Lúcia Pedrosa-Pádua*
*Doutora em Teologia Sistemático-pastoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora e pesquisadora nas áreas de antropologia, mariologia e espiritualidade. Contato: lpedrosa@puc-rio.br
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O estudo da mística de Santa Teresa traz importante contribuição para a compreensão do mal provocado pelo pecado. Embora a ênfase de Santa Teresa seja a experiência do amor de Deus e o convite à entrega pessoal e coletiva a este amor, a autora nos apresenta textos contrastantes com esta experiência. O artigo explora textos relevantes, sentidos e experiências teresianas do pecado. Percebese a contribuição da mística para a compreensão teológica e existencial da realidade do mal na pessoa, pelo qual há uma recusa a reconhecer a Deus como princípio e fim humanos, profundo sofrimento interior e sérias consequência éticas. A experiência teresiana apresenta uma perspectiva antropológica, não moral, do pecado. O artigo apresenta a realidade do pecado em relação a Deus, explora aspectos do pecado na pessoa humana, demonstra esta realidade como um risco nunca superado na vida espiritual e articula o pecado com a ausência de oração.
Palavras-chave: Mística; Santa Teresa de Ávila; Pecado; Mal
The study of the mystique of St. Teresa brings an important contribution to the understanding of the evil caused by sin. Although St Teresa’s emphasis is the experience of God’s love and the invitation to personal and collective surrender to this love, the author presents us with contrasting texts with this experience. The article explores relevant texts, meanings and Teresian experiences of sin. The contribution of the mystique to the theological and existential understanding of the reality of evil in the person is perceived, by which there is a refusal to recognize God as a human principle and end, deep inner suffering and serious ethical consequences. The teresian experience presents an anthropological, not moral, perspective of sin. The article presents the reality of sin in relation to God, explores aspects of sin in the human person, demonstrates this reality as a risk never overcome in the spiritual life and articulates sin with the absence of prayer.
Keywords: Mystique; Saint Teresa of Avila; Sin; Evil
Santa Teresa de Ávila, a mística espanhola do século do XVI, em sua vasta obra, mostra-se muito mais interessada nas recompensas terrenas do amor e em motivar suas irmãs e seus leitores à entrega ao Amado e à realização de uma missão transformadora do que em ressaltar as consequências eternas do pecado. Para ela Deus
não guarda para a outra vida a recompensa do amor que Lhe temos; o pagamento começa ainda nesta. Ó Jesus meu, quem pudesse dar a entender o ganho que há em nos lançarmos nos braços deste Senhor nosso e fazer um contrato com Sua Majestade; que eu pertença ao meu bem-amado, e meu bem-amado a mim, pois meu bem-amado é meu, e eu dele!.(TERESA DE JESUS, 1995, CAD 4,8, p. 868-869)1 .
Por isso, quando escreve sobre o pecado, o primeiro interesse de Teresa é mostrar caminhos de restabelecimento da fundamental relação entre Deus e a “alma”. Hoje sabemos, pelos estudos da antropologia teresiana, que o termo “alma” significa a pessoa como um todo, embora ressalte sua dimensão de interioridade dotada de extraordinária riqueza (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p. 142-143). Sua perspectiva é teológico-antropológica e não moral. O pecado é uma realidade “sofrida por Deus” e destruidora da verdadeira humanidade, porque debilita ou impossibilita à pessoa relacionar-se com Deus-amor.
O artigo apresenta a realidade do pecado em relação a Deus; em seguida, explora aspectos do pecado na pessoa humana, demonstra esta realidade como um risco nunca superado na vida espiritual e articula o pecado com a ausência de oração. São estudados seis livros teresianos: Livro da Vida, Caminho de Perfeição, Castelo Interior ou Moradas, Relações, Exclamações e Conceitos do Amor de Deus.
A mística de Teresa de Ávila nos leva à afirmação de que todas as coisas estão em Deus. N’Ele está tudo o que a pessoa realiza, de bem ou de mal. A imagem é muito significativa: Deus é como um espelho ou grande diamante no qual todas as realidades humanas são refletidas, inclusive o pecado que provoca tanto mal.
