Um artista nacional?  Literatura e teologia na carta Esperanças de Portugal” do Padre Antônio Vieira.
A national artist? Literature and theology in the letter Esperanças de Portugal” by Padre Antônio Vieira.

Víctor Almeida Gama
Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Contato: victoralmeidagama@gmail.com

Alexandre Sugamosto
Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) Contato: sugamost@gmail.com 


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Resumo: A descoberta dos manuscritos da Clavis Prophetarum (A Chave dos Profetas), documento que era considerado desaparecido há pelo menos trezentos anos e ressurgiu em 2022, reacendeu o interesse na obra do “jesuíta do rei” e em seus escritos considerados fundamentais para “para a história luso-brasileira” [1]. No entanto, a realidade é que a obra de Antônio Vieira (1608-1697) tem sido fonte de controvérsia teológica e literária desde que vieram a lume. Por exemplo: uma das teses centrais da Clavis, -tese a respeito da qual nem o próprio Vieira parece ter alimentado convicção ao longo da vida- é a de que estava em gestação o tempo da consumação milenar do “reino de Cristo”. O livro faz parte do que a historiografia convencionou chamar de “Trilogia do Quinto Império”: somam-se ao “Chave dos Profetas”, a carta “Esperanças de Portugal” (“Carta ao Bispo do Japão”), escrita em 1659, e a “História do Futuro”.  Em diversos momentos da trilogia, Vieira afirma que esse Quinto Império- aquele que consumará o futuro esperado e sucederá o dos egípcios, assírios, persas e romanos- é o próprio reino de Portugal. O objetivo deste artigo é analizar a carta de Padre Vieira em seus aspectos literários e teológicos.

Palavras-chave: Padre Antonio Vieira; Clavis Prophetarum; Milenarismo; Chave dos Profetas

Abstract:The discovery of the manuscripts of the Clavis Prophetarum (The Key of the Prophets), a document that was thought to have been lost forever for at least three hundred years and that was found   in 2022, rekindled interest in the work of the “King’s Jesuit” and in his writings, which are considered fundamental “for Luso-Brazilian history”. However, the reality is that the work of Antônio Vieira (1608-1697) has been a source of theological and literary controversy ever since they have come to light. For example, one of the central theses of Clavis, - a thesis about which not even Vieira himself seems to have been convinced throughout his life - is that the time for the millennial consummation of the “kingdom of Christ” was in gestation. The book is part of what the historiography has agreed to call the “Trilogy of the Fifth Empire”: which includes, in addition to the “Key of the Prophets”, the letter “Esperanças de Portugal” (“Letter to the Bishop of Japan”), written in 1659, and the “History of the Future”. In several moments of the trilogy, Vieira states that this Fifth Empire - the one that will bring about the expected future and succeed that empires of the Egyptians, Assyrians, Persians and Romans - is the kingdom of Portugal itself. This article intends to analyze Father Vieira's letter, Esperanças de Portugal, in its literary and theological aspects.

Keywords: Padre Antonio Vieira; Clavis Prophetarum; milenarismo; Key of the Prophets

Introdução 

Nas terras tropicais do meu Brasil
A herança, a dor... 
O mito ressurgiu
Eis o guerreiro sebastiano
O mais ufano dos lusitanos em verde e branco
Que traz no peito uma estrela a brilhar
De Norte a Sul desta nação
Faz a manifestação popular
Minha Mocidade guerreira
Traz a igualdade, justiça e paz
Hoje o Quinto Império é brasileiro, amor
Canta Mocidade, canta. 
Samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, 2008.  

Tudo o que abraça o mar, tudo o que alumia o Sol, tudo o que cobre e rodeia o Sol, será sujeito a este Quinto Império; não por nome ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram impérios do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da cruz de Cristo. (VIEIRA, 1855, pg. 22)

Investigado pelo tribunal do Santo Ofício por “comentário de livros proibidos, proposições ofensivas ao Rei e à Corte por permitir escravidão em seus domínios, injúrias contra outras ordens religiosas” (PÉCORA, 2020, p.179), uma das suspeitas que recaíam sobre o Padre Vieira era a da ter em sua posse “livros de profecias” (VAINFAS, 2011, p.220) que pareciam “menos católicos”. Entre esses livros, possivelmente estava o Paráfrase e concordância de algumas profecias de Bandarra, sapateiro de Trancoso que fora publicado em 1603 por d. João Castro como uma reação lusitana ao domínio da dinastia filipina. Tal publicação, por seu turno, insere-se na esteira dos documentos sebastianistas que estavam sendo produzidos desde a morte de El-Rey. 

Nascido em 1554, Dom Sebastião surge em um cenário politicamente desfavorável para a Coroa Portuguesa e num momento de particular apreensão popular sobre os destinos de Portugal. Seu pai, Dom João Manuel, morrera pouco antes do nascimento do filho e Sebastião passou a ser a única esperança da continuidade da Dinastia de Avis, que estava enfraquecida por conta das disputas comerciais com holandeses, franceses e ingleses e também ameaçada pelos contratos matrimoniais firmados junto à realeza de Castela. Por conta de todas essas tensões, Sebastião tornou-se “o depositário de todas as esperanças de retomada do ímpeto desbravador e guerreiro que que caracterizava a história do povo português” e recebeu a alcunha de “Desejado” (HERMANN, 1998, p.73).

