Lucas Alamino Iglesias Martins*
Thiago Abdala Barnabé**
*Doutor em Estudos Judaicos (Bíblia Hebraica) pela Universidade de São Paulo (UNASP). Contato: lucasigle@gmail.com
**Bacharelando em Teologia e Letras pelo UNASP-EC. Contato: thiagoabdala84@gmail.com
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Na obra Crime e Castigo, do escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1881), narra-se a história do falido estudante de Direito Raskólnikov, que, perante o espírito niilista de sua época, realiza o duplo homicídio contra a velha usurária e sua irmã. Ao longo da história, grande parte dos estudiosos analisou a caracterização da personagem Raskólnikov sob o âmbito de ela ser um reflexo das condições histórico-filosóficas do período em que Dostoiévski compôs a obra. No entanto, pouco estudo se direcionou em compreender a caracterização da personagem em relação ao arquétipo bíblico do assassinato, neste caso representado por Caim e seu ato fraticida. Nesse viés, o artigo tem como objetivo analisar intertextualmente a caracterização da personagem Raskólnikov à luz da caracterização de Caim no relato bíblico de Gn 4:1-16. O texto bíblico em questão foi examinado em sua forma sincrônica e posto como modelo mitológico-literário de crime. Tanto Raskólnikov quanto Caim representam vozes universais da violência. Eles estão em ruptura em relação ao outro, dado que cometem o crime e por isso são indiferentes e egoístas. Contudo, ambos descobrem que não há crime sem castigo. Nesse sentido, as personagens são convidadas para o perdão, a reconciliação e o restabelecimento pleno do diálogo.
Palavras-chave: Literatura; Bíblia; Crime; Dostoiévski; Bakhtin.
In Crime and Punishment, by Fyodor Dostoevsky (1821-1881), the story of a failed Law student, Raskólnikov, who, in the face of the nihilistic spirit of his time, commits a double murder against the old usurer and his sister, is narrated. Throughout history, most scholars have analyzed the characterization of the character Raskólnikov as a reflection of the historical-philosophical conditions of the period in which Dostoevsky composed the work. However, little study has been directed to understand the characterization of the character concerning the biblical archetype of murder, in this case, represented by Cain and his fratricidal act. In this vein, the proposed article aims to analyze intertextually the characterization of the character Raskólnikov in light of the characterization of Cain in the biblical account of Gen 4:1-16. The biblical text in question was examined in its synchronic form and put as a mythological-literary model of crime. Both Raskólnikov and Cain represent universal voices of violence. They are at odds with each other, given that they commit the crime, and are therefore indifferent and selfish. But they both discover that there is no crime without punishment. In this sense, the characters are invited to forgiveness, reconciliation, and the full restoration of dialogue.
Keywords: Literature; Bible; Crime; Dostoevsky; Bakhtin
A literatura é meio pelo qual a realidade desdobra-se de forma fictícia e se manifesta como um modo de conhecimento humano. Conforme disserta D’Onofrio (1990, p. 10), a literatura é uma atividade imanente que elabora “[...] operações do espírito humano, todas elas voltadas para a compreensão do mundo em que vivemos”. Tal compreensão tem como pano de fundo as contradições internas do sujeito e suas tensões a partir dos contextos históricos, sociais e filosóficos de cada época. Entre tais tensões, o crime e a violência fazem parte da constituição tanto da história humana quanto de sua psique. Tendo em vista tal prerrogativa, vários escritores, ao longo dos séculos, expuseram acerca do caráter violento da humanidade, explorando as ambiguidades do crime e do ímpeto pela maldade.
Entre tais autores, Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881), escritor russo do século XIX, é um exemplo notório, ao ser conhecido por suas obras realistas1 e viscerais que tratam e discutem acerca da natureza humana e suas ambiguidades. Lukács (1965, p. 146) reconhece a grandeza de Dostoiévski em seus Ensaios de Literatura da seguinte maneira: “Ele criou personagens em cujos destinos, em cujas vidas íntimas, em cujas relações e conflitos recíprocos, no choque e atração entre homens e ideias, os grandes problemas da época revelam-se em toda sua profundidade”. Crime e Castigo, obra escolhida para o presente artigo, estabelece, de forma magistral, o espírito do povo russo no século XIX a partir da personagem Ródia R. Raskólnikov, bem como discute as questões fundamentais da violência, do crime e do niilismo (FRANK, 2013). Não apenas no sentido histórico-social, Crime e Castigo também reverbera questões religiosas e universais. Conforme disserta Wu (2010, p. 258), “A noção de transgressão (Ty tozhe perestupila) é a medida do desenvolvimento da argumentação de Raskólnikov em torno da noção de crime”.
Concomitantemente, o objetivo de tal estudo não está apenas direcionado à obra dostoievskiana, mas sobretudo à sua relação intertextual com a narrativa bíblica de Gn 4:1-16, vista sob à óptica sincrônica e dada como modelo mitológico-literário de crime (BRUEGGEMANN, 1982; NANDI, 2016; WESTERMANN, 1984). Neste texto, analisamos a história de Caim, o fratricida e o arquétipo, segundo Nandi (2016), da violência. É nessa personagem que os ecos literários do crime vão ressoar, mormente na personagem Raskólnikov de Dostoiévski, sem contar que as narrativas de Gn 1-11 demonstram, para Westermann (1984, p. 47), que estão “[...] concerned in some way with crime and punishment”, marcando, pois, uma ligação com o texto dostoievskiano.
Assim sendo, pressupomos que o texto bíblico exerça uma função magistral na fundamentação dos textos literários ocidentais. Conforme disserta Magalhães (2008, p. 16), “A história da literatura tem páginas significativas do diálogo entre texto literário e textos bíblicos e parte da literatura é reescrita dos textos da Bíblia”. De forma consoante, Frye (2021, p. 17) dirá que a Bíblia representa o “Grande Código de Arte” ou “o universo mitológico” de seu tempo e que influencia, por meio de sua leitura e seu estudo, o imaginário ocidental.2 Tendo isso em vista, apregoa-se que Caim seja um símbolo mitológico bíblico, bem como uma personagem paradigmática na literatura universal, a qual tem como função revelar as forças motrizes do crime e da violência na interioridade humana (NANDI, 2016; SCHULMAN, 1986).
Não obstante, tal estudo intertextual também é feito por meio da análise poética da obra dostoievskiana realizada pelo filósofo e crítico literário russo Mikhail Bakhtin (1896-1975), o qual averigua o caráter inédito da polifonia3 presente no romance de Dostoiévski. A escolha para tal mediação dá-se também no entendimento que Bakhtin (2018) tem acerca da construção das personagens. Nas palavras de Bezerra, acerca da obra bakhtiniana, “Dostoiévski não conclui as suas personagens porque estas são inconclusivas como indivíduos imunes ao efeito redutor e modelador das leis da existência imediata” (BEZERRA, 2018, p. 11). Esse caráter inacabado, dialético e dialogal entra em consonância com o estilo prosaico bíblico que retrata personagens também complexas, ambíguas e profundas. De acordo com o que bem afirma Alter (2007, p. 28):
A teologia implícita na Bíblia Hebraica impõe à narrativa um realismo psicológico e moral bastante complexo [...] Esmiuçar os personagens bíblicos como figuras de ficção permite ver mais nitidamente os aspectos contraditórios e as múltiplas facetas de sua individualidade humana, que é o meio escolhido pelo Deus bíblico para Seu experimento com Israel e com a história.
Partindo de tal caráter inacabado e ambíguo das personagens é que tal artigo propõe realizar o paralelo intertextual entre Caim, o irmão assassino que se afasta de YHWH e se torna símbolo mitológico de crime, e Raskólnikov, o homem russo cindido, niilista racional que comete o ato de duplo homicídio por um ideal lógico (FRANK, 2013; PONDÉ, 2013). Em ambas as histórias, as faces dialéticas são envoltas de um miasma mortífero da falta de reconhecimento do outro e do crime violento dado pela ausência de um amálgama transcendente. Outrossim, discutimos a possível redenção para as personagens, tendo como ponto-chave a imagem da “terra” e do “amor” em ambas as narrativas.