No Livro da Vida, Teresa narra a experiência que a faz surpreender- -se com Deus e horrorizar-se consigo mesma: a dos próprios pecados refletidos nesse diamante. Diante de Deus, que é claridade e limpeza, o pecado pessoal é desmascarado e visto como o que é: realidade alheia à realidade de Deus – “tão fora do que é Deus” (TERESA DE JESUS, 1998, V 40,10, p. 406, T.A.). No entanto, é realizado diante e dentro de Deus.
Assim, podemos perceber três elementos: há um contraste radical entre o pecado e Deus; é Deus o revelador do pecado enquanto pecado; ao mesmo tempo Deus, misericordioso, sente em si este pecado:
Nesse diamante vemos tudo o que fazemos, pois ele encerra tudo em si, não havendo nada que exista fora de sua imensidade. Foi um espetáculo maravilhoso ver nesse claro diamante, em tão breve espaço de tempo, tantas coisas juntas. Como lastimo, cada vez que me lembro disso, ter visto coisas tão feias como os meus pecados refletidas naquela claridade translúcida. Diante dessa lembrança, nem sei como posso resistir; fico tão envergonhada que não sei onde me esconder. Quem dera se pudesse explicar isso aos que cometem pecados muito grandes e desonestos, para que se lembrassem de que não ficam ocultos e de que Deus, com razão, os sente, visto que cometemos esses pecados na presença de Sua Majestade, sendo grande o desacato com que O ofendemos! É gravíssima coisa cometê-lo diante de tão grande Majestade, à qual muito repugnam coisas semelhantes. Dessa maneira, vemos ainda mais a Sua misericórdia, porque, vendo que sabemos tudo isso, ainda assim nos suporta. (TERESA DE JESUS, 1995, V 40,10, p. 285-286)
A mesma doutrina será repetida em Castelo Interior, em que Deus será comparado a um grande e belo palácio, onde mora o pecador. O pecador não tem como afastar-se deste palácio. Aqui, fica mais claro que os pecados são realizados no interior de Deus:
Pode acaso o pecador, para fazer suas maldades, afastar-se dele? Não, por certo. Pelo contrário, é dentro do próprio palácio – o próprio Deus – que se passam as abominações, desonestidades e malvadezas que nós, pecadores, praticamos. Oh! Coisa temerosa e digna de grande consideração! (TERESA DE JESUS, 1995, 6M 10,3, p. 559)
Teresa percebe, por um lado, que a situação de pecado obscurece uma realidade pessoal cuja vocação é ser transparente e bela, refletindo a imagem de Deus. Por outro lado, percebe o mistério do compromisso de Deus com o destino humano, ao assumir integralmente em si a humanidade com tudo o que ela traz, envolvendo-a com sua graça, misericórdia e estímulo.
Esta realidade percebida de maneira misteriosa – mística – nos leva, hoje, a refletir sobre a dimensão teologal da ética. É possível dizer que Teresa intui, pela mística, que Deus se dispõe a assumir a humanidade desde a criação como espelho que, de alguma forma, representa as ações humanas. O criador faz que seja possível ter olhos para ver a realidade do pecado e atuar de maneira adequada. Como a pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus, esse, de alguma maneira, recebe a imagem da pessoa dentro de si, assume sua realidade mais dramática, solidariza-se com ela e suscita na criatura a força para a mudança de imagem.
Pela encarnação e pela morte de Cristo em consequência do pecado humano revela-se, de maneira ainda mais surpreendente, esta relação solidária de Deus com a humanidade pecadora. Esta relação perdura, pois o Cristo segue sofrendo através do sofrimento da sua Igreja. Foi o pecado que matou a Deus com muito sofrimento e o sacrifício redentor do Cristo se renova sempre que pecamos (TERESA DE JESUS, 1995, C 3,8; Excl 10,1; p. 309 e 895). Assim sendo, a perspectiva de graça e salvação são sempre preponderantes na obra teresiana, sem culpabilismos ou covardias.
Embora Teresa trate do pecado em relação com Deus, a perspectiva teresiana predominante é antropológica. Como mostra disso, abordaremos a seguir três questões: o pecado como negação da humanidade, o pecado como risco permanente e a relação entre pecado e ausência de oração.