No ano de 1578, todavia, Sebastião I de Portugal foi derrotado pelo sultão Mulei Maluco, nome pelo qual as fontes portuguesas chamavam Abu Maruane Abdal Malique, na campanha militar de Alcácer-Quibir. Ora, se a morte do Rei Sebastião precipitou a temida “União Ibérica” (1580-1640) e o domínio político da dinastia filipina, as lendas e prognósticos que cercaram seu desaparecimento –   como, por exemplo, a ideia de que ele ainda estaria vivo, “Encoberto”, e que retornaria para trazer a salvação ao reino português – serviram, entretanto, para manter acesas as esperanças portuguesas da retomada dos caminhos gloriosos.

Dentre todas as dúvidas que se abatem sobre a obra do Padre Antônio Vieira, algumas das mais importantes são aquelas que tratam da natureza de seus trabalhos: eram textos de oratória barroca, de intervenção política imediata e propaganda ideológica (MENDES, 1989), ou eram peças históricas com teor profético? Em que medida, ainda, podemos enquadrar o conhecido e peculiar estilo de Antônio Vieira como um capítulo da história literária do Brasil? Este artigo pretende responder discutir essas questões com foco na carta “Esperanças de Portugal” e na tensão conceitual entre literatura teológica e teologia literária. 

1. Antônio Vieira e as disputas teológicas 

Em 21 de junho de 1662 o Padre Antônio Vieira é colocado sob suspeita pelo tribunal da Inquisição. Muitos de seus leitores ao longo dos anos, cativados pelos mistérios de suas posições e pela destreza no uso da língua pelo pregador português, bem como ciosos da ortodoxia em matéria de fé católica, percebiam essa condenação e posterior absolvição em 1675 por Clemente X, como um indicativo de que em suas ideias pairaria, ainda, algum sinal de contradição. 

É preciso ressaltar, porém, que estar sob vigilância da Inquisição não significava que a obra de algum autor estivesse atravessada por ideias condenadas pelo magistério católico. A própria Teresa Sanchez de Cepeda y Ahumada (1515-1582), popularizada com o nome religioso de Santa Teresa de Jesus, foi investigada pelo mesmo tribunal e absolvida. 

Santa Teresa era neta de um judeu convertido e que em certa altura da vida teria retornado ao judaísmo, sendo condenado pelo tribunal da Inquisição. Este dado biográfico pesaria negativamente para a reputação da santa. Foi promotora da reforma da Ordem Carmelita na Espanha- uma das mais antigas da Igreja Católica, remontando, no mínimo, ao século XII. É uma das autoras espirituais de maior relevância na mística católica, canonizada em 1622 e no ano de 1970 elevada à condição de Doutora da Igreja. Estar sob suspeita da Inquisição, portanto, não é necessariamente sinal de heterodoxia, como prova a biografia da “santa madre” dos carmelitas.

Vieira, por seu turno, foi um missionário ortodoxo, embora sua empresa missionária no Maranhão não tenha sido exitosa (LOBO, 1897, p. 123). Vieira foi, inclusive, expulso do lugar (BESSELAAR, 1981, p. 52). A ortodoxia de Padre Vieira é hoje mais clara, distantes quatro séculos de sua condenação. Sua defesa dos indígenas e negros era atravessada por argumentos escriturísticos e patrísticos, ressaltando sua profunda erudição e conhecimento doutrinário, em um tempo em que o clero católico padecia ainda de má formação, problema em parte solucionado com a tardia recepção do Concílio de Trento e suas normas disciplinares, dentre as quais a criação de seminários para formação teológica adequada. 

Há quem diga, como Alfredo Bosi, que a condenação do jesuíta está inserida num contexto de conflito entre ordens religiosas. Ela seria o resultado de um problema político envolvendo jesuítas e dominicanos, mais que um mero problema de fé da parte de Vieira (BOSI, 2009). Ronaldo Vainfas demonstra que também as diferenças de natureza política eram motivações para investigações inquisitoriais (VAINFAS, 2008). As enigmáticas trovas de Bandarra - motivo formal de sua condenação, posteriormente colocadas no Index Librorum Prohibitorum-, seriam apenas um instrumento dessa querela. Os críticos de Padre Vieira, em geral, desconsideram os conflitos entre ordens religiosas que, ainda que não existissem como crítica formalizada, existiam de modo mais discreto, que se manifestava em situações como essa. Diz o Padre Vieira em sua defesa:

Quanto aos religiosos, podem ser estes da minha religião, ou de outras, particularmente daquelas que têm maior emulação à companhia e seus sujeitos: entre todas sou mais odiado das que têm conventos no Maranhão, por me terem por inimigo descoberto, sendo a verdade, que, venerando a todos os religiosos quanto merece o seu hábito, só me não podia conformar com a perniciosa doutrina que nos púlpitos, confessionários e nos testamentos, seguem acerca dos injustos cativeiros dos índios, que é o maior impedimento para a sua conversão (VIEIRA, 1856, p. 40). 