Assim sendo, o presente trabalho se divide em três eixos fundamentais de análise: (1) O crime como dissociação dialogal do outro; (2) Facetas da indiferença; e (3) O restabelecimento da consciência dialogal. Para fins de esclarecimento, o fio condutor deste estudo intertextual se dá sob a óptica da consciência e do diálogo, pois são temas fundamentais da crítica bakhtiniana e que servem de intersecção com a narrativa bíblica.4
A estética dostoievskiana é marcada pela sinfonia polifônica das vozes, conforme enunciado na introdução. O que visualizamos, olhando o todo de sua obra, é um universo plural em que as consciências são múltiplas e não se objetificam (BAKHTIN, 2018). No entanto, a compreensão bakhtiniana do discurso não serve apenas à noção literária. Em suas palavras, “A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo” (BAKHTIN, 2018, p. 293). Consequentemente, se o dialogismo é parte fundante e constitutiva da vida, o que acarreta o crime e a violência? A resposta parece ser intuitiva e nos encaminha para um entendimento-chave que guiará tal análise: a violência e o crime são formas de silenciamento ou monologismos, isto é, de dissociação do diálogo/discurso polifônico (RICOEUR, 2006; VASSOLER, 2015).5 De tal prerrogativa, percebemos que essa tensão entre silenciamento e diálogo é notoriamente transpassada nas personagens Ródia R. Raskólnikov6 e Caim. Na narrativa dostoievskiana, a história inicia-se tratando da condição subalterna de Raskólnikov nas ruas quentes de St. Petersburgo. A descrição já é opressiva: “esmagado pela pobreza” e vivendo num “cubículo com cama e mesa” – como numa espécie de casa/ caixão. Raskólnikov se caracteriza, no começo da obra, como uma personagem envolta de irritação, tensão e contradição.
Essa posição miserável parece incitá-lo a realizar um plano maquiavélico. Ele mesmo diz: “Hum… é… tudo está ao alcance do homem e ele deixa isso tudo escapar só por medo… é mesmo um axioma” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 9). Esse pensamento, absorto diante de sua situação, o faz tomar a fantasia de realizar aquilo – o crime. Seu ódio pela velha usurária Aliena Ivánovna torna-se força motriz na elaboração de tal fantasia lógica. No entanto, esse sentimento ainda é dúbio em sua consciência, e ele mesmo diz: “Contudo, de que baixeza meu coração é capaz! O principal: isso é sórdido, nojento, abjeto, abjeto… [...]” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 9).
Frank (2013) afirma que as partes iniciais da obra marcam uma tensão dialética que se estende ao longo de todo o livro, e nós leitores ficamos envoltos na consciência conturbada de Raskólnikov. Em suas palavras, “No centro está o conflito interior de Raskólnikov, dividido entre a intenção de cometer um crime no interesse da humanidade e a resistência de sua consciência moral contra tirar a vida” (FRANK, 2013, p. 152). Tal dualidade parece estar já impressa no próprio nome da personagem. Conforme observa Bezerra (2019, p. 13), em suas notas de tradução em Crime e Castigo, o sobrenome de raskól significa “cisão, dissidência e cisma religioso”. Ora, dentro da própria identidade de Raskólnikov há uma estrutura psíquica cindida de um “eu interno” que dialoga em contradição consigo mesmo e com as vozes externas assimiladas (BAKHTIN, 2018).
Semelhantemente, na narrativa bíblica Caim também já é caracterizado, pelo seu nome, como personagem ambígua. No hebraico, as opções de tradução para Caim (ןִיַ ק (são vastas, mas podem ser resumidas em duas: a primeira, possuindo significado de “lança” ou “ponta de lança”; e a segunda, feita de uma análise fonética do termo que obtém uma aproximação com a raiz קנא ,que tem como definição “sentir inveja/ciúme” (NANDI, 2016, p. 59-60). O significado de seu nome, nesse sentido, já serve como anúncio de enredo daquilo que sucederia na narrativa. Ora, o ciúme, como ímpeto de crime, e a lança, como possível objeto de crime. Raskólnikov, igualmente, carrega esse intento pelo ato homicida por meio da inveja e do ciúme não apenas de sua condição insólita e subalterna, mas também do desgosto ao ler a carta de sua irmã Dúnia. Não menos importante, observamos, da mesma forma, que seu ato de crime também é realizado por meio de uma machadinha.
A cena que sucede a descrição execrável de Raskólnikov dá-se com sua ida a uma taberna, e aqui é interessante averiguar certos elementos- -chave. Primeiramente, a mudança espacial7 de descer escadas, adentrar um covil com pessoas embriagadas, um ambiente subterrâneo, abafado e que fervilha cada vez mais com as risadas marcadas pelo tom trágico-cômico, presenciado claramente no diálogo entre Raskólnikov e Marmieládov. Tudo isso acaba por abrir margens para novos impulsos internos na personagem (MARQUES, 2010). É curioso notar também que, apesar de seus pensamentos homicidas, Raskólnikov ainda manifestava interesse pelas pessoas ao seu redor. Conforme descrito no início de tal cena, “Agora, porém, alguma coisa o impelira de repente para o convívio humano. Alguma coisa de aparentemente novo se passava dentro dele, e ao mesmo tempo ele experimentava certa sede de gente” (DOSTOIEVSKI, 2019a, p. 18).
O que se evidencia, ao longo de sua caracterização, é esse movimento pendular entre compaixão pela humanidade e repúdio ao mesmo tempo.8 Ora, essa ambivalência fica notória na cena final do diálogo com Marmieládov. A descrição é angustiante, pois mostra o desespero familiar de um pai que se perde miseravelmente na bebida e gastando o dinheiro conquistado pela filha por meio da prostituição. Diante de tal situação, Raskólnikov decide deixar moedas na janela da casa de Sônia, mas automaticamente, como num lampejo, ele afirma: “Que asneira foi essa que acabei de fazer?” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 33). Essa face dialética expressa o “microdiálogo interior” de Raskólnikov, bem como expõe literariamente o momento histórico cindido da Rússia no século XIX, a saber, de um lado o utilitarismo lógico e mercadológico que objetifica o ser humano e desqualifica a compaixão; do outro, o cristianismo ortodoxo e os valores tradicionais da caridade, compaixão etc.9 (BAKHTIN, 2018; FRANK, 2013; WU, 2010).
Diferentemente da estética de Crime e Castigo, o marco espacial dos deslocamentos de crise das personagens se dão num contexto de drama familiar.10 Conforme disserta Schulman (1986, p. 219), “We consider the story of Cain and Abel first as a household drama taking place in psychological time and private space, within the home, prior to or apart from the city”. Seguidamente, os diálogos são restritos entre Caim e Deus, o que mostra que a centralidade narrativa se encontra na figura de Caim e suas ações (WESTERMANN, 1984). Assim como Raskólnikov, Caim não é totalmente uma personagem maligna, afinal ele é considerado, segundo sua mãe, “o Senhor” (ת־יהוהֶ א (em seu nascimento,11 sem contar que o simples fato de ele oferecer os sacrifícios rituais mostra minimamente seu comprometimento com o outro – nesse caso, Deus. Entretanto, essa ação ganha contradição. Em Raskólnikov, a ação filantrópica e caridosa é marcada, logo em seguida, por um arrependimento; em Caim, a ação sacrificial é obliterada pelo ciúme e pelo favoritismo de Deus pela oferta de Abel.
Retornando ao romance dostoievskiano, ao Raskólnikov ler a carta da mãe12 e meditar sobre os acontecimentos da taberna, este entra num profundo diálogo interno e pensa com ânimo macabro:
‘Compreende, será que compreende, meu caro senhor, o que significa não se ter mais para onde ir? – lembrou- -se num átimo da pergunta feita ontem por Marmieládov –, porque é preciso que toda pessoa possa ir ao menos a algum lugar [...] “Súbito ele estremeceu: uma ideia, também da véspera, novamente passou-lhe como um raio pela cabeça. Mas ele não estremeceu porque essa ideia lhe passou. Ora ele sabia, ele pressentia que ela lhe “passaria como um raio” e já a esperava; aliás essa ideia não era inteiramente da véspera. Mas a diferença estava em que um mês atrás e ainda ontem mesmo ela era apenas um sonho, mas agora... agora aparecia de repente não como um sonho, mas num aspecto novo, ameaçador e inteiramente desconhecido, e de repente ele mesmo tomou consciência disso […]. Teve um estalo, e um escurecimento de vista (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 54-55, grifo nosso).