Castelo Interior traz para o nível doutrinal a contemplação mística do mistério do mal que, de maneira autobiográfica, é descrita em obras anteriores de Santa Teresa (ALVAREZ, 1996, p. 148-153). A primeira é a experiência descrita em Vida, ao final de 1565, e que completa a visão da alma como espelho que reflete a imagem de Cristo. Observemos como, aqui, o espelho é a pessoa, chamada a refletir o próprio Cristo:
Compreendi que, quando a alma está em pecado mortal, esse espelho se cobre de densa névoa, e fica muito escuro; o Senhor não pode se refletir nele nem O podemos ver, embora Ele esteja sempre presente, dando- -nos o ser. (TERESA DE JESUS, 1995, V 40,5, p. 284)
Trata-se de uma realidade difícil de ser explicada, embora Teresa o faça com maestria. Ela mesma percebe como a experiência desborda a linguagem: “É enorme a diferença entre ver e explicar essas coisas, pois não há palavras que bastem para tanto”. (TERESA DE JESUS, 1995, V 40,5, p. 284)
A segunda experiência está em Relações, provavelmente de 1571. Trata-se de uma visão mística em que Teresa percebe o contraste entre a pessoa em graça, em comunhão com Deus e cheia de liberdade e, em comparação, a pessoa em pecado, atada, cega sem poder andar e ouvir, alienada de suas melhores possibilidades. Vale a pena conferir o texto:
Uma vez, estando eu em oração, o Senhor me mostrou, por um estranho modo de visão intelectual, o estado da alma em graça; em Sua companhia vi a Santíssima Trindade em visão intelectual, vindo dela, até a alma, um poder que se assenhoreava de toda a terra. (…) Mostrou-me Ele também o estado da alma em pecado, sem nenhum poder, mas como alguém que estivesse de todo atado e preso, com os olhos tapados, que, mesmo querendo, não pode ver, nem andar, nem ouvir, encontrando-se em grande obscuridade. (…) Pareceu-me que, se entendesse isto tal como eu vi – pois mal se pode descrever -, não seria possível que alguém quisesse perder tanto bem nem estar em tanto mal. (TERESA DE JESUS, 1995, R 24, p. 815)
Ambas as contemplações possibilitam a Teresa de Jesus uma especial compreensão do que seja o mal vivido pela pessoa em situação limite do pecado mortal: ele é a negação do humano. Importante é perceber este sentido de separação de Deus que a imagem teresiana no traz, algo “temeroso e digno de consideração”, como citado acima. Como diz Rahner, o pecado não é apenas uma rejeição de uma lei divina, mas algo mais profundo e substancial. Trata-se de uma rejeição, um não à oferta que Deus faz de si mesmo, da autocomunicação da vida divina (RAHNER, 1989, p. 140).
No Castelo Interior, tanto na primeira quanto na sétima morada, estas experiências são retomadas. Nesse livro encontramos a alegoria do castelo interior, a pessoa é como um castelo de diamante habitada por Deus que o ilumina como um sol. Em contraste com a luminosidade do castelo encontrada na pessoa em graça, Teresa diz da pessoa que está em pecado mortal: “Não há treva tão tenebrosa, nem coisa tão escura e negra que lhe compare” (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 2,1, p. 445).
A pessoa torna-se deteriorada em suas estruturas, pois a força do pecado penetra nas zonas mais secretas do castelo:
Como ficam os pobres aposentos do castelo! Como se perturbam os sentidos, isto é, a gente que aí vive! E as faculdades – que são os guardas, os mordomos, os mestres-salas -, com que cegueira e incompetência desempenham suas funções!. (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 2,4, p. 446)
A pessoa torna-se impedida de tornar-se ela mesma, impedida de se estruturar segundo os seus próprios desejos. Fecha-se o acesso a si mesmo. Neste sentido, o pecado desorienta, desvia a pessoa de sua própria vocação, que é divina. Tata-se de um erro dramático de destinação. (GESCHÉ, 2003, p. 56).
No livro Exclamações, Teresa define o pecado a partir da perspectiva existencial de conflito e divisão interior. Trata-se de uma divisão profunda radicada no espírito, que alcança a psicologia e a sensibilidade (CERVERA, 1981, p. 121), como “... uma guerra campal de todos os sentidos e faculdades da alma contra Deus!” (TERESA DE JESUS, 1995, Excl.14,2, p. 899).