Gonçalo Annes, o Bandarra, é o autor de trovas que fundamentaram a carta do Padre Vieira ao bispo do Japão. Ao que tudo indica, o sapateiro Gonçalo, cujo ano de nascimento é desconhecido, teria morrido em 1545, nove anos, portanto, antes do surgimento de Dom Sebastião. Algumas de suas trovas, contudo, falam sobre um tal Rei Encoberto, a cabeça de um Império cristão de estabilidade, verdade e paz:                

LXXI 

Este Rei tem tal grandeza 
Qual nunca vi em Rei: 
Este guarda bem a lei 
Da justiça, e da grandeza.
Senhoreia sua Alteza
Todos os portos, e as viagens,
Porque é o Rei das passagens
Do Mar, e sua riqueza  

A poesia do Bandarra poderia ter sido só mais uma na extensa linhagem trovadoresca que atravessa a Europa entre os séculos XII e XIV. Entretanto, a partir da morte de Dom Sebastião e da edição glosada de D. João Castro (em 1603), as rimas do sapateiro começam a ser interpretadas como um sinal inequívoco do retorno do “Encoberto” e de Portugal como a cimeira de um império universal da cristandade. Embora Antônio Vieira tenha flertado com a interpretação sebástica do bandarrismo, na carta “Esperanças de Portugal” ele trará uma nova interpretação sobre os textos: o rei que ressuscitará não é Dom Sebastião, mas sim o recém-falecido Dom João IV. Um detalhe importante é que desde aproximadamente 1642, com o rei ainda vivo e contando com os conselhos e habilidades diplomáticas do jesuíta, Vieira já vinha pregando, como o fez em seu primeiro sermão na Capela Real, que Dom João IV era o rei prometido de Portugal e que “talvez buscando a um Rei morto, se vem a encontrar com um vivo” (Cartas, Tomo III). Evidentemente, a posição profética “joanina” de Vieira guarda relação direta com o fim da União Ibérica (em 1640) e a ascensão da dinastia de Bragança ao trono do Portugal. As preocupações do padre, no entanto, estão muito além das intrigas palacianas e dos conflitos ocorridos na colônia. Os silogismos usados por Vieira na carta ao Bispo e confrade André Fernandes são, para usar a expressão de José Van den Besselaar, “verdadeiramente espantosos” (BESSELAAR, 2002, p.33). O jesuíta afirma explicitamente que “o Bandarra é verdadeiro profeta” e que ele profetizou que “el-Rei D.João o 4◦ há-de ressuscitar” (Cartas, Tomo I).

Ao se procurar interpretar uma obra, é necessário considerar em primeiro lugar a intencionalidade do autor. É natural crer que ele queira ser entendido. As interpretações dos escritos de Vieira durante seu processo foram claramente comprometidas por uma leitura enviesada pelos rancores da Inquisição. A carta ao bispo do Japão, que afirmava que “el-rei D. João IV há de ressuscitar”, seria usada em seu desfavor no processo inquisitorial (BESSELAAR, 1981, p. 44). 

Uma análise apressada poderia supor que aventar a possibilidade da ressurreição de D. João IV seria mais um sintoma da heterodoxia de Vieira, quando na verdade a própria doutrina católica enxerga os casos de ressurreições como possíveis. Estando a alma em estado em que não foi ainda submetida ao juízo particular de Deus, poderia ela, em alguma circunstância misteriosa, retornar ao corpo de origem (ROSA, s/d). 

Diz Besselaar sobre a carta, corroborando o tom político do processo: “A carta custou-lhe caro. Copiada e comentada por amigos e inimigos, deu azo a uma terrível vingança dos inquisidores que, rancorosos contra ele pela fundação da companhia mercantil, procuravam um pretexto para lhe causar a ruína” (BESSELAAR, 1981, p. 44-45).

As ideias de Padre Vieira não se distanciavam muito do pensamento de outros autores, populares nos meios teológicos católicos na transição entre Alta e Baixa Idade Média. As ideias de cariz milenarista não eram um elemento tipicamente cristão, sendo possível perceber a presença delas inclusive nos meios judaicos (COHN, 1970). Essa existência de ideias milenaristas era de certa forma tolerada pelos católicos, a despeito do que afirma São Tomás de Aquino a respeito daqueles que professavam tais ideias, chamando-os, em seus comentários às sentenças de Pedro Lombardo, de hereges que afirmam que haveria uma primeira ressurreição dos mortos, a fim de que reinassem com Cristo mil anos sobre a terra.

Padre Vieira recebeu educação jesuítica, o que de certa forma pode tê-lo colocado em contato com as principais produções teológicas da Companhia. O seu messianismo “patriótico” não era desprovido de um manto teológico. João Batista Ferraz diz, citando Pedro Romano Rocha, que ao dar crédito às profecias de Bandarra, o padre Vieira seguia um sentir comum da época (FERRAZ, 2012). 

Descortinar o sentido dessa literatura tão comum nos tempos de Vieira requer a apresentação de alguns exemplos que provam que os temas que envolviam as profecias do livro do Apocalipse provocaram uma reação de sentimento escatológico, que construiu uma vasta literatura a respeito. 