Tal escurecimento da vista – e aqui damos uma ênfase – já marca um passo-chave em direção ao crime. Nos capítulos seguintes, Raskólnikov reitera que todo crime é pautado numa espécie de “abatimento da vontade e da razão”, como se fosse um ato animalesco e irracional (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 78). O paralelo com Caim, nesse sentido, é visível em ambas as perspectivas. Primeiro, no verso 5 é descrito que Deus Se desagrada da oferta de Caim em detrimento do oferecimento sacrificial de Abel. A consequência imediata dessa ação é que Caim ira-se a ponto de “cair sua face/semblante” (יוָנָ פ ּוּלְ פִּיַּו – (podendo isso ser comparado com o escurecimento da vista/face de Raskólnikov. Ora, o elemento da face se obscurecendo, se contorcendo em raiva faz presença em ambas as narrativas. Podemos conceber que o rosto daquele que se prepara para matar e silenciar o outro precisa primeiro se perder em si mesmo.
Segundo a perspectiva do crime irracional faz jus à expressão do verso 7, o qual diz que “o pecado está à espreita na porta” (ץֵ בֹר אתָ טַ ּח חַ תֶ פַ ּל .( Nandi (2016) e van Wolde (1991) dirão que tal sentença possui aproximação com representações animalescas, dadas pela ambiguidade do termo ץֵ בֹר ao longo da BH.13 Consequentemente, o ciúme, a ira e o obscurecimento da face são vistos como elementos que propiciam o ímpeto feroz e animal de Caim em cometer o crime14. Não obstante, a ideia de “porta” traz também o sentido de limite – tema importantíssimo na caracterização de Raskólnikov. Ora, Caim seguirá sua ira e atravessará a porta que dá entrada para o pecado, para o crime? Essa questão transpassa Raskólnikov quando este diz, justificando seu assassinato: “Eu precisava saber de outra coisa, outra coisa me impelia: naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho, como todos, ou um homem? Eu posso ultrapassar ou não!” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 425, grifo do autor).15
Fato é que ambos os assassinos ultrapassam o limite. Caim escancara a porta do pecado e elimina seu próprio irmão no campo como um animal que ataca um viajante na estrada e se esgueira naturalmente para o mato;16 Raskólnikov, concomitantemente, assassina não só a velha usurária, mas sua irmã Lisavieta, o que o faz com a justificativa de ultrapassar a “letra da lei”, de pronunciar uma “nova palavra”, de se tornar um ubermensch, um Napoleão de seu tempo.17 Os dois, no fim, estipulam o crime como ato de dissociação dialogal do outro, afinal eles silenciam vozes. Na narrativa bíblica, o silêncio de Abel já é anúncio desta ruptura dialogal, não apenas pelo seu nome, que denota a ideia de “sopro” (לֶ בָ ה ,(mas também pelo próprio ato de crime, no qual não há a voz de Abel sendo enunciada (NANDI, 2016). Nesse sentido, Van Wolde (1991, p. 35, grifo nosso) observa que “This ’empty’ speaking would then suggest, or testify to, the negation of the existence of the other as an equal, as a brother, and it can be seen as pointing ahead to the actual elimination of the other”.
Assim sendo, pensando que o crime dostoievskiano assume uma esfera metafísica e espiritual, compreende-se que o silenciamento da voz prescreve uma dimensão ainda mais complexa do que meramente um problema social da Rússia no século XIX (BLOOM, 2004; FRANK, 2010, 2013; PONDÉ, 2013; WU, 2010). Trata-se de um indivíduo não apenas preso no subterrâneo da existência, mas que também se abre para dilemas universais, sendo considerado um “homem-universo”, na perspectiva de Tchirkóv (2022). Nas palavras de Wu (2010, p. 258), “[...] Dostoiévski demonstra que o maior criminoso em Crime e castigo é, ao mesmo tempo, o maior pecador”. Nesse sentido, Pondé (2013, p. 105), discutindo a relação polifônica e a noção de Deus em Dostoiévski, diz que:
Como nós somos seres da palavra, imersos na polifonia, o único que nela não entra é Deus, porque a polifonia é característica do desgraçado. Deus é quieto, é silencioso. Quando Ele se manifesta ao ser humano, não faz ruído; o ruído está do lado do homem. Deus é um estranho na polifonia.
Partindo de tal prerrogativa, supõe-se que Raskólnikov, em seu ato de crime, não é apenas motivado por um ressentimento de sua condição social deplorável. Pelo contrário, conforme sua teoria social dos extraordinários e ordinários, ele – em sua obsessão napoleônica – deseja incessantemente transcender sua condição (FRANK, 2013).18 Ora, o criminoso justifica seu ato diante do deicídio do século XIX, e, a partir dessa lacuna existencial, moral e ética, decide tomar os rumos da humanidade, passando de assassino a legislador.
Conforme disserta Tchirkóv (2022, p. 102, grifos nossos), “Ao declarar guerra contra toda a ordem mundial, renegar o mandamento do ‘não matarás’ e proclamar uma nova lei universal – a permissão principal para o assassinato –, Raskólnikov entra no terreno da revolta metafísica”. Tal revolta, dentro de uma lógica bakhtiniana e em consonância com o próprio Pondé (2013), enuncia que Raskólnikov acha-se capaz de ser ele mesmo o maestro da sinfonia da vida, colocando-se acima da polifonia e, consequentemente, decidindo quais vozes falam e quais vozes devem se calar. Caim, semelhantemente, ao se afastar dos conselhos de YHWH, decide seguir seus próprios impulsos e acaba por se revoltar contra o próprio Deus ao assassinar seu irmão (NANDI, 2016).
Esse impulso pelo silenciamento denuncia sua ideia de crime como representação monológica do mundo, afinal ele é um extraordinário, isto é, um ser acima dos outros e, portanto, digno de reger o mundo sob suas próprias rédeas. No fundo, Raskólnikov ambiciona ser Deus, mas quão barulhento e ruidoso é esse “Deus”. Conforme pondera Beebe (1955, p. 595), “[...] the egoistic pride that makes him want to play God”. No entanto, não só falha em sua ambição legislativa, mas também demonstra sua própria fragilidade psíquica cindida: a saber, de ser um sujeito dotado de uma consciência que nunca para de dialogar consigo mesmo, de uma voz interior que nunca se cala e, sobretudo, de ter sobre si “uma arena de luta das vozes dos outros”, que, queira ou não, permanecem marcadas ao longo de toda a sua trajetória (BAKHTIN, 2018, p. 99). Nesse viés, mesmo matando, Raskólnikov percebe que é impossível escapar da polifonia.
Seguidamente, observa-se que a questão do reconhecimento é um dos temas centrais da obra dostoievskiana e é um desdobramento fundamental na compreensão do crime. Conforme disserta Ivánov: “Afirmar o ‘eu’ do outro – o ‘tu és’ – é meta que [...] devem resolver todos os heróis dostoievskianos para superar seu solipsismo ético, sua consciência idealista desagregada e transformar a outra pessoa de sombra em realidade autêntica” (IVÁNOV, 1916, p. 33 apud BAKHTIN, 2018, p. 9). Essa é a jornada fundamental que percebemos em Raskólnikov: a transição de um indivíduo solipsista para um indivíduo que reconhece plenamente o outro. Semelhantemente, Caim tem como propósito “[...] sair de uma realidade subjetiva, construída em torno de si mesmo, para adentrar na realidade objetiva, distinta dele e maior que ele” (NANDI, 2016, p. 105, grifo nosso)19.
Na filosofia hegeliana, o conceito de reconhecimento (Anerkennung) atrela-se com “[...] o vínculo entre a auto reflexão e a orientação rumo ao outro” (RICOEUR, 2006, p. 187). Em Fenomenologia do Espírito, por exemplo, o reconhecimento se articula a partir da sentença: “Eu que é Nós, Nós que é Eu” (HEGEL, 2014, p. 142), trazendo, pois, a relação de interdependência da esfera humana.20 Bakhtin (1984, p. 644), em consonância, afirma: “[...] the idea is inter-individual and inter-subjective – the realm of its existence is not individual consciousness but dialogic communion between consciousnesses”. Em Raskólnikov e Caim, entretanto, o crime representa a ruptura da relação ‘Eu’ e ‘Nós’ e o consequente desmembramento do dialogismo e da possibilidade do reconhecimento. Ricoeur (2006, p. 193, grifos nossos), nesse sentido, afirma que:
O crime tem como efeito ‘negar a realidade de um vivente em sua determinidade, mas também fixar essa negação’. O contramovimento que ele suscita, a vingança, interiorizada em remorso, participa dessa fixação, que lembra a da escravidão, mas em um registro já marcado pelo direito: daí as figuras sucessivas da barbárie [...] sendo o ataque à honra o que atinge o todo da pessoa; mas ela é evocada sob o signo do crime.