Em Vida, Teresa narra dramaticamente esta divisão, chamada por ela de um “mar tempestuoso” em que viveu quando não fazia caso dos pecados veniais e não se afastava dos perigos nos pecados mortais, testemunhando: “não me rejubilava em Deus nem me alegrava no mundo” (TERESA DE JESUS, 1995, V 8,2, p. 62). Com o desenvolvimento da experiência espiritual, esta divisão interior se torna mais sutil, mas não menos verdadeira. Teresa se sente dividida “em pedaços”, sem a unificação que a faria estar sempre “ocupada em Deus”, como nos mostra o texto abaixo, no qual Teresa faz uma releitura psico-existencial do texto paulino da carta aos Romanos (Rm 7,15):
Quando, Deus meu, a minha alma estará toda unida em Vosso louvor, e não aos pedaços, sem poder ajudar a si mesma? Aqui vejo o mal que o pecado nos causa, sujeitando-os a não fazer o que queremos: estar sempre ocupados com Deus. (TERESA DE JESUS, 1995, V 17,5, p. 110).
A força unificadora da amizade com Deus e, ao contrário, fragmentadora do pecado é também comparada ao beijo, na meditação que Teresa faz sobre o Cântico dos Cânticos. Ao beijo de Deus se contrapõe o beijo de Judas; contra a amizade que une encontram-se as forças demoníacas fragmentadoras. (TERESA DE JESUS, 1995, CAD 2,13.16, p. 854- 855). Ao pecado pertence o âmbito da falsa amizade e da falsa paz. Ele acovarda para reconhecer que o que é bom vem de Deus (TERESA DE JESUS, 1995, CAD 3,9, p. 864). Ele impede a relação sincera e pessoal com Deus.
O pecado, em Moradas, é a negação da dignidade e beleza da alma. É o anti-castelo, o “castelo em ruínas”, na expressão de Herraiz (HERRAIZ, 1981, p. 46). Esta negação afeta-a moralmente em suas obras. Teresa estabelece, da pessoa em pecado, a mesma comparação com a árvore, só que agora plantada em águas putrefatas e sujas:
Quanto à alma que por sua culpa se afasta dessa fonte e se transplanta a outra de águas sujas e fétidas, não produz senão desventura e imundície... Em suma: ... que fruto pode ela dar? (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 2,2.4, p. 446)
Assim, a alma em pecado torna-se desordenada e incapaz para o bem. Nesta visão antropológica do pecado não há ênfase na distinção entre pecado mortal ou venial ou entre pecado e sua exteriorização. Não interessa a Teresa o pecado como fato, mas a situação de pecado que ele causa no momento de atuar, a desorientação ética.
Deus, por sua parte, jamais desampara a pessoa. A “fonte”, o “sol resplandecente” que está no centro da alma jamais perde seu esplendor e beleza. Ele está sempre dentro da pessoa e nada pode ofuscá-lo ou tirar-lhe a beleza. Outra comparação literária que Teresa faz do pecado, em Castelo Interior, é a de um “pano muito preto” que se interpõe entre o cristal e o sol: o sol continua brilhando sobre ele sem que, no entanto, possa refletir-se no cristal (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 2,3, p. 442).
A pessoa, em pecado, desvincula-se de Deus. É “como se isso [a presença de Deus] não acontecesse... [a alma] não se beneficia em nada” (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 2,1, 445). Em Castelo Interior, tão importante quanto a presença de Deus no centro da alma, dando- -lhe o ser e a vida, é a participação em Sua vida, o inundar-se em sua luminosidade e atuar segundo Deus. Sem a comunicação e comunhão com Deus, a pessoa humana é capacidade não-realizada. É abortada em seu projeto de realização existencial e nos seus frutos, que são as obras.
O pecado é uma realidade que atinge a alma ao longo de todo o seu itinerário espiritual. Uma “constante existencial” que revela o aspecto negativo da alma e sua situação diante da vida de Deus, levando-a à invocação da misericórdia de Deus, à humildade e ao conhecimento próprio (GARRIDO, 1967, p. 352). Teresa tem consciência de que a pessoa humana é miséria diante de Deus. Sua experiência a leva a ressoar internamente o salmista: “Quem será justo diante de ti?” (TERESA DE JESUS, 1995, V 20,28, p. 135); “o justo cai sete vezes ao dia, sendo mentira dizer que não temos pecado” (TERESA DE JESUS, 1995, C 15,4, p. 341); “não há alma tão reta que O contente de todo (...) a minha com certeza não o é, por ser muito miserável, inútil e cheia de mil defeitos” (TERESA DE JESUS, 1995, V 26,1, p. 169); (DOMINGUEZ REBOIRAS, 1970, p. 51).
