Danilo Mendes
Mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juíz de Fora (UFJF). Contato: danilo.smendes@hotmail.com
Resumo: Nesse artigo buscamos apresentar como a afirmação da inutilidade da vida se apresenta como modo de resistência à lógica mercadológica do capitalismo. Para tal, buscamos primeiramente uma leitura de Leminski apresentando como o gesto inútil da poesia toma contornos teológicos na medida em que transubstanciam palavras. Em segundo lugar, apresentamos o pensamento de Krenak atestando como a inutilidade da vida é necessária para a sobrevivência da terra contra sua exploração concreta e ideológica. Nesse ponto, o que apresenta contornos teológicos é a própria justificativa para a exploração – do ser humano e da terra. Por fim, buscamos dialogar com a busca modernistas por um espírito nacional apresentando como ele continua seguindo uma lógica moderna/colonial que, por fim, acaba por reforçar a mercantilização da vida humana através da afirmação de sua utilidade.
Palavras-chave: Poesia; Filosofia da religião; Modernismo; Capitalismo
Abstract: In this article we seek to present how the affirmation of the uselessness of life is presented as a way to resist the commodificational logic of capitalism. To this end, we first a read Leminski presenting how the useless gesture of poetry takes on theological contours insofar as it transubstantiates words. Secondly, we present the thought of Krenak attesting how the uselessness of life is necessary for the survival of the world against its concrete and ideological exploitation. At this point, what presents theological outlines is the very justification for exploitation – both of the human being and the land. Finally, we seek a dialogue with the Brazilian modernist search for a national spirit by presenting how it continues to follow a modern/colonial logic that ultimately reinforces the commodification of human life through the affirmation of its utility.
Keywords: Poetry; Philosophy of religion; Modernism; Capitalism
100 anos após a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo em 1922, uma curiosidade sobre o evento permanece desconhecida por boa parte da ideia popular sobre o evento: Tarsila do Amaral não estava presente. Ainda que seus quadros figurem entre os primeiros que vêm à mente quando se trata de modernismo, a artista ainda estudava na França quando o evento ocorreu. Nesse mesmo país, anos depois, seu mais famoso quadro, Abaporu, seria exibido pela primeira vez em uma exposição. As cores dessa obra evocam a bandeira nacional: o verde do cacto e da grama, o amarelo do sol, o azul do céu. E, figura maior, um homem sentado sobre essa grama, sob esse sol, sob esse céu. Chama atenção que, ainda que retrate a tentativa de um novo espírito brasileiro, a vida de Tarsila tivesse certa dependência da Europa como o lugar da arte. Para lá havia ido estudar, para lá levou sua obra prima para exibição pela primeira vez. Ainda que as cores evocassem o Brasil, sua validação parecia depender de padrões que não eram brasileiros.
O presente artigo se insere aqui: na brecha aberta pela crítica ao nacional e ao eurocêntrico. Seu objetivo, entretanto, não é tecer uma história do modernismo, mas, lateralmente, partir da ideia de utilidade da vida para, a partir dela, reinterpretar o espírito modernista a partir de parâmetros que fogem à lógica eurocêntrica. Por isso, partimos de uma leitura do poema Sacro lavoro de Paulo Leminski. Nele, aliados com seu conceito de inutensílio, identificamos como a literatura ganha contornos teológicos ao se opor à lógica utilitária do capitalismo. Em segundo lugar, comparamos tal interpretação com a afirmação de que a vida não é útil, conforme o pensador indígena Aílton Krenak. Aqui, identificamos como a exploração do mundo se opõe à vida e é justificado ideologicamente pela religião. Por fim, apresentamos uma leitura crítica do modernismo apostando em um anti-modernismo inútil como princípio decolonial de resistência à mercantilização da vida. Dessa forma, pretendemos contribuir para uma leitura anticapistalista das possibilidades de relação entre literatura, religião e política.