Esse remorso interiorizado fará parte do desenvolvimento de Raskólnikov e Caim após o assassinato. Aliás, a relação que sucede o crime é vista em duas instâncias: (1) a indiferença pelo outro; e (2) a rejeição do crime cometido. No que tange à indiferença, ela pode ser percebida claramente em Caim a partir de Gn 4:9, momento em que se elabora uma pergunta paradigmática e de repercussão universal. No segundo diálogo narrativo (v. 9-12), Deus, então, pergunta a Caim: “Onde está Abel, teu irmão? E ele responde: Não sei, por acaso sou eu guardador do meu irmão?” (Gn 4:9, grifo nosso). Primeiro, a pergunta “Onde estás?” (יֵ א (já faz retomada ao pecado adâmico em Gn 3:921, mas aqui a dimensão não é entre homem e Deus, mas sim entre homem e homem (NANDI, 2016). E nessa relação, que é obliterada pelo crime, Caim ironiza a responsabilidade pelo outro tornando-se desdenhoso à morte de seu próprio irmão.22 No fim, Caim, ao responder “Não sei”, assume sua indiferença com Abel (primeira instância), haja vista que ele próprio o matou e certamente sabe onde está o corpo do irmão. Segundo, ao dizer que não é “guardador do meu irmão”, arroga não ter cometido crime, rejeitando sua ação (segunda instância).
Raskólnikov apregoa a mesma dimensão de ironia, indiferença e rejeição ao matar a velha usurária e sua irmã Lisavieta. No diálogo angustiante entre ele e Sônia, este afirma: “Acontece, Sônia, que matei apenas um piolho, inútil, nojento, nocivo” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 422, grifo nosso). É relevante a descrição diminutiva que Raskólnikov atribui à velha Aliena Ivánovna. O que impera aqui ainda é o solipsismo da personagem que não consegue enxergar no rosto do outro uma pessoa. Paradoxalmente, ao olhar no rosto de Sônia, o que ele enxerga é o rosto de Lisavieta, e essa questão é substancial no romance. Ora, enquanto Raskólnikov não aceitar a culpa do crime, ele não será capaz de restabelecer um vínculo dialogal com os outros – não será capaz de os enxergar plenamente. Consequentemente, importunado pela não aceitação da culpa, seu niilismo racional converte-se em um cruel relativismo indiferente: “Tudo isso é convencional, tudo é relativo, tudo isso são apenas formas” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 101); afinal, ele não matou “uma pessoa, eu matei um princípio” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, 281).
Seu comportamento desdobra-se em repulsa e completa paranoia. Em um trecho, ele diz: “Deixem-me, deixem-me todos! – gritou possesso Raskólnikov – Ora, será que vocês finalmente vão me deixar em paz, seus carrascos! [...] Fora daqui! Eu quero ficar só, só” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 181, grifo do autor). Esse isolamento faz parte do processo de rejeição da culpa e do consequente medo do julgamento das pessoas. Raskólnikov está frágil, doente, absorto de si. Conforme disse Mochulsky (1967, p. 503, grifos do autor), “In the storm of feelings and sensations that have engulfed the murderer, one begins to predominate. ‘A dismal sensation of acutely painful, infinite solitude and alienation [...]”. Não obstante, a negação da culpa converte-se em orgulho. Sua arrogância é aquela que tende a mascarar o crime e suas consequências por meio de teorias extraordinárias e aspirações napoleônicas de superioridade, afinal Raskólnikov quer ser Deus, ele quer ultrapassar “[...] the very basis of the spiritual world itself” (MOCHULSKY, 1967, p. 504). Conforme observa Wu (2010, p. 258, grifo do autor), enquanto outras personagens, como Sônia e Svidrigáilov, atribuem a si mesmas a condição de pecadores (velikaia), Raskólnikov “evita aplicar o termo pecador para si mesmo”, pois ele não aceita sua transgressão. Ora, o criminoso quer estar além do castigo e da letra da lei.
Sendo assim, em ambas as personagens, Raskólnikov e Caim, a indiferença se revela como facetas da ausência de reconhecimento do outro e de sua consequente desqualificação, seu silenciamento e sua violência. Esse estado de indiferença nos relembra aquilo que Rousseau postulava no século XVIII acerca do “homem da natureza”. Cassirer (1992, p. 344-345, grifo nosso) comenta:
[...] um estado em que cada um está perfeitamente isolado e perfeitamente indiferente aos outros [...] O elemento mais saliente da constituição psíquica do homem da natureza não é a tendência para oprimir outrem pela violência, mas a tendência para ignorá-lo, para separar- -se dele. 23
Tal descrição está em consenso com toda a trajetória até então analisada de Raskólnikov e Caim. De um lado, um filho ciumento que ignora a existência de seu próprio irmão, assassina-o e, consequentemente, se afasta de sua própria família (VAN WOLDE, 1991); do outro, um sujeito execrável, jovem estudante falido, que, por uma ascese experimental, decide cometer o crime e acaba por se afastar das pessoas ao seu redor com reações quase patológicas (FRANK, 2013; MOCHULSKY, 1967). Nesse âmbito, o que se manifesta é o egoísmo como sendo a faceta mortífera de ambas as personagens e a razão fundamental de suas indiferenças.24 É o egoísmo que guia o ressentimento das personagens bem como justifica, segundo uma lógica absurda, o crime que elas cometeram. É o egoísmo, também, o elemento que faz as personagens optarem pela solidão e pelo afastamento dos outros. No fim, é pelo egoísmo que ambos ironizam a vida humana, julgam atribuir valor a elas e são eles próprios legisladores de seus respectivos universos narrativos.
Mas as histórias, tanto de Caim quanto de Raskólnikov, nos direcionam para um posicionamento ainda mais profundo acerca da indiferença. A dimensão do crime e da indiferença para com o próximo encontra- -se também profundamente ligada à terra. Na narrativa de Gn 4, a palavra הָ מָ דֲא”) terra”) aparece seis vezes, demonstrando, pois, sua importância-chave na compreensão da história de Caim. Na obra dostoievskiana e, inclusive, em Crime e Castigo, Engelgardt (p. 96 apud BAKHTIN, 2018, p. 27) afirma que:
O terceiro conceito – terra – é um dos mais profundos que podemos encontrar em Dostoiévski. Trata-se daquela terra que não se distingue dos filhos, daquela terra que Aliócha Karamázov beijou chorando, soluçando e, banhado em lágrimas, delirando, jurou amar, enfim é tudo – toda a natureza, as pessoas, os animais, as aves, aquele jardim maravilhoso que o Senhor cultivou tirando sementes de outros mundos e semeando-as nesta terra.
A terra, na narrativa dostoievskiana, está intrinsecamente ligada à esfera universal, a saber, da ligação espiritual entre homem e universo natural de Deus (BAKHTIN, 2018; IVÁNOV, 1952; TCHIRKÓV, 2022). Seguidamente, o relato de Caim parece direcionar essa mesma perspectiva. Em Gn 4:10, Deus questiona Caim: “Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim”. Aqui, uma dimensão extremamente relevante é estabelecida. A voz silenciada de Abel clama da terra e esta atinge o próprio Deus. Nunes Junior (2017, p. 103-104) afirma que a terra, nesse contexto, “[...] atua como uma espécie de denunciadora, visto que [...] é ela que dá voz ao clamor por justiça”.
Consequentemente, o assassinato que ecoa sobre a terra atinge também a própria identidade de Caim como lavrador da terra, descrição dada em Gn 4:2. Toda sua relação positiva com a terra é obliterada, visto que sua punição é ser banido da face da terra, vagando sob ela como um errante (NUNES JUNIOR, 2017; VAN WOLDE, 1991). A terra o rejeita, pois ela está manchada de sangue. Nesse sentido, assim como Raskólnikov não consegue olhar na face de Sônia sem enxergar o rosto de sua vítima, Caim vaga pela terra, mas não consegue cultivá-la, pois esta denuncia seu crime.
No fim, o questionamento identitário ressoa: como pode ser Caim guardador25 da terra, assim como se premedita em Gn 2:1526, se ele não é capaz de guardar o seu próprio irmão? Caim não compreende a dimensão da criação divina, que envolve guardar o próximo como criatura de Deus e da terra (NUNES JUNIOR, 2017).