Cabe aqui destaque para a obra de Cornélio a Lápide (1567-1637). O jesuíta flamenco é conhecido por suas obras de exegese bíblica, especialmente sobre o livro do Apocalipse. Basselaar reconhece ser Cornélio a Lápide um autor muito caro a Vieira, o que demonstra uma sintonia do jesuíta com a discussão teológica de seu tempo. 

Contemporâneo ao Padre Vieira foi também Bartolomeu Holzhauser (1613-1658). O que diferencia sua obra de Padre Vieira, é que Holzahauser foi também um visionário e sua literatura é perpassada por revelações privadas. Trata ele do envio, por Deus, de um grande castigo à humanidade, de uma restauração da cristandade e dos tempos de paz operada por um Poderoso Monarca e um Papa, e que este tempo de provações não seria ainda o do fim do mundo, apenas o período da grande colheita. 

Tal como faz Vieira na sua interpretação das eras históricas, Holzhauser faz uma analogia entre os sete castiçais e estrelas vistas pelo apóstolo João no livro do Apocalipse e sete eras históricas, como também fez Hildegarda de Bingen (1098-1179), que em suas obras divide a história em 7 momentos. 

Sabendo que Padre Vieira era um homem sintonizado com as produções teológicas de sua época, é possível inferir que se não tenha ele acessado as obras de tais autores, ao menos participou da atmosfera teológica produzida por elas ao longo dos séculos. Há, no entanto, uma diferença substancial entre o que produz Vieira e o que produziram estes autores. 

O texto de Vieira, muito mais que atravessado de significados teológicos, tem um sentido muito mais literário e “nacionalista”. As próprias trovas de Bandarra comentadas por ele eram, segundo João Batista Ferraz, um “misticismo nacionalista” (FERRAZ, 2012). O suposto milenarismo em suas obras, na verdade, não pode ser reduzido ao seu conceito teológico, que a New Catholic Encyclopedia define como: “a doutrina segundo a qual antes do Juízo Final, Cristo retornará à terra para estabelecer um reino terreno, um reino que durará mil anos, o milênio” (KUEHNER, 2003, p. 633). O Dictionnaire de Théologie Catholique, por sua vez, o define como um “erro professado por aqueles que esperam um reino temporal do Messias, reino do qual fixam às vezes a duração de mil anos (VACANT; MANGENOT, 1929, v. 10, p. 1760)

Em estrito sentido teológico, o milenarismo consiste na compreensão de haver um momento histórico marcado pelo reinado físico e visível de Jesus Cristo, o que nunca foi precisamente a defesa de Vieira. 

O milenarismo tout court é apresentado pelo magistério católico como uma impostura, na medida em que distorce a ideia do retorno de Jesus Cristo, como exposto no texto bíblico. Embora fale-se também de um milenarismo que incorporava aspectos políticos, em sentido estritamente teológico ele apenas diz respeito à uma vinda de Jesus Cristo antecedente ao seu segundo retorno, a parusia, no qual deveria julgar a humanidade. Esses milenarismos de cariz político são apresentados em sentido analógico com o teológico, de onde pode vir muitas confusões na esteira dessa compreensão. O próprio Norman Cohn, já citado, quando se refere aos milenarismos, acena para aqueles movimentos sociopolíticos.

A literatura de Padre Vieira, portanto, nunca teve pretensões de concorrer com os tratados teológicos, e ainda que o tivesse, é preciso reconhecer que há em sua obra diferenças substanciais. Não é exegética, no sentido de tentar perscrutar os mistérios escatológicos do Apocalipse, tampouco se fundamenta em visões ou revelações privadas - que não constituem parte fundamental do dogma católico, por não serem de fé divina e nem de fé eclesiástica. Sua análise das trovas de Bandarra são uma forma de literatura patriótica, no dizer de Ferraz (2012), revestida de um fundo teológico. Ferraz ainda ressalta que uma das acusações de Vieira no Santo Ofício foi de elaborar uma visão excessivamente temporal do reinado de Jesus Cristo na obra O Quinto Império, baseado nos capítulos II e VII do livro de Daniel (FERRAZ, 2012). 

Ferraz indica que a literatura de Vieira sob acusação seria um esforço para conquistar a simpatia dos portugueses ao trono recém restaurado:

Assim como buscou apoio dos mercadores judeus expulsos de Portugal, defendendo seu regresso ao reino porque suas riquezas ajudariam a consolidar a monarquia, assim também procurou atrair a simpatia dos sebastianistas para a nova dinastia de Bragança. A princípio foi um projeto político, mas com o passar do tempo foi se arraigando em seu espírito a confiança nas profecias de Bandarra, a ponto de dizer, apoiado em ditas profecias, que o rei Dom João IV, ressuscitado, realizaria aquilo que em vida não pudera cumprir, isto é, instaurar o Quinto Império – império simultaneamente espiritual e temporal –, a cuja fundação Deus destinava Portugal (FERRAZ, 2012). 