No entanto, um caminho espiritual precisa ser empreendido, do medo ao destemor, da situação de pecado à situação de graça, da situação de não salvação à situação de salvação porque, mesmo sabendo-se pecadora, a primazia é do chamado gratuito à comunicação e comunhão com a vida íntima de Deus uno e Trino. Lembremos que Deus, como o sol, permanece presente sempre, até mesmo “nos que cometeram pecado mortal”, afirma corajosamente Teresa de Ávila e toda ação é realizada em Deus, que é anterior e mais forte que o pecado. No início deste caminho espiritual, em que predomina a dimensão ascética, sobressai a luta contra o pecado, a desordem interior e o perigo de incorrer no mesmo erro. Quando predomina a dimensão mística, o pecado suscita imensa dor. A memória do pecado é fonte de sofrimento e purificação, ao mesmo tempo em que como prepara a pessoa para novas etapas (MARTÍN DEL BLANCO, 1977, p. 204-206).
No Castelo Interior, em cada passo da vida cristã, isto é, em cada morada, há uma referência ao pecado, embora sob aspectos distintos.2 A vida cristã é uma história de salvação em que o pecado está sempre presente. Daí, não haver espaço para a acomodação farisaica. Ao contrário, nas grandezas de Deus mais se conhece a própria miséria e mais fina se faz a sensibilidade diante dos próprios atos, o que aprofunda a relação entre a santidade e a humildade. A pessoa não ousa levantar os olhos, como o publicano (TERESA DE JESUS, 1995, 7M 3,14, p. 580).
A conversão aparece como meta das primeiras moradas. Ela consiste na libertação do pecado – desfazer-se de hábitos, refazer opções. A partir da conversão, o importante é a atitude de contínua vigilância.
Para expressar melhor a necessidade da conversão, estimular as pessoas a ela e adverti-las para a presença do pecado, como risco constante na vida cristã, Teresa se utiliza de personagens bíblicos que adquirem a característica de tipos representativos desta atitude ou disposição da vida espiritual. Assim, as pessoas que não têm oração transformam- -se em estátuas de sal, por não voltarem os olhos para si mesmas, como aconteceu à mulher de Lot por ter voltado a cabeça e olhado para trás (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 1,6, p. 444).3 Os que não têm oração são como o paralítico que há “trinta anos estava ao redor da piscina” (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 1,8, p. 444)4 .
Para animar as pessoas à conversão e perseverança na vida de oração, Teresa diz ser necessário lembrarem-se do filho pródigo (Lc 15) ao chegar à conclusão de que a própria casa (o castelo interior onde mora Deus) é lugar muito melhor de se viver do que a casa alheia (exterioridade), onde se come a comida dos porcos (TERESA DE JESUS, 1995, 2M 4, p. 455).
Teresa também constitui personagens bíblicos como anti-tipos da fidelidade cristã (LLAMAS, 1982, p. 502). Os mais importantes são Saul, que representa as pessoas que Deus chama para fazer deles reis, mas que depois se perdem por sua culpa e Judas Iscariotes, que mostra definitivamente que, mesmo que a pessoa esteja muito próxima do Senhor, nunca terá segurança de sua salvação (TERESA DE JESUS, 1995, 5M 3,2, p. 499)5 .
A percepção da terrível ação do pecado que rompe a relação do homem com Deus faz com que o temor de Deus seja, segundo Teresa, atitude fundamental na vida cristã. Adquire valor especial, em Moradas, a expressão bíblica: “bem-aventurado o homem que teme o Senhor”, Sl 112(111),1. Esta expressão é colocada no começo das terceiras moradas (TERESA DE JESUS, 1995, 3M 1,4, p. 461), passada a etapa da conversão, correspondente às primeiras e segundas moradas. Nas moradas sétimas, volta a repeti-la: “E que tema mais aquela de vós que se sentir com mais segurança de si mesma. Porque Bem-aventurado o homem que teme o Senhor, diz David” (TERESA DE JESUS, 1995, 7M 4,3, p. 582). Este recurso à Palavra de Deus sob a forma de inclusão mostra bem o valor destas palavras, que norteiam todo o processo do caminho em direção a Deus, especialmente a partir das terceiras moradas até aos que estão nas sétimas. Em outras palavras, dirige-se Teresa aos que já se acham adiantados na vida espiritual:
Tampouco deveis imaginar que, pelo fato de essas almas terem grandes desejos e determinação de não cometer nenhuma imperfeição por coisa alguma da terra, deixem elas de fazer muitas, cometendo até pecados. (...) Refirome a pecados veniais; quanto aos mortais, estão, ao que me parece, livres deles, ainda que não estejam seguras (TERESA DE JESUS, 1995, 7M 4,3, p. 581).