Outrossim, o verbo “guardar”, segundo Nandi (2016) e Nunes Junior (2017), está também relacionado a práticas cúlticas e sacerdotais do Antigo Israel.27 No relato da criação, o homem é guardador da terra, pois é sacerdote dela. Mas, muito além disso, o homem provém do solo. Conforme disserta Nunes Junior (2017, p. 73, grifo nosso), “O pó usado para formar/moldar o homem é da terra (’aḏāmah). Ele, o homem (’āḏam), parte responsável pelo que ela, terra, ainda não era, pois não existia para cultivá-la, é feito dela”. Ora, ele deve cultivar e guardar a terra (Gn 2:15), pois é feito dela, e com isso deve estabelecer uma relação de intimidade com ela – nomear os animais, cultivar o solo, cuidar etc. Entretanto, Gn 3 e 4 demonstram que o pecado, a transgressão e a maldade são elementos de ruptura entre homem e terra. Enquanto em Gn 3 Adão e Eva, o casal mítico, são expulsos do jardim pela transgressão do fruto proibido, Caim, em Gn 4, é expulso da terra pela transgressão do fratricídio, afinal ser guardador da terra é ser também guardador do irmão.
Em Raskólnikov, uma dimensão semelhante se apregoa. No diálogo entre Raskólnikov e Sônia, considerado “a chave ideológica do romance”, segundo Tchirkóv (2022, p. 110), as implicações do assassinato passam a ser relacionadas à terra. Sônia, em dado momento da conversa, exorta Raskólnikov dizendo:
Levanta-te! (Ela o agarrou pelos ombros; ele soergue- -se, olhando-a meio surpreso). Vai agora, neste instante, para em um cruzamento, inclina-te, beija primeiro a terra, que profanaste, e depois faz uma reverência ao mundo inteiro, e diz em voz alta a quem te der na telha: “Eu matei” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 426, grifo nosso).
Ora, o assassinato de Raskólnikov também ressoa sobre a terra. O sangue da velha usurária Ivánovna e sua irmã Lisavieta ecoam das raízes profundas do solo russo. Dostoiévski faz ressoar que a terra está suja com o crime e que ela precisa ser purificada. O processo de redenção em Raskólnikov, nesse sentido, precisa percorrer o caminho do reconhecimento em relação não apenas ao outro, mas ao mundo inteiro; a terra. Nas palavras de Tchirkóv (2022, p. 112): “O contato com a terra e o arrependimento diante dela significam para Dostoiévski um retorno à vida plena e integral”.
Fazer erguer-se da baixeza
Pela alma o homem deve
Fazer com a antiga mãe terra
Uma aliança eterna (DOSTOIÉVSKI, 2019b, p. 131)
A possibilidade da redenção é uma marca de aliança tanto em Raskólnikov quanto em Caim. É um ato de amor. É um retorno para o diálogo. É um dissolver do solipsismo egoico. Esse é o último movimento de Raskólnikov e dos heróis dostoievskianos como um todo. Concomitantemente, é também uma possibilidade de graça em meio ao castigo, no que tange a Caim. No que diz respeito ainda a Dostoiévski, Pondé (2013, p. 32) considera que a jornada de Raskólnikov “é um processo metanoico em embrião”. A metanoia, conceito grego que é dado na mística ortodoxa russa, diz respeito à transformação do indivíduo a partir das “visitas contínuas que Deus faz à sua alma” (PONDÉ, 2013). Para Raskólnikov, essa visita se dá por meio da figura complacente e antitética de Sônia (BAKHTIN, 2018; FRANK, 2013; MARQUES, 2016).28 Em um dos encontros das duas personagens, este diz: “Uma compaixão insaciável, se é que se pode falar assim, manifestou-se subitamente em todos os traços do seu rosto (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 324, grifo do autor).
O encontro entre Raskólnikov e Sônia abre margem para novas compreensões de suas ambivalências internas. Conforme vimos, Frank (2013, p. 152) diz que em Raskólnikov estipula-se a tensão entre “cometer um crime no interesse da humanidade e a resistência de sua consciência moral contra tirar a vida”. Diante do sofrimento de Sônia com seu pai, Marmieládov, que morre atropelado, sua mãe, beirando a loucura, e suas irmãs passando por dificuldades, Raskólnikov se compadece com sua condição. No início, no entanto, ele tenta ridicularizá-la “desatando- -se a rir” e insinuando a inexistência de Deus, mas no fim, como num movimento catártico, este acaba se prostrando a ela.
Segundo Marques (2016, p. 221), “[...] Raskólnikov abandona a posição de ataque, para reverenciar a imagem de Sônia e tudo que ela simboliza”. Em suas próprias palavras, “Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo o sofrimento humano” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 327). Raskólnikov enxerga na condição de Sônia uma similaridade com suas contradições e vê nela o símbolo da autoabnegação e do sofrimento. Mas a luta pelo reconhecimento é ainda marcada pelo desejo insano de Raskólnikov de justificar suas ações. Nas palavras de Lukács (1965, p. 160):
Atrás dos caracteres opostos, encerra-se uma profunda afinidade. Raskólnikov diz com toda razão a Sônia que ela, com sua ilimitada disposição para o sacrifício e com sua bondade desinteressada, que a tinham levado ao ponto de prostituir-se para manter a família, tinha passado dos limites, não diferentemente dele, que havia assassinado a velha usurária. Só, acrescenta Dostoiévski poeta, que a superação das etapas no caso de Sônia ocorre de modo mais autêntico, mais humano, mais imediato e mais plebeu do que com Raskólnikov
Ainda, impera no coração de Raskólnikov a manifestação egoica de ser um extraordinário (MARQUES, 2016). E ele se assusta diante da figura contraposta de Sônia e questiona-se: “[...] o que então a impediu até hoje de pôr em prática a decisão de acabar de vez com a vida?” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 328). Era absurdo para ele que Sônia não se suicidasse, enlouquecesse ou se entregasse à perversão. Mas, conforme dissertou Frank (2013, p. 184), “O que ela oferece a Raskólnikov é uma imagem sem mácula do amor cristão abnegado que antes o estimulara até o mais profundo de seu coração. Ela é a realidade existencial daquele amor da humanidade sofredora”. Raskólnikov está absorto por essa realidade, dado que pela conjugação de seu niilismo racional este perverteu o amor. Contudo, Sônia se revela como a antítese redentiva de sua condição. Ela é a única a quem ele pode se revelar criminoso. A imagem, todavia, é ambivalente, pois Sônia, enquanto prostituta, transgride também a lei moral, mas sua transgressão é redimida pelo seu autossacrifício. No fim, Frank (2013, p. 186, grifos do autor) aponta:
Temos, de um lado, a ética do ágape cristão, o sacrifício total, imediato e incondicional do eu que é a lei da existência de Sônia (e o valor mais alto do próprio Dostoiévski); e, de outro, a ética utilitarista racional de Raskólnikov, que justifica o sacrifício dos outros em nome do bem social comum.
Esses dois modos de existência demarcam aquilo que DmitriKaramazov disse em suas Confissões de um coração ardente: “Aí lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens” (DOSTOIÉVSKI, 2019b, p. 132).29 O ímpeto pela maldade e pela indiferença com o outro são modos diabólicos, para Dostoiévski, enquanto a abnegação e o amor genuíno são modos divinos de reconhecimento do outro e da criação. O amor é a chave para a redenção, em Dostoiévski, além de ser o elemento fundamental do perdão. Conforme diz o jovem irmão do Stárietz Zossima em Os Irmãos Karamazov, “Que eu seja pecador perante todos, mas em compensação também serei perdoado por todos – eis o paraíso” (DOSTOIÉVSKI, 2019b, p. 334, grifo nosso). Reconhecer a transgressão total e aceitar o castigo faz parte do processo de aceitação do amor ativo e total30 que Dostoiévski tanto exalta.
Caim, por outro lado, tem como personagem antitética, na narrativa, o próprio Deus. Nandi (2016) destaca o papel paterno de YHWH em procurar guiar Caim para um caminho de maturidade humana. Os diálogos que precedem o fratricídio já mostram a preocupação divina em alertar Caim do pecado que espreitava pela porta (Gn 4:7). Mas o egocentrismo de Caim e a sua indiferença para com a existência de seu irmão Abel o fizeram se afastar da presença de YHWH (Gn 4:14). Entretanto, mesmo após o homicídio, Caim tem de confessar seu crime. O relato de Caim mostra que o crime não passa despercebido e que sempre há punições, sempre há castigo. Deus, assim como Sônia, o expõe também para a face da terra e dela relata sua condenação (NUNES JUNIOR, 2017).