Na sequência, Ferraz transcreve Jean Delumeau, que apresenta a compreensão de Vieira sobre a ideia do reinado de Cristo, muito semelhante, aliás, à de Bartolomeu Hozhalser: 

Na concepção de Vieira, Cristo não reinará diretamente sobre o mundo regenerado, mas exercerá sua soberania por seus dois representantes, o Papa e o rei de Portugal, tendo então a Igreja chegado ao seu último estado de perfeição. Os ritos judaicos serão restabelecidos então e Jerusalém será restaurada em toda a sua glória. O pecado desaparecerá da terra pela conversão de todos os infiéis e a morte antecipada de todos os pecadores empedernidos. Todos os que sobreviverem serão salvos. No quinto Império a vida continuará como hoje, com agricultura, comércio e indústria, mas sem guerra. A paz reinará no rebanho enfim reunido. As pessoas habitarão em casas construídas por elas mesmas e apreciarão o fruto das vinhas que cultivarem. Terão vida longa, vivendo mais de cem anos, e os mais longevos chegarão a mil anos e poderão, então, combater o Anti-Cristo e dele triunfar. Pois o estado de perfeição da Igreja de Cristo durará mil anos (DELUMEAU, Apud FERRAZ, 2012).

Bartolomeu Holzauser entende que o quinto período da história, que compreende o tempo atual e iniciado com o pontificado do Papa Leão X, seria encerrado com o aparecimento de um Poderoso Monarca e de um Papa santo, que restabelecerá a ordem. O quinto período seria uma era de aflição e desolação, no qual Jesus Cristo purgaria a humanidade com guerras, fome, peste, empobrecimento. Reinos combaterão reinos, nos quais haverá dissenções intestinas, com principados e monarquias agitados violentamente. O surgimento destes dois personagens providenciais será o início de uma era histórica em que Cristo debelará todos os sofrimentos da Igreja e dos povos cristãos. 

Sobre a obra de Bartolomeu Holzauser, no entanto, nunca pairou nenhuma dúvida sobre sua lisura teológica. O livro Petits Bollandistes, uma coleção de biografias de santos publicada em 1865, o retrata (embora não sendo santo), como quem deixou uma obra exegética do Apocalipse que “que apresenta uma concordância tão admirável dos tempos e dos acontecimentos, que os outros comentários desse livro sagrado em comparação com o dele não passam de brincadeira de crianças” (GUÉRIN, 1882, p. 229).

Como se percebe, é possível falar da recepção de alguma literatura de verniz milenarista pelo catolicismo romano, que reconhece em alguns teólogos autorizados, como os já mencionados, a presença do carisma profético. A permanência deste dom no Novo Testamento é confirmada no livro de Amós: “Pois o Senhor Iaweh não faz coisa alguma sem antes revelar o seu segredo a seus servos, os profetas” (Amós, 3, 7). 

Um exemplo de profecia milenarista autorizada é a de Santo Egídio, conhecido como São Gil, conservada no convento de Santa Cruz de Coimbra acerca de Portugal, na qual se diz que “Portugal, órfão de sangue real, gemerá por longo tempo. Mas Deus te será propício. A salvação virá de longe, e serás redimido inesperadamente por um não esperado” (GALUÁ, 1943, p.90; LESCOÉ, 1869, p. 64) 

É possível, portanto, pensar que ao comentar as trovas de Bandarra, Vieira se considerasse dentro dos limites da ortodoxia oferecida por uma verdadeira tradição de obras teológicas e revelações privadas que caminhavam no mesmo sentido. 

2. Vieira e a literatura nacional

Vistos os contornos teológicos do conteúdo da carta “Esperanças de Portugal”, é preciso analisar também seu caráter autoral e artístico. O axioma de Fernando Pessoa sobre a capacidade artística do Padre Vieira- “António Vieira é de facto o maior prosador — direi mais, é o maior artista — da língua portuguesa” (PESSOA, 1966, p. 350) - contribuiu para um impulso renovado de enxergar os sermões e profecias vieirianas sob a ótica da crítica literária.  João Alfredo Hansen, entretanto, problematiza o “Vieira prosador” afirmando que: 

Para ler as cartas que o jesuíta Antônio Vieira (1608-1697) escreveu e ditou em vários lugares da América Portuguesa e da Europa entre 1626 e 1697, é conveniente especificar a historicidade dos seus regimes discursivos.  Elas não são informais. Escritas com preceitos retóricos da mímesis aristotélica, têm interpretação teológico-política fundamentada na Escolástica.   E não são “literatura”.  Em seu tempo, a instituição literária e o conceito iluminista de autonomia da ficção não existem. Também não são as “manifestações literárias” das histórias literárias brasileiras. A teologia-política que determina o tratamento de suas matérias é outra.  (HANSEN, 2008, p.265) 