Experiência teresiana, fonte de uma formulação básica das Moradas, é ter muito presentes os pecados, revivê-los (ALVAREZ, 1996, p. 151- 153; PABLO MAROTO. 1982, p. 191; MARTÍN DEL BLANCO, 1977, p. 205-206). Os pecados passados estão presentes, como um lodo, no fundo da alma. O pequeno livro Relações testemunha: “Na oitava de Todos os Santos, tive dois ou três dias muito trabalhosos com a lembrança dos meus grandes pecados...” (TERESA DE JESUS, 1995, R 58,1, p. 835)6 . Em Vida a Santa nos conta que a memória dos pecados passados purifica e prepara a pessoa para receber alguma graça mística (TERESA DE JESUS, 1995, V 26,2, p. 170)7 .
Em Castelo Interior esta experiência está doutrinalmente descrita nas moradas sextas: “... os pecados assemelham-se a um lodaçal, sempre vivos na memória” (TERESA DE JESUS, 1995, 6M 7,2, p. 541)8 . É uma consciência que se aviva à medida que se vive, mais conscientemente, na presença de Deus. Os ataques do inimigo se tornam inclusive mais duros, no sentido de se tornarem mais agudos e sutis. Mesmo as pessoas que recebem muitas graças, possuindo grande comunicação com o Senhor, nunca devem deixar de temer. O pecado é assim um “risco permanente” HERRÁIZ, 1981, p. 46; CASTELLANO CERVERA, 1981, p. 121-122).
Castelo Interior ou Moradas estabelece uma relação entre o pecado e a ausência de oração. Já em Vida Teresa descobrira, por experiência, esta estreita relação, como pode ser percebido no texto abaixo:
E assim comecei, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a envolver-me tanto em tão grandes ocasiões e a estragar a alma em grandes vaidades que tinha vergonha – em tão particular amizade como é tratar de oração – de me aproximar de Deus. Contribuiu para isso o fato de que, como os pecados aumentaram, o gosto e a alegria da prática da virtude começaram a escassear. (TERESA DE JESUS, 1995, V 7,1, p. 51)
Em seguida narrará o movimento oposto:
Eu me estendi tanto, como já disse, para que se vejam a misericórdia de Deus e a minha ingratidão, bem como para que se compreenda o grande benefício que Deus dá a alma dispondo-a a ter oração com vontade, mesmo que a sua disposição não seja a necessária. Com perseverança, tenho certeza de que o Senhor conduzirá a alma a um porto de salvação, como – pelo que vejo agora – fez comigo, apesar dos pecados, tentações e mil quedas que o demônio ocasiona. Queira Sua Majestade que eu não volte a me perder. (TERESA DE JESUS, 1995, V 8,4, p. 63)
Se no castelo interior se realizam as melhores possibilidades da pessoa, Teresa deixa bem claro, nas moradas primeiras, que não é por ter em si este castelo, isto é, não é por ser morada de Deus que o encontro com Ele se dá automaticamente ou mesmo naturalmente. Nem todos entram no castelo, permanecendo apenas ao redor dele: “... existem muitas almas que ficam à volta do castelo” (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 1,5, p. 443). Sua observação em relação a este aparente paradoxo de possuir dentro de si um castelo, mas nem sempre entrar nele, tornou- -se famosa na frase: “há grande diferença entre os modos de estar num mesmo lugar” (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 1,5, p. 443). Trata-se de um alerta. Não entrar no próprio castelo interior traz a possiblidade de frustração da verdadeira humanidade.