A diferença entre Raskólnikov e Caim é que enquanto um tem de achar sua redenção na reconexão com a terra, o outro tem de se afastar dela como um “errante” (Gn 4:14). Os movimentos de redenção são divergentes.31 Para Caim, não guardar seu irmão significou sua completa dissociação com o guardar da terra – função originária (Gn 4:2). Contrariamente, é dito que a terra abre sua boca para receber o sangue de Abel (Gn 4:11), e isso acaba por impedir que Caim possa cultivar novamente. A terra, em outras palavras, aceita o sangue do oprimido, mas vomita o opressor. Para Raskólnikov, a morte da velha usurária e de sua irmã só pode ser redimida por meio do perdão universal perante a terra – o solo sagrado que representa a própria criação divina. A terra, em Dostoiévski, é o elo sagrado do perdão. Ora, a revolta metafísica de Raskólnikov contra a letra da lei (o decálogo de Moisés), conforme diz Tchirkóv (2022), é também uma revolta contra a mãe-terra (IVÁNOV, 1952), por isso o transgressor tem de beijar a terra e se prostrar diante dela, reconhecendo seu pecado universal.
Dostoiévski, por meio de sua influência da tradição ortodoxa russa, chega à seguinte conclusão: “[...] the truth of the guilt of all men, for all men and for everything” (IVÁNOV, 1952, p. 592). Em outras palavras, a dimensão do crime de Raskólnikov parte da compreensão de que sua violência contra a velha usurária e a sua irmã ressoam sobre toda a humanidade. O pecado contra um é um pecado contra todos. Consoante, Heschel (2001, p. 19) também afirma: “Few are guilty, but all are responsible”. Mesmo não culpados, somos todos responsáveis. Essa é a dimensão que deveria ser entendida por Caim e Raskólnikov. Sequencialmente, Raskólnikov, momentos antes de se entregar para Porfiri e ser levado para trabalhos forçados na Sibéria, vai até o centro da cidade de St. Petersburgo e beija o chão da praça. A cena é marcante: “Ajoelhou-se no meio da praça, inclinou-se até o chão, essa terra suja, com arroubo e felicidade. Levantou-se e tornou a inclinar-se” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 535). Conjuntamente, bêbados e transeuntes que observam a cena dizem: “Ele está a caminho de Jerusalém, meus irmãos, se despede dos filhos, da pátria, faz reverência ao mundo inteiro [...] (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 535). A imagem é catártica, assume dimensões universais e serve de anúncio do despojamento de Raskólnikov para o castigo. No fim, a entrega é dada e Raskólnikov assume sua culpa, mesmo que naquele momento seja, em seu interior, para o solo/ mundo. Momentos depois, ele se entrega por completo e assume a culpa do crime para Iliá Pietróvitch.
Enfim, chegamos ao epílogo32 da obra, a saber, o relato final dos nove meses de Raskólnikov como prisioneiro na Sibéria. É o momento de sua regeneração completa, ou melhor, de seu renascimento, conforme é descrito pelo narrador:
Mas aqui já começa outra história, a história da renovação gradual de um homem, a história do seu gradual renascimento, da passagem gradual de um mundo a outro, do conhecimento de uma realidade nova, até então totalmente desconhecida (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 563).
Mas como se dá esse renovar? Que elemento é esse que inunda a atmosfera do duplo homicida com nova esperança, com nova história? Ora, momentos antes, na prisão, ainda estava melancólico, doente e absorto: “Vivia de vista um tanto baixa: observar para ele era asqueroso e insuportável” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 556). A dimensão do castigo era pesada, semelhantemente a Caim, que dizia: “É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo” (Gn 4:13). Caim também teme ser morto por outras pessoas. Na prisão, Raskólnikov era posto sobre um “abismo terrível, aquele abismo intransponível que se estendia entre ele e todos aqueles homens”. Os prisioneiros e ele “se entreolhavam com desconfiança e antipatia” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 556). Mesmo sob essa condição, Raskólnikov não mais os despreza com arrogância, dado que assume um papel de autoabnegação (BEEBE, 1955).
No meio de tal turbulência, Sônia aparece. Ela toca as mãos de Raskólnikov e as segura com força. A melancolia do rosto dele passa a se tornar choro. Ele se prostra perante ela, conforme havia feito no diálogo anterior, no qual assumira a culpa do crime, mas dessa vez ela não se assusta, porém compreende tudo. Ora, o amor havia quebrado o egoísmo. A consciência dialogal estava restabelecida, pois “a dialética dera lugar à vida, e na consciência devia elaborar-se algo bem diferente” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 562). Esse algo bem diferente não era nada mais que o amor:
Mas de imediato, no mesmo instante compreendeu tudo. Em seus olhos brilhou uma felicidade infinita; ela compreendeu, e para ela já não havia dúvida, que ele a amava, a amava infinitamente, e que enfim chegara esse momento [...] O amor os ressuscitara, o coração de um continha fontes infinitas de vida para o coração do outro (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 562, grifo nosso).
Muito além de um amor meramente romântico, a dimensão aqui é de transformação do solipsismo. É uma entrega autêntica para o outro. É um reconhecimento mútuo fundado na ágape (RICOUER, 2006). Ele mesmo afirma: “Nesse dia até lhe pareceu que todos os galés, antes seus inimigos, já o olhavam de modo diferente. Ele mesmo começou a conversar com eles, e lhe respondiam de modo carinhoso” (DOSTOIÉVSKI, 2019a, p. 562, grifo nosso). O ímpeto monológico de Raskólnikov finalmente é quebrado. Agora ele conversa com seus inimigos, reconhecendo a voz do outro, amando-os. Afinal, conforme disserta Bakhtin (2018, p. 32, grifo do autor), “A categoria fundamental da visão artística de Dostoiévski não é a de formação, mas a de coexistência e interação”. Ora, o amor reitera e coexiste. Raskólnikov descobriu o amor e tudo mudou. Raskólnikov, por fim, encontra-se em estado de felicidade.
As faces violentas de Caim e Raskólnikov expressam o estado dialético humano de ruptura e continuidade, amor e indiferença, acolhimento e afastamento. O artigo proposto tentou mostrar as similaridades na jornada entre as personagens. Primeiro, no que tange ao ato de crime como dissociação dialogal do outro. Ora, Caim, em seu tratamento com Abel, rejeita sua existência e o assassina sem nenhum tipo de ressentimento (VAN WOLDE, 1991). O diálogo, fonte inescrutável da vida para Bakhtin (2018), é substituído pela violência, pelo silenciamento das vozes. A polifonia é atacada por “[…] universos monodalógicos e centrífugos que apenas orbitam ao redor de si mesmos” (VASSOLER, 2015, p. 27). Nesse sentido, Raskólnikov e Caim são personagens que se revoltam contra a figura divina, o único ser que está além da polifonia (PONDÉ, 2013). O primeiro, diante do deicídio do século XIX, almeja dizer uma “nova palavra” que substitua a “letra da lei” e que o autorize a matar (TCHIRKÓV, 2022; VASSOLER, 2015). O segundo, se enfurece com o sacrifício não aceito por Deus e assassina seu irmão a fim de atingir o próprio Deus (NANDI, 2016). Ambos, no fim, querem ultrapassar limites e se tornarem Homem-Deus (BEEBE, 1955, p. 594).
Consequentemente, a rejeição do divino torna-se motivo de indiferença e falta de reconhecimento do outro e da terra. O trajeto de ambos, nesse sentido, é uma luta por reconhecimento – de si mesmos e do próximo (HONNETH, 2003; RICOEUR, 2006). É um despojamento do solipsismo ético para uma compreensão autêntica do outro como ser humano igual em dignidade. É compreender que o respeito pelo outro, “transforma a coexistência em perdão” (VASSOLER, 2015, p. 37, grifo nosso). No ambiente caótico e contraditório, a redenção se revela como faceta do perdão, da reconciliação. Essa foi a última etapa deste artigo. No entanto, conforme vimos, o desenvolvimento redentivo será distinto. Caim não recebe amor, propriamente dito, mas um sinal da graça na testa (Gn 4:15). Raskólnikov retorna ao seio da terra e a beija como forma de reconciliação; Caim, por outro lado, afasta-se como fugitivo e errante pela terra (Gn 4:14). Ainda assim, mesmo com finais distintos, Caim é um exemplo paradigmático e universal da violência humana e do instinto da indiferença e de como devemos ser, ao contrário dele, guardadores uns dos outros. Em Raskólnikov, encontramos que mesmo o maior dos pecadores é capaz de receber o perdão e renascer (WU, 2010). Para ele, o amor tudo transforma. Afinal, segundo Dostoiévski postula em Os Irmãos Karamázov:
Irmãos, não temais o pecado dos homens, amai o homem também em seu pecado, porque isto é semelhante ao amor de Deus e é o ápice do amor na Terra. Amai toda criação de Deus, no conjunto e em cada grão de areia. Amai cada folha, cada raio de Deus. Amai os animais, amai as plantas, amai todas as coisas. Amarás toda e qualquer coisa e nas coisas alcançarás a compreensão do mistério de Deus. Uma vez tendo compreendido, já começarás a compreender tudo sem esmorecimento, e cada vez mais com o passar do tempo, todos os dias. E finalmente amarás o mundo inteiro já com um amor total, universal (DOSTOIÉVSKI, 2019b, p. 366, grifo nosso).