A historicidade a que Hansen refere-se é, evidentemente, aquela dos letrados jesuítas do século XVII. As linhas mestras apresentadas por ele no artigo acima citado são importantes para extirpar certos abusos teóricos relacionados aos conceitos de autoria, criatividade e opinião pública, que são muitas vezes utilizados por historiadores e intelectuais de forma anacrônica e pouco rigorosa. Por exemplo: no artigo “Messianismo, Milenarismo e Profetismo no discurso Político de Portugal Moderno”, Marília de Azambuja Ribeiro argumenta que a expansão ultramarina encetou a “produção de escritos de cunho milenarista que caracterizaram o esforço feito pela corte portuguesa para elaborar uma retórica oficial que fosse capaz de justificar o expansionismo português para fora da Europa” (RIBEIRO, 2015, p.76). Ora bem, o excerto tropeça justamente no seu enquadramento históricos: entender que a expansão ultramarina portuguesa precisaria de uma “retórica oficial” para ser justificada é transportar a lógica de propaganda das guerras contemporâneas ao terreno de um imaginário alheio, em larga medida, a esses anseios e necessidades. Que tenha havido, inclusive em sociedades antigas, preocupação com memória e posteridade é fato atestado inclusive pela obra camoniana (“Que se espalhe e se cante no Universo/Se tão sublime preço cabe em verso” (Lusíadas, Canto I-5)). Daí não se deduz, entretanto, que todas as manifestações culturais, religiosas, ou até mesmo políticas, desses escritos tenham sido mobilizadas como um aparato de convencimento da opinião pública. João Alfredo Hansen, aliás, questiona a ideia de que o termo “opinião pública” possa ser aplicado “como um fato positivo” dado que isso implicaria em “generalizar sua noção liberal para todos os tempos” (HANSEN, 2008, p. 269). Público, nesse caso, pressuporia ainda um “conjunto preexistente de individualidades teoricamente livres, generalizadas ou unificadas num todo indeterminado” (HANSEN, 2008, p.269) capaz de se apropriar, criticar e exercer pressão, por diversos meios, sobre determinadas questões políticas ou culturais. Embora o exemplo acima trate da expansão ultramarina portuguesa, os dois séculos que separam Vieira das primeiras descobertas não alteraram esse significado de “opinião pública”. Nesse sentido, portanto, é evidente que Vieira não é um “autor” com um “público-alvo” tal qual entendemos contemporaneamente.   

Contudo, se é verdade que o Padre Antônio Vieira não é um “escritor” no sentido contemporâneo do termo, isso também não implica, necessariamente, que seus textos, sermões e cartas possam ser confundidos na massa de produção similar de seus contemporâneos jesuítas. Se tomarmos Dante Alighieri (nascido em 1265 -quase quatro séculos antes de Vieira-) como norte analógico, perceberemos que um mesmo plano de fundo histórico- (as lutas intestinas entre guelfos e gibelinos) e uma mesma teologia (católica do medievo) podem dar luz a um livro canônico e influente (a Comédia) que se posiciona ao lado de diversas produções “menores” (como os poemas de Guido Cavalcanti). Poder-se-ia alegar que a comparação entre o ambiente de produção de Dante e do Vieira, bem como os papeis sociais de cada um deles, é apenas falta de consciência histórica. O importante, todavia, é a observação de que mesmo antes do “surgimento histórico do autor”, no período que antecede a posição iluminista dedicada aos autores e o advento romântico do gênio, a singularidade- e, no extremo, o talento- é um elemento central para admitir quaisquer qualidades artísticas de uma composição textual. Segundo Foucault, o terreno sólido da crítica literária está justamente na possibilidade de examinarmos o autor, pois as unidades relativamente fracas que são o gênero literário e a história de um conceito estarão sempre em posições “secundárias e sobrepostas em relação à primeira unidade, sólida e fundamental que é a do autor e da obra” (FOUCAULT, 1969/2001, p. 267).

A ideia de singularidade, obra e autoria, nesse contexto, é importante até mesmo para contrapor algumas tentativas de “laicizar ao extremo” (CANTEL, 1960, p.233) a obra de Antônio Vieira. Francisco Rodrigues, citado por Raymond Cantel, repreende o próprio João Lúcio de Azevedo, principal biógrafo do jesuíta, por “prescindir”, em sua narrativa, “da fé cristã, que animava com sua força sobrenatural as atividades múltiplas de Vieira” (RODRIGUES apud CANTEL, 1960, p.233). 

No caso específico da carta “Esperanças de Portugal” (1659), as fronteiras entre um Vieira político, teológico, profético e artístico são ainda mais nebulosas. Afinal, a poesia do Bandarra poderia ter sido só mais uma na extensa linhagem trovadoresca que atravessa a Europa entre os séculos XII e XIV. Que Vieira e outros tenham dado caráter profético a esses textos, e não a outros tantos semelhantes, aponta para a problemática da literatura como fonte teológica. Problemática essa, aliás, que tem sido fonte de pesquisa no campo de estudo da assim denominada teopoética. Campo este que é “marcado por variados modos de “leitura religiosa” do texto literário” (CANTARELLA, 2018, p.194), apoiado por métodos críticos como textualidade, narratologia e teoria da recepção (FRANKE, 2009, p. 159) 

Antiguidade, por exemplo, é difícil discernir os papeis de poeta, profeta e vidente. Escrevendo sobre a Grécia, Cornford (1989) comenta o tema: 

Na verdade, atribui-se às Musas os mesmos poderes mânticos do vidente, poderes que transcendem as limitações do tempo. Em Delfos tinham elas o seu santuário, onde as exalações subiam da fonte junto do velho templo oracular da Terra, como “assessoras da profecia”, já que os oráculos eram proferidos em verso. A poesia era a linguagem da profecia (CORNFORD, 1989, p. 123)

