constantemente com medo de seus educadores, os quais justificam muitos de seus métodos a partir de uma teologia cristã medieval, resgatando as figuras do castigo divino e do inferno. 

Ao descrever a forma como via os olhos de sua “benfeitora”, a protagonista os descreve como “cinzentos, usualmente frios”, os quais “pareciam ostentar um brilho parecido com o medo” (BRONTË, 2017, p. 35). O mesmo sentimento é retomado no capítulo 4 no contexto do encontro da protagonista com Mrs. Reed e com o Mr. Brocklehurst, o qual surge na obra como um educador responsável por selecionar alunos para a escola Lowood. Ao ser convocada para se apresentar na sala, onde seria avaliada, Jane relembra o ocorrido nas seguintes palavras: 

Estava agora no corredor vazio, diante da porta da sala do almoço. Parei ali, tremendo de medo. Que miserável e pequena covarde eu me tornara naquela época, por conta do medo gerado pelas injustas punições que recebia! Temia voltar ao quarto e temia entrar na sala. Fiquei dez minutos nessa agitada hesitação, até que o veemente toque da sineta da sala me decidiu: eu devia entrar. (BRONTË, 2017, p. 38)  

O método educacional das punições empregado na criação de Jane a fizera desenvolver a covardia e o medo diante de seus educadores. Porém, tal perspectiva pedagógica não se restringiria a sua casa, a mesma filosofia do amedrontamento também estava presente na escola de Lowood. 

Retornando à cena do diálogo entre os três personagens, presente no capítulo 4, percebe-se que o clima de intimidação e medo continua presente em toda a cena. Ao questionar o comportamento da criança, Mr. Brocklehurst introduz o tema da religião como base para a pedagogia do medo, retomando principalmente a teologia do inferno medieval. 

– Nada é pior que uma criança malcriada – ele começou – especialmente uma menina. Você sabe para onde vão os maus depois que morrem? 
– Vão para o inferno – foi minha pronta e convencional resposta. 
– E o que é o inferno? Pode me dizer? 
– É uma cova cheia de fogo. 
– E você gostaria de cair nessa cova e ficar queimando para sempre? (BRONTË, 2017, p. 40) 

O estudioso do período medieval Jean Delumeau (2009), em seu livro História do Medo no Ocidente, destaca que o medo, como um sentimento presente no cotidiano da Idade Média, tinha suas raízes principalmente fixadas em figuras religiosas, sobretudo no Diabo e no inferno. Desta forma, os religiosos medievais eram influenciados a obedecerem por medo de serem punidos. 

Religião, educação e medo, três ingredientes da pedagogia medieval que podem ser encontrados nos bastidores da obra de Charlotte Bronte, ao refletirmos sobre a forma como Eyre é conduzida por seus educadores. 

Retornando ao texto do capítulo 4, diante da terrível ameaça presente na fala de Mr. Brocklehurst, Jane tenta se defender apelando para a necessidade de manter uma boa saúde para não morrer e ter que ir para o inferno. Porém, seu acusador novamente traz a temática do medo, a partir das imagens religiosas: 

– E como vai manter a boa saúde? Crianças menores que você morrem todos os dias. Eu enterrei uma criancinha de cinco anos há apenas um ou dois dias... uma criança boa, cuja alma está agora no céu. É possível que a mesma coisa não aconteça com você, se fosse chamada agora (BRONTË, 2017, p. 40). 

O medo, como instrumento pedagógico, é apresentado em Casagrande & senzala, de Gilberto Freyre (2004). Ao tratar de práticas de educação no cotidiano do Brasil Colonial, Freyre discute como algumas práticas tradicionais eram utilizadas para inspirar sentimentos de obediência e respeito aos mais velhos, motivadas pelo desejo de se livrar dos lugares sombrios, para onde os maus seriam arrebatados. 