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[1] Realista, aqui, no sentido de se intercalar no círculo literário do realismo russo. Não pretendemos discutir aqui a relação complexa entre a literatura e o real, isto é, até que ponto o escritor, em seu processo mimético, estabelece o real – puramente dito.
[2] Auerbach (2021, p. 12), em sua obra fundamental (Mimese), discute a relação entre as personagens do Antigo Testamento e as compara com a estética das personagens homéricas: “O mais importante, contudo, é a multiplicidade de camadas dentro de cada homem; isso é dificilmente encontrável em Homero, quando muito na forma da dúvida consciente entre dois possíveis modos de agir; em tudo o mais, a multiplicidade da vida psíquica mostra-se nele só na sucessão, no revezamento das paixões; enquanto os autores judeus conseguem exprimir camadas simultaneamente sobrepostas da consciência e o conflito entre elas”. No fim, em sua percepção, a Bíblia e o texto Homérico representam dois grandes pilares na fundamentação do imaginário simbólico da realidade ocidental.
[3] Quanto à polifonia, esse grande diálogo interno das consciências na literatura, Bakhtin (2018, p. 4) resume: “A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski”.
[4] A consciência é tema fundamental não somente em Bakhtin, mas também em outras escolas filosóficas e em outros autores. Dado isso, levaremos, da mesma forma, em conta o conceito hegeliano do termo, dado que sua influência é notória no texto dostoievskiano sobretudo pela relevância do tópico do reconhecimento (BAKHTIN, 2018; VASSOLER, 2015). No entanto, é importante ressaltar que o uso de Hegel, neste estudo, não terá como objetivo o desdobrar de uma análise marxiana da alienação e da dominação, haja vista que o intento é estabelecer um exame literário entre ambas as narrativas.
[5] Conforme expresso por Bakhtin (2018), a vida só existe em meio ao diálogo, afinal não há fala sem falante nem enunciado sem enunciador, nem locutor sem receptor, e assim por diante. Ora, na centralidade do dialogismo bakhtiniano encontramos uma afirmação contínua de que um ‘eu’ só se faz ‘eu’, a partir de um ‘tu’. Essa relação resume até mesmo o tema da consciência relacional e a questão do reconhecimento no âmbito hegeliano. Pressupomos, portanto, que esse ímpeto monológico é uma manifestação vocálica dentro do plano poético polifônico, partindo da pergunta basilar feita por Vassoler (2015, p. 27): “O que impediria essas personagens relativamente autônomas de construir universos monodalógicos e centrífugos que apenas orbitam ao redor de si mesmos?”. Dessa maneira, pensamos que tal pergunta seja fundamental na compreensão de Raskólnikov e seu ímpeto de silenciamento da voz do outro no ato monológico de crime.
[6] Raskólnikov é uma fusão, segundo Frank (2013), de duas personagens dostoievskianas, a saber, Goliádkin’d, de O Duplo, e o homem-sonhador, de Noites Brancas. Não obstante, para a grande parte da crítica russa – de Grossman, Ivánov, Engelgardt a Bakhtin – há consenso quanto ao caráter de Raskólnikov como herói ideológico. As condições sociais do século XIX eram demarcadas pela presença do utilitarismo, do darwinismo, do socialismo utópico, do niilismo russo (representado por Tchernichévski) e, sobretudo, do individualismo nietzschiano, o qual exerce uma função importante na caracterização de Raskólnikov (BAKHTIN, 2018; CARROLL, 2011; FRANK, 2013; LUKÁCS, 1965; VASSOLER, 2015). Em resumo, sobre a tal miscelânea ideológica, Frank (2013, p. 145) conclui, em relação ao livro: “Crime e Castigo é um exemplo claro dessa realização e a principal linha de ação, que envolve a prática de um assassinato em virtude de uma intoxicação ideológica, descreve todas as funestas consequências morais e psíquicas que resultam para o assassino”.
[7] Bakhtin (2018) caracteriza esses momentos como “espaços de crise”, isto é, instâncias em que as personagens se deslocam em direção constante aos seus limites. Ele comenta: “Tudo nesse romance – os destinos das pessoas, suas emoções e ideias – está aproximado dos seus limites, tudo parece estar pronto para se converter no seu contrário (não no sentido dialético-abstrato, evidentemente), tudo está levado ao extremo, ao limite”. Essa dinâmica é notoriamente percebida em Raskólnikov e sua obsessão por ultrapassar os limites de sua própria humanidade.
[8] Conforme pontua Frank (2013, p. 152), “É um jovem intelectual sensível, cuja agudeza de sensibilidade é comunicada ao mesmo tempo através de seus impulsos instintivos de compaixão pelo sofrimento que vê em torno de si e através da intensidade de sua repulsa às suas intenções”.
[9] Wu (2010, p. 257) comenta que “A obra de Fiódor Dostoiévski congrega dois polos que se atritam inevitavelmente: a perspectiva cristã da ortodoxia russa e o mundo extraído das observações atentas do autor sobre o cotidiano jornalístico do âmbito social e da realidade criminal”. Frank (2019, p. 103), em Lectures on Dostoevsky, comenta também que as personagens, nesse viés, são construídas sob uma revolta social e a hierarquia desta, bem como movidas de uma revolta “[...] against those established by their inherited Christian moral conscience”. Essa batalha feroz entre o social e o religioso faz com que a dimensão do crime transcenda o tratamento meramente histórico. Ora, o crime assume dimensões metafísicas e espirituais.
[10] Acerca do caráter de drama familiar, Nandi (2016, p. 52) reitera que “A temática da relação fraterna marcada pela rivalidade e violência encontra-se presente tanto em culturas do antigo oriente próximo, como em outras civilizações, constituindo-se um material universal com paralelismos na Mesopotâmia, na Pérsia, no Egito, na Grécia, em Roma”. Schulmann (1986) e Westermann (1984) apontam para uma semelhança com a história dos irmãos Rômulo-Remo, no qual o fratricídio gera a fundação de uma cidade.
[11] A presença do objeto direito (תֶ א (antes do nome de Deus indica a possibilidade de que Eva achasse que seu filho era o próprio Deus, a semente esperada de Gn 3:15. Nandi (2016), nesse viés, comenta que tal atribuição de Eva sobre o filho serve de quebra de expectativa no texto, já que depois Caim não se revelará como “varão com auxílio do Senhor”, mas sim um assassino do próprio irmão, assim como aquele que se afasta da presença divina.
[12] Mochulsky (1967, p. 501) afirma: “His mother’s letter is the turning point in the hero’s fate. Up until now he had been lying on his sofa resolving abstract questions; now life itself demands that he take immediate action”.
[13] “ ץֵ בֹר means ’to lie down’, usually in relation to animals [...] The first is the common connotation, used to describe a flock of sheep lying down (Gen. 29.2; Isa. 13.20; 17.2; 27.10; Ezek. 34.14; Zeph. 2.14), or to describe wild animals, especially lions, that lie down and nobody dares to wake, because they project some kind of threat (Gen. 49.9; Isa. 13.21; Zeph. 2.15)” (VAN WOLDE, 1991, p. 31).
[14] “Assim, é com a própria animalidade interior, que lhe provoca a aflição de uma cobiça não saciada, uma força imoderada que lhe queima por dentro, que Caim se encontra confrontado. Deste modo, Caim deve dominar o ‘animal feroz’ que carrega escondido em si” (NANDI, 2016, p. 91).
[15] Bezerra (2019, p. 425) traz nas notas de tradução a seguinte observação quanto ao termo “ultrapassar”: “O verbo ‘ultrapassar’ está desacompanhado do objeto ‘obstáculo’ ou ‘limite’. Leia-se, portanto, ‘ultrapassar o limite’, tema central da obra de Dostoiévski”.
[16] Apesar da metáfora animalesca, percebe-se também que Caim banaliza conscientemente seu ato. No verso 8, emblemático e axiomático na análise da indiferença, este ridiculariza YHWH, dizendo que não é “babá” de seu irmão. Isso mostra que, após o ato, há consciência da ação, porém seguida de indiferença e negação.