Evidentemente, seria uma temeridade simplesmente transpor, sem as devidas nuances, essa equivalência poesia/profecia para as sociedades cristãs do século XVI e XVII. Diversos especialistas, por sua vez, sustentam em seus trabalhos tanto a possibilidade ler a própria Bíblia como literatura (FRYE, 2004; ALTER, 2007; MILES, 2009) como também as questões estilísticas adotadas em determinados discursos proféticos. Há que se considerar, por exemplo,

que o relato bíblico, ao contrário dos épicos gregos, é voltado para ação, para os fins e para o destino. Sendo assim, os pensamentos e sentimentos não são exprimidos e isso acaba tornando o texto muito enigmático e, consequentemente, afeito à elaboração artística (SUGAMOSTO, 2019, p. 98)

Ora, mas se é possível aplicar esse filtro literário ao próprio texto bíblico, por que seria diferente com as cartas de Vieira? Justamente por esse motivo, a recepção da obra do Padre tornou-se parte fundamental da construção literária no Brasil e em Portugal. 

Na carta “Esperanças de Portugal”, encontramos logo no início uma curiosa descrição. O jesuíta diz que a “a matéria [da carta] é muito larga, e não para se escrever tão de caminho, como eu faço, em uma canoa em que vou navegando ao rio das Amazonas” (Cartas, Tomo I, p.488). O naturalismo da passagem, em contraste com o aspecto teológico que preenche o restante da carta, foi citado por um de seus opositores que ao escrever uma epístola refutando as teses de Antônio Vieira diz também estar “em uma canoa”, só que “não navegando o grande rio das Amazonas, mas um dos muitos que cortam e retalham este Recôncavo da Baia” (BASELAAR, 2002, p.232). Se é bem conhecido o fato de que as epístolas descritivas, a começar pela própria carta de Pero Vaz de Caminha, são basicamente descrições das terras do Brasil, a de Vieira tem a originalidade de ser uma carta profética em que o autor descreve a ambientação de seu entorno. Não por menos, o crítico literário Wilson Martins posiciona a literatura de Guimarães Rosa, um autor “menos moderno do que a princípio se pensou”, na “antiga tradição” barroca “do Pe. Antônio Vieira, passando por Rui Barbosa e Euclides da Cunha” (MARTINS, 2001, p. 64). Uma análise mais profunda dessa afirmação fugiria do escopo de nosso texto, mas ao recordarmos a importância do rio para a literatura roseana (como em “A Terceira Margem do Rio”) e das descrições naturais para Euclides (nas minuciosas passagens geográficas de “Os Sertões” e na sua “áspera raiz de mandacarus, de seus gordos troncos de oiticica, das touceiras de seus gravatás e suas macambiras ásperas” (MOURÃO, 1990, p.49)) teremos, quem sabe, um fio condutor de motivos literários tipicamente nacionais. Embora Wilson Martins não inclua Ariano Suassuna em sua “esteira barroca”, seria perfeitamente possível dizer que o opúsculo sebastianista “Romance da Pedra do Reino” é talvez o exemplar mais perfeito da continuidade de um “vieirismo” que desagua na composição ficcional. [2] 

Prosseguindo em sua diatribe, o desconhecido autor da carta chamada “Opinião contrária à da ressurreição de el-rei D. João IV” dirige-se a um personagem misterioso a quem chama de “Vossa Mercê” e de quem haveria recebido uma ordem para examinar as teses de Vieira em “Esperanças de Portugal”. Van den Besselaar afirma que isso provavelmente não passa de “ficção literária” (BASELAAR, 2002, p.224). Por essa frase é possível notar que, de modo deliberado ou não, a “Carta ao bispo do Japão” se insere historicamente numa lógica ficcional de personagens inventados, refutações, intrigas imperiais e visões proféticas. Cumpre lembrar, ainda, que as próprias trovas portuguesas eram fortemente influenciadas por elementos arábicos, medievais, litúrgicos-cristãos e provavelmente eram redigidas, no modelo que remete aos aedos, para serem cantadas. Que essa seja a fonte primária da “Carta ao Bispo do Japão” dá provas de que o jesuíta tinha aguda consciência literária. Segundo Vainfas, 

Nos anos finais, Vieira se dedicou a transformar sua grande arma de combate político em obra literária. Como se adivinhasse o que dele diria, séculos depois, o maior poeta da língua portuguesa, Fernando Pessoa, ao defini-lo como “imperador da língua portuguesa” (VAINFAS, 2011, p.260) 

A sequência da carta é uma detalhada exegese das trovas bandarristas e uma tentativa de Vieira em demonstrar o engano dos sebastianistas sobre quem era o verdadeiro rei citado nas profecias. Nesta matéria, chama a atenção a capacidade de “leitura crítica” do jesuíta: comentando as principais coplas do Bandarra, Vieira vai delineando os pilares de sua argumentação teológica Treinado na linguagem da profecia, especialmente nas afamadas visões de Ezequiel, Antônio Vieira decifra a fauna das trovas- El- Rei é o Leão, o Turco é o Porco- o significado simbólico dos números- a “era dos seis” porque “é era de 660 em que entram duas vezes o seis, e na de 666 entram três vezes, que é número mui notável e mui notado no Apocalipse”- e também sua geografia sacra—“em Itália, verá o Turco barbaramente vitorioso e, depois, desbaratado e posto em fugidia”. Em um ambiente quase onírico, Vieira foi aquele que “muito antes de Baudelaire” “[...] via o mundo e os portentos sobrenaturais como uma floresta de símbolos que convinha interpretar” (MARTINS, 2001, p.405). 