Sem dúvidas que o medo pode ser usado como arma de coerção e controle no processo educacional. O problema é que ensinar baseando- -se no medo não é educar, mas adestrar. Como bem escreveu Ariès (1981, p. 107), ao se referir ao ensino de crianças vinculado ao modelo medieval, tal educação tinha como objetivo simplesmente “[...] adestrá- -las, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separá- -las da sociedade dos adultos”. Esta distinção, presente na Idade Média, entre crianças e adultos, normalmente colocava os menores em grau de importância inferior aos mais velhos. A educação escolástica surgiria neste cenário como uma espécie de fábrica, na qual crianças seriam elevadas em direção às qualidades dos adultos através de um projeto rígido no qual o castigo estava presente. Tal projeto educacional encontrou resistência somente na França, em 1763, através da reorganização do sistema escolar, o qual decidiu abolir “tanto os castigos corporais como os princípios medievais de emulação adotados pelos odiados jesuítas” (ARIÈS, 1981, p. 119). 

Retornando ao desenrolar da cena do diálogo entre os personagens do capítulo 4, Mr. Brocklehurst continua a questionar Jane sobre seus hábitos religiosos, como oração e leitura da Bíblia. Ele deseja saber não somente sobre o que ela lê dos livros bíblicos, mas também quais seriam suas preferências. De forma sincera, Jane afirma gostar “das Revelações, e do livro de Daniel, e da Gênese e de Samuel. E um pouco do Êxodo, e algumas partes dos Reis e das Crônicas, e de Jó e Jonas.” (BRONTË, 2017, p. 41). Sua lista não agrada seu inquisidor. Ela não cita os Salmos, o que o deixa frustrado e decepcionado com a garota. De forma contraditória ao cenário presente, Mrs. Reed se introduz no diálogo acusando Jane de fingimento. 

Jane se cala diante da impotência de se defender de dois adultos que a classificam de forma contrária a tudo o que ela é. Ao receber o diagnóstico dado por Mrs. Redd, Mr. Brocklehurst reforça o estereótipo retomando novamente a imagem do inferno: “O fingimento é, de fato, uma falta muito grave numa criança – disse Mr. Brocklehurst. – É semelhante à falsidade, e todos os mentirosos terão sua parte no inferno, queimando no fogo e enxofre” (BRONTË, 2017, p. 42). 

Se colocando como um educador exempla, Mr. Brocklehurst se gaba de seus métodos empregados na educação dos alunos de Lowood, a partir da fala de sua filha. 

A humildade é uma virtude cristã, e especialmente adequada aos alunos de Lowood. Eu cuido, pessoalmente, para que seja constantemente cultivada entre eles. Estudei a melhor maneira de mortificar-lhes o mundano sentimento da vaidade. Ainda outro dia tive a mais agradável prova do meu sucesso. Minha segunda filha, Augusta, foi visitar a escola com a mãe, e ao retornar disse: “Oh, papai querido! Como as meninas de Lowood parecem calmas e simples, com seu cabelo penteado para trás das orelhas, seus longos aventais, e aqueles bolsinhos por fora dos vestidos... quase parecem filhas de gente pobre! Olharam para o meu vestido e o da mamãe como se nunca tivessem visto um vestido de seda!” (BRONTË, 2017, p. 42) 

Mrs. Redd se encanta com a descrição de tal método educacional. 

Esse é o tipo de sistema que conta com minha inteira aprovação – retornou Mrs. Reed. – Se eu procurasse por toda a Inglaterra, dificilmente encontraria um sistema que se adequasse com mais perfeição a uma criança como Jane Eyre. Firmeza, meu caro Mr. Brocklehurst, defendo a firmeza em todas as coisas. A firmeza, madame, é a primeira das obrigações cristãs, e é observada em tudo que se refere ao nosso estabelecimento em Lowood. (BRONTË, 2017, p. 45) 

No encerramento do diálogo entre os três personagens, Mr. Brocklehust conclui sua sessão de aconselhamento a Jane materializando sua perspectiva educacional a partir do medo por meio de um livro que contém uma história que associa morte ao mau comportamento: 