A pessoa sem oração impossibilita que aconteça em si mesma a dinâmica da relação dialógica com Deus, elemento-chave da antropologia teresiana. Lembremos que, para ela, a oração é uma amizade com Deus. (TERESA DE JESUS, 1995, V 8,5, p. 63). Por isso, em Castelo Interior, a descrição da alma sem oração, praticamente, coincide com a da alma em pecado. Se esta é relacionada às “trevas”, à “fonte de águas sujas”, às “feras” e ao “diabo”, aquela é comparada, nas primeiras moradas, à “estátua de sal”, e também às “sevandijas” e “feras” que circundam o castelo, semelhança esta adquirida pelo muito que convive com as sevandijas e feras. A alma sem oração é como um “corpo entrevado ou paralítico” que, mesmo tendo pés e mãos, não pode colocá-los em movimento; nas sétimas moradas a alma em pecado mortal é descrita na mesma comparação de “pés e mãos atados”:
é assim quando a alma não está em graça; e não por falta do Sol de justiça, que está nela dando-lhe o ser, mas por ela se mostrar incapacitada de receber a luz, como creio ter dito na primeira morada. Referi-me a uma pessoa à qual foi dado a entender que essas infelizes almas estão numa espécie de cárcere escuro, atadas de pés e mãos, sem poderem fazer qualquer boa ação que lhes seja de proveito para merecer, bem cegas e mudas. É com razão que nos compadecemos delas, vendo que em certa época também estivemos nessas condições. Também com elas o Senhor pode usar de misericórdia. (TERESA DE JESUS, 1995, 7M 1,3, p. 567).
A relação entre pecado mortal e ausência de oração, entendida aqui como ausência de qualquer interioridade, é assim a relação entre duas forças que se implicam, sendo que a força do pecado inclui a força que impede a oração, e sua ausência é expressão do próprio pecado. A pessoa pode permanecer “na ronda do castelo” como o paralítico “que havia trinta anos estava na piscina”. É aí que permanecem muitas pessoas, sem saber o que há naquele castelo, nem quem mora lá dentro, nem quantos quartos comporta (TERESA DE JESUS, 1995, 1 M 1,5, p. 443). É uma situação de desconhecimento de si mesmo e de Deus. Consequentemente, de impotência e falta de liberdade.
Das pessoas que se encontram nesta situação, Teresa não traça nenhum juízo moral. Diz apenas que “são muito desventuradas” e que “correm grande perigo” (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 1,8, p. 444).
O objetivo destas descrições no livro não é moralizante, mas pedagógico. Teresa quer mostrar — com a força persuasiva dos contrários, tão claros na mente e na experiência da Santa — a importância salvífica que adquire o dinamismo interior da graça e o efeito destruidor do pecado. O pecado impede ou dificulta o dinamismo interior em direção a Deus e a realização como pessoa humana, pois destrói as estruturas internas da pessoa ou dispersa-a e exterioriza-a a tal ponto que pode impossibilitá-la entrar dentro de si mesma, a não ser que “lhe venha o próprio Deus e lhe ordene que se levante” (TERESA DE JESUS, 1995, 1M 1,8, p. 444).
Assim como o pecado, a ausência da dinâmica de oração é uma forma de negar a verdadeira humanidade. É impossibilitada a descoberta de uma instância humanizadora, que é a interioridade, pela qual acontece o autoconhecimento, a comunhão com Deus e com os irmãos. Para Teresa, não conhecer a bondade de Deus é o próprio inferno.
Terminamos aqui este artigo, em que quisemos mostrar como a presença de Deus, vivo e comunicante na interioridade humana, revela à pessoa quem ela é. Deus é, em última instância, a luz que ilumina a realidade do ser humano.
Ela é, ao mesmo tempo, grandeza e possibilidades, mas também miséria e capacidade de perversão de suas possibilidades. A força criadora de Deus não irrompe a partir de fora, ela está interiormente presente. No entanto, pode ser obscurecida pelas facetas destrutivas da pessoa humana. Neste sentido Deus, como força de amor que se comunica, convida, presenteia e liberta, mas também se arrisca a ser negado pela criatura. A pessoa põe limites ao poder de Deus. Daí a força humana e a vulnerabilidade indefesa de Deus. O pecado no mundo da criação faz o Criador indefeso ao extremo. Se a pessoa voluntariamente não se abre, Deus não pode agir, embora continue presente como sol, como “luz que não conhece noite” (TERESA DE JESUS, 1995, V 28,5, p. 183). Deus nunca se retira e continua atraindo. O limite do poder divino é posto pela pessoa, por sua livre possibilidade de pecar. Pecar é fechar-se, recusar- -se à luz. Não se trata tanto de um sofrimento, mas de uma frustração da própria vida, uma infelicidade.