Em relação ao já mencionado “nacionalismo literário” de Vieira, não no aspecto de sua recepção e legado, mas no de sua intencionalidade, parece não haver concordância entre os estudiosos de sua obra, a despeito do que diz João Batista Ferraz. Em 1921, um ano antes do centenário da Independência portanto, Afrânio Peixoto e Constâncio organizaram uma antologia de sermões intitulada “Vieira brasileiro”. O objetivo, claro, era defender a ideia de que mesmo tendo nascido em Lisboa, o Padre Antônio Vieira seria como que um primeiro defensor público do Brasil. Ronaldo Vainfas, aliás, considera a discussão sobre a natureza do patriotismo de Vieira “bizantina e com odor de anacronismo” (VAINFAS, 2011, p.283). Seja como for, historicamente, pesam contra o Padre dois elementos em relação ao argumento brasileirista: o primeiro é sua posição no “Papel Forte”, documento em que ele defende a entrega de Pernambuco aos holandeses. Gerardo Mello Mourão, endossa a teoria dizendo que “Portugal e Espanha entraram em negociação com a Holanda para entregar a parte já ocupada por eles. O Padre Antônio Vieira acumpliciou-se com isso” (MOURÃO, 2001). O segundo é a própria definição de “pátria brasileira” que parece, até por força do ordenamento jurídico-político do século XVII, ser bastante precária à época de Vieira. O Brasil, até então, era apenas uma espécie de parte indistinguível de Portugal e foi justamente após a Batalha dos Guararapes (1649) que os primeiros laivos nacionalistas e ufanistas surgiram em nosso país. Em relação ao “Papel Forte”, é importante lembrar que o Padre Antônio Vieira escreveu no documento aquilo que lhe foi pedido pelo Rei de Portugal. Há a ressalva, ainda, de que o Portugal de Vieira carrega também uma forte dimensão simbólica e muito mais do que um estado nacional, seria um “Reino de irmandade, de compreensão, de cooperação que se devia estender pelo universo como preparação necessária para um futuro Reino de Deus” (SILVA, 2000, p. 64). Já sobre o segundo ponto, Vieira, até pelos seus anos vividos na Bahia e pelo contato com artistas como Gregório de Matos, parecia de algum modo antecipar as especificidades das problemáticas locais ao se empenhar para interferir em dois importantíssimos processos coloniais: o cativeiro indígena e a escravidão africana.

Conclusão 

A carta “Esperanças de Portugal” é uma espécie de ponto central na extensa e multifacetada obra do Padre Antônio Vieira: além de ser o documento em que ele expõe sua crença na veracidade das profecias do sapateiro Bandarra, no Quinto Império, na missa escatológica de Portugal e na ressurreição de Dom João IV, o texto também foi o estopim para as querelas teológicas e políticos que levaram Vieira à mesa do Tribunal do Santo Ofício. Em seu aspecto literário, embora seja importante dar os devidos contornos históricos e sociais que regiam a composição textual do jesuíta, seria absurdo afirmar, por exemplo, que Vieira é apenas “mais jesuíta”. Ele foi, para usar a definição de Ronaldo Vainfas, “jesuíta, missionário, religioso, tridentino, moralista, pregador, confessor” e “seu talento pessoal sobressaiu em todas as funções que exerceu enquanto padre inaciano” (VAINFAS, 2011, p.284). Na carta também é possível antever alguns traços do “estilo literário” de Vieira que, segundo os críticos, ecoou no estilo barroco de autores como Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Não por menos, uma parte considerável da renovação literária portuguesa, inclusive em seus aspectos modernizantes, deve-se ao louvor de Vieira por meio da obra de Fernando Pessoa. Do ponto de vista da recepção teórica e acadêmica, a escrita do jesuíta problematiza um tópico importante das chamadas “ciências da linguagem religiosa”: as fronteiras entre os textos literários, teológicos e proféticos e os frequentes hibridismos operados a partir dessas tentativas de categorização. 

Em seu aspecto teológico, o conteúdo reputado como milenarismo na literatura de Vieira, pode ser considerado uma crença comum em sua época, na qual Vieira também creu. Um conjunto de ideias que, de certa forma, eram garantidos por uma vasta produção teológica precedente.      

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Notas

[1] ECCLESIA. Manuscrito original de Padre António Vieira, apresentado em Lisboa. Vatican Insider. Disponível em: <https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-05/manuscrito-original-padre-antonio-vieira-apresentado-em-lisboa.html>. Acesso em 03 de dezembro de 2022.

[2] Ariano Suassuna, aliás, costumava declamar o Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, de Vieira, em suas aulas espetáculo.