[17] Mochulsky (1967, p. 502, grifo do autor) trata da irracionalidade do ato de Raskólnikov dos seguintes aspectos: “[...] he takes the axe not from the kitchen as he had planned, but from the porter’s lodge; he accidentally kills Lizaveta; forgets to lock the door; he has no idea of how to commit the robbery”. Ora, na narrativa, Raskólnikov acha-se capaz de cometer um crime lógico e planejado, mas na hora quase tudo acaba ocorrendo de maneira diferente.
[18] Frank (2013, p. 158), comentando sobre a tese social de Raskólnikov, diz: “Essas pessoas ‘extraordinárias’ sempre cometem crimes, a julgar segundo os velhos códigos morais que estão tentando substituir; mas, por agirem ‘em nome de algo melhor’, seu objetivo é fundamentalmente a melhoria do destino da humanidade, e são assim, a longo prazo, mais benfeitores que destruidores”.
[19] A ironia, na narrativa de Caim, é que sua preocupação com o outro assume uma postura extremamente negativa. Não há reconhecimento pleno, dado que a personagem está apenas circulando em torno de si mesma. Nandi (2016, p. 103) sugere, nesse sentido, que a utilização verbo (רַ מָ ש (ׁno particípio, na fala de Caim, denuncia uma conotação “[...] visivelmente negativa da responsabilidade pelo próximo”, análoga a um sentido de posse do outro. 20. Ora, a consci
[20] Ora, a consciência de si só se faz consciência de si mesma na medida em que compreende que no mundo existem outras consciências de si. Honneth (2003, p. 45, grifos do autor) afirma que em “[...] ‘vir-a-ser da eticidade’ é concebido como um entrelaçamento de socialização e individualização pode-se aceitar que seu resultado seria também uma forma de sociedade que encontraria sua coesão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os indivíduos”. Consoante, Bakhtin (2018) chamará essa relação de coexistência, o elemento inescrutável da polifonia. Para ele, as vozes não se objetificam, mas se realizam uma na outra. Nesse sentido, a grande problemática da dialética do Senhor e do Escravo, em Hegel, se dá justamente nessa opressão e na falta de reconhecimento entre os indivíduos. Bakhtin (2018, p. 323, grifo do autor), por fim, comenta também sobre essa consciência solitária que não reconhece nas seguintes palavras: “O capitalismo criou as condições para um tipo especial de consciência permanentemente solitária. Dostoiévski revela toda a falsidade dessa consciência, que se move em um círculo vicioso. Daí a representação dos sofrimentos, das humilhações e do não reconhecimento do homem na sociedade de classes”.
[21] Acerca dos paralelos entre Gn 3 e Gn 4, Westermann (1984, p. 285) comenta: “The parallels between Gen 4 and 3 are so striking and thorough as to make the intention of J unmistakable, namely, to construct in ch. 4 a narrative of crime and punishment corresponding to that in ch. 3”.
[22] Van Wolde (1991, p. 33, grifo nosso) disserta sobre a relação fundamental do relato de Caim: a questão da irmandade. Em suas palavras: “In YHWH’s speaking to Cain, in vv. 9, 10 and 11, ’your’ brother’ occurs three times, whereas Cain only speaks once of ’my’ brother (v. 9), and here it is in a negative sense [...] Furthermore, in the latter case the word ’I’ at the end of the sentence indicates that Cain puts the emphasis on himself. Cain is not a brother and does not behave as a brother”.
[23] O jovem irmão do Stárietz Zóssima, em Os Irmãos Karamazov, diz algo parecido também: “Pois que em nosso século todos se dividiram em unidade, cada um se isola em sua toca, cada um se afasta do outro, esconde-se, esconde o que possui e termina ele mesmo por afastar-se das pessoas e afastá-las de si mesmo” (DOSTOIÉVSKI, 2019b, p. 349).
[24] Nandi (2016, p. 105), comentando sobre o egoísmo de Caim, afirma que: “Yhwh não está disputando nada com Caim, mas aproxima-se para possibilitar a Caim atingir a verdade existencial e, com isso, penetrar na maturidade humana [...] Somente se Caim tivesse dado esse passo é que poderia ter sua singularidade afirmada objetivamente na realidade, do contrário, mantém-se na ilusão frágil do egocentrismo, uma realidade subjetiva que precisa sempre estar em disputa para afirmar o próprio ego.
[25] Nandi (2016, p. 103) aponta sobre o uso do verbo “guardar” (רַ מָ ש” :(ׁO verbo não é usado somente no sentido de ‘preservar, cuidar, sustentar, proteger’, mas também com o sentido de ‘controlar, regular, exercer autoridade sobre, supervisionar’. Caim usa o particípio רֵֹ שמ ,ׁneste segundo sentido, e aplica a ele uma conotação visivelmente negativa”.
[26] Sobre a função humana em Gn 2:15, Nandi (2016, p. 104) complementa: “Fora criado e colocado no ‘Jardim do Éden’, como dito em Gn 2,15, para, literalmente, ‘servir, cultivar o expresso estáׁ) שָ מַ ר e עָ בַ ד) verbos dois nestes que Parece). לְ עָ בְ דָ ּה ּולְ ׁשָ מְ רָ ּה) ‘guardar e ofício humano de ‘cuidar’ da obra divina. Desse modo, pode-se concluir que está incluído nisso, de sobremaneira, o ofício do cuidado fraterno, sendo o humano parte sublime da obra criada”.
[27] É importante ressaltar que grande parte dessas leis cúlticas estava relacionada com o tratamento do outro. Em Lv 19:18, por exemplo, temos ordenações como “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor” (grifo do autor). Em ressonância com os mandamentos do Sinai, temos também, em Lv 19:4: “Cada um respeitará a sua mãe e o seu pai e guardará os meus sábados. Eu sou o Senhor, vosso Deus” (grifo do autor).
[28] Vassoler (2015, p. 30) comenta: “Assim, ao niilismo de Raskólnikov se contrapõe a abnegação cristã de Sônia Marmeladova, a ex-prostituta que acompanhará o protagonista de Crime e Castigo à Sibéria para ajudá-lo a expiar suas faltas em busca da completa regeneração”.
[29] Beebe (1955, p. 594) também disserta: “[...] the psychological and philosophical drama in a Dostoevsky novel is expressed in terms of a conflict between opposite poles of sensibility and intelligence, spirit and mind, passiveness and aggressiveness, self-sacrifice and self-assertion, God-man and Man-god, or, sometimes, ‘good’ and ‘bad’”.
[30] Amor total, pois abrange o respeito e a dignidade não apenas do ser humano, mas de toda a criação. O jovem irmão do Stárietz Zossima, em sua condição débil, entendeu isso. Em suas palavras: “Como poderia ser diferente – respondo –, pois o Verbo é para todos, toda criatura, todo bicho, toda folhinha aspira ao Verbo, canta a glória de Deus [...]” (DOSTOIÉVSKI, 2019b, p. 340).
[31] A divergência assume também uma dimensão histórica. Caim, ao sair da terra, funda uma cidade dando marco, pois, ao início da civilização. Menciona-se, na narrativa, a fundação da arte (Gn 4:21), metalurgia (Gn 4:22), mas também da violência degenerada com Lameque (Gn 4:23-24). Raskólnikov, concomitantemente, representa a ruptura do homem russo com os valores da terra. Marques (2016, p. 218) diz que “raskól também é o nome dado à cisma da Igreja Ortodoxa, isto é, à separação entre a igreja oficial e os chamados velhos crentes, motivada pelas reformas do patrono Nikon em 1653”. A modernização da Era Petrina é responsável por trazer todo tipo de miscelânea ideológica (niilismo, utilitarismo, darwinismo etc.) (FRANK, 2013). Dostoiévski almeja voltar para a terra, local onde a vida é “plena e integral” (TCHIRKÓV, 2022, p. 112). A divergência se dá no final: Caim se afasta da terra e se “moderniza” com a fundação da cidade, enquanto Raskólnikov retorna, mesmo que simbolicamente, para a terra e se afasta dos valores da modernidade.
[32] Alguns críticos, como Ernest J. Simmons, trazem o epílogo como a parte mais fraca do romance. No entanto, para Beebe (1955, p. 593) [...] the ending is artistically and psychologically inevitable because the basic motive of regeneration is the same as the underlying motive for the crime [...] Without the Epilogue much that precedes would seem confused and contradictory”.