Menina, aqui está um livro intitulado “Guia das Crianças”. Leia-o com fé, especialmente a parte que contém “Um relato da terrível e súbita morte de Martha G.”, uma criança má, adepta da falsidade e fingimento. Com essas palavras Mr. Brocklehurst colocou em minhas mãos um livrinho encadernado e, tendo chamado a carruagem, partiu. (BRONTË, 2017, p. 43) 

O diálogo encerra-se retomando a temática do medo como método educacional, convidando o leitor a refletir sobre o uso de tal instrumento como ferramenta de construção social. Jane Eyre nos traz, de forma vívida, honesta e transparente, os impactos psicológicos negativos de uma criança criada em tal contexto, mesmo quando a religião é usada para justificar tal filosofia. 

Considerações finais

A crença na salvação e transformação dos humanos, a partir da graça de Cristo, segundo Zizek (2014, p. 100-101), é um dos legados cristãos que deveriam ser defendidos por toda sociedade contemporânea. Segundo o autor, a crença na salvação revoluciona preconceitos sociais por romper com o princípio da autoridade que deve ser seguida e por reunir toda a humanidade sobre o ethos do não merecimento, a partir do conceito da graça que foi oferecida pela vontade de um Deus. Este não merecimento traria uma nova forma de vivenciar os relacionamentos humanos, não mais sob a égide da verticalidade, mas sob a horizontalidade, pois se o próprio Criador se transformara em um dos humanos como alguém que abre mão de autoridade e privilégios para partilhar a vida com os humanos, a vida de todas as pessoas deveria então ser percebida a partir desta nova condição de igualdade natural que sobrepõe a desigualdade natural prevalecente no coração das sociedades. 

É na condição de desigualdade por nascimento que Jane é colocada ao longo da primeira metade da obra, pois, a esposa de seu tio (não vista pela protagonista como dignamente uma tia) a humilha, sob a alegação de que o teto, a parca alimentação e as poucas roupas que lhes são oferecidas seriam a manifestação de um beneplácito de uma mulher que não teria quaisquer obrigações para com ela. Assim, ao invés da nova horizontalidade dos relacionamentos humanos, manifesta a partir da kenosis de Cristo, a esposa do tio se coloca como superior benfeitora que ajuda a pobre órfã a não viver ao relento. Desta forma, a kenosis aparece sob a forma de inversão da lógica do cristianismo, pois a dona da casa se enxerga como alguém que concede as sobras à sobrinha do marido e a humilha diante dos primos, como se fora uma forma de manifestar humildade e amor cristãos, mesmo sem metamorfosear a desigualdade social em igualdade humana baseada na ética cristã. 

A ética cristã, que defende a igualdade entre todas as pessoas como recebedoras da graça de Cristo, que vê no outro uma parte de si mesmo, de forma a necessariamente existir predisposição a enfrentar junto ao outro suas dificuldades, aparece através da sra. Reed sob a marca da inversão da mensagem de Cristo. Nesta lógica invertida, o dinheiro e o poder são utilizados para humilhar, agredir e segregar, sob o pressuposto do merecimento cristão que transforma em “benfeitora” a agressora, por supostamente assumir o papel de “boa cristã” que ensina valores e moral para a jovem sobrinha do marido. 

Jane se reconcilia com sua tia abusadora e com o Sr. Rochester, tem seu encontro com o amor e com a felicidade e assim parece dizer aos leitores que é possível não aceitar a violência e o arbítrio, disfarçados de moral cristã e não se deixar envolver por eles ao ponto de reproduzi-los sob a forma do cultivo do ódio contra os agressores. Ela tem na fé, não como mecanismo de aceitação de uma condição dada, mas como experiência concreta transformadora para sua vida.  

Os leitores são então convidados pela narradora e pela autora a olhar para sua própria experiência, sob outro ângulo, não com foco no ódio, no abuso e nem no sofrimento, mas na possibilidade transformadora de vivenciar a reconciliação com outras pessoas sem renunciar a suas próprias crenças, mesmo que sejam obrigados a lidar com visões diferentes do cristianismo, que impõem a violência e o ódio, sob o discurso de uma pretensa moral cristã. 


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