Em termos semelhantes, o Vaticano II, na Gaudium et Spes, vai afirmar que, pelo pecado, a pessoa se recusa a reconhecer seu início e, consequentemente, o seu fim, que é Deus, destruindo a ordenação que tem consigo mesma, com o próximo e com a natureza. Vê-se pessoalmente dividida, tanto em sua vida individual como coletiva. Sua vida torna-se “uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas” (VATICANO II, 1989, GS 13, p.155).
Mostra-se também a dimensão teologal e mística da ética: o pecado contra o irmão, o próximo e a criação aliena a pessoa de si mesma, destrói o outro, o planeta e despreza a Deus. O amor a Deus e a transparência diante dele exigem intrinsecamente o amor e o respeito à dignidade do outro. Tanto o amor a Deus quanto o pecado são mediados pela alteridade do irmão e do próprio cosmos. A relação com o outro é assimétrica, porque ele se sobrepõe ao eu pessoal, na perspectiva evangélica. Donde os conselhos práticos de Caminho de Perfeição, em que Teresa aconselha o amor que não prefere nem se defende, o desapego de todo desejo de ser o primeiro, e até de si mesmo, e a humildade (TERESA DE JESUS, 1995, C 4,4, p. 312).
A presença de Deus como convite que vem de dentro da pessoa, pode sempre ser recusado. Mas, em Teresa, esta presença desencadeará um processo globalizante, integrador e trinitário da autocomunicação divina: espiritualização, cristificação e filiação. O triunfo da graça que transforma a partir de dentro, até onde pode a criatura vislumbrar e viver neste lado da vida. O pecado fica sempre como a risco permanente de frustração humana, a alertar para a humildade e lembrar continuamente o poder destruidor da autossuficiência humana.
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TERESA DE JESUS, Santa. Conceitos do Amor de Deus. In: Id. Obras Completas. (Coord. Frei Patricio Sciadini; trad. texto estabelecido por T. Álvarez). São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 1995, p. 841-881.
TERESA DE JESUS, Santa. Exclamações da alma a Deus. In: Id. Obras Completas. (Coord. Frei Patricio Sciadini; trad. texto estabelecido por T. Álvarez). São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 1995. p. 883-904.
TERESA DE JESUS, Santa. Livro da Vida. In: Id. Obras Completas. (Coord. Frei Patricio Sciadini; trad. texto estabelecido por T. Álvarez). São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 1995, p. 19-291. TERESA DE JESUS, Santa. Relações. In: Id. Obras Completas. (Coord. Frei Patricio Sciadini; trad. texto estabelecido por T. Álvarez). São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 1995, p. 773-839.
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[1] Neste trabalho, seguimos a edição brasileira das Obras Completas de Teresa de Jesus, publicada pela Loyola. Para possibilitar ao leitor acompanhar o texto em outras edições, além da página será indicada também a obra, segundo as abreviaturas clássicas seguidas do capítulo e parágrafo correspondente. Assim: Livro da Vida: V; Caminho de Perfeição (Valladolid): C; Castelo Interior ou Moradas (M, precedida do número que indica a morada respectiva); Conceitos do amor de Deus: CAD; Exclamações da alma a Deus: Excl; Relações: R.
[2] O leitor pode reportar a vários textos deste importante livro. Sugiro algumas: 1 M 2; 2 M 2; 3 M 2, 12-13; 4 M 3, 1.10; 5 M 4, 6-10; 6 M 7; 7 M 1, 3-4 e 3, 14.
[3] Teresa se inspira em Gn 19, 26.
[4] Teresa se inspira e utiliza, de maneira livre, Jo 5, 5. No Evangelho, o paralítico estava na piscina havia trinta e oito anos.
[5] A menção a estes anti-tipos é recorrente na obra teresiana, ver também a passagem de 6 M 9,15, inspirada em 1Rs 15, 10-11 e 5M 3,2; 5M 4,7 e 6M 7,10.
[6] Cf. também R 16,1.
[7] Cf. também V 38, 17.
[8] Cf. também R 4,17.