Sacro Lavoro
as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo
hoje transformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto
(LEMINSKI, 2013, p. 342)
Em uma primeira leitura, parece claro que o sacro lavoro [trabalho sagrado] ao qual o título faz referência é o trabalho de um clérigo à frente da eucaristia. Aqui, Leminski retoma um dado biográfico interessante: o poeta estudou por um breve período no mosteiro de São Bento, em São Paulo (VAZ, 2001). Ainda que sua passagem lá tenha sido breve, seu contato com o mundo religioso foi de grande importância em sua vida. Lá descobriu o gosto pela tradução (prática que levou consigo durante sua jornada), por uma espécie de interpretação mística do mundo (que posteriormente encontrou espaço em práticas zen-budistas), e o gosto por uma leitura herética do cristianismo. Os contornos desse acontecimento fizeram com que, em toda sua obra, Leminski abordasse a religião direta ou indiretamente. Das quatro biografias de sua autoria, hoje publicadas no volume Vida, duas estão ligadas diretamente a líderes religiosos: Bashô e Jesus (LEMINSKI, 2014, p. 79-153; 155-240). O poema de abertura de seu primeiro livro, Quarenta clics em Curitiba, parece fazer referência a um crucifixo[1], marcando essa relação biográfica.
A referência autobiográfica de Leminski em “Sacro Lavoro” parece clara: “as mãos que escrevem isto/ um dia iam ser de sacerdote/ transformando o pão e o vinho forte/ na carne e sangue de cristo”. As mãos, que agora são de um escritor, estavam se preparando para serem as de um clérigo que transformaria pão e vinho em carne e sangue de Cristo. Na tradição Católica Romana, há nesse rito eucarístico o entendimento de que o próprio corpo de Cristo se faz presente nos elementos simbólicos por meio de uma transubstanciação. Nessa doutrina, pão e vinho modificam sua substância material para a carne e o sangue de Cristo. Tal noção remete a um entendimento teológico do séc. XII, na disputa em torno da heresia de Berengário de Tours, acerca do sacramento. Apesar de sua resolução tardia, a noção de transubstanciação foi desenvolvida após séculos de debate sobre o significado teológico da eucaristia como mandamento de Cristo à Igreja. Em resumo,
o conceito de transubstanciação foi identificado com uma concepção definida, e também filosoficamente precisa (em contraposição à consubstanciação de um lado e ao aniquilamento da substância de pão e vinho de outro), a saber, com a concepção de que depois da transformação as características perceptíveis de pão e vinho continuam existindo para si sem base substancial (PANNENBERG, 2007, p. 404).
Nesse sentido, podemos ler o rito da transubstanciação é uma atualização[2] do mito da última ceia de Jesus com seus discípulos, na qual ele teria divido o pão fazendo referência ao seu próprio corpo entregue por seus seguidores, e o vinho referenciando seu próprio sangue (Mt 26, 26; Mc 14, 22; Lc 22, 19). Na medida em que a eucaristia utiliza esses mesmos elementos como símbolo do ato de Jesus, ela atualiza o mito em um ritual significante para os fiéis: do mesmo modo que os primeiros discípulos provaram do próprio corpo de Cristo, eles também o fazem no presente.
Aqui, o trabalho sagrado ao qual Leminski faz referência, não é somente um labor ligado à Igreja, mas uma atualização ritual de um mito significativo anterior. Na medida em que atualiza a ceia de Jesus e sua entrega pelos seus, a transubstanciação, à qual Leminski se preparava para realizar, é o trabalho sagrado que dá título ao poema. Todavia, mais do que um mero ofício marcado pela repetição cotidiana, o lavoro da eucaristia e da transubstanciação é sagrado por causa de seu significado ligado ao mito cristão fundamental da ceia de Cristo. O partilhar do pão/corpo e do vinho/sangue indica o gesto máximo de entrega pelos seus. Na tradição cristã, tal entrega da própria vida e do próprio corpo são o ato último do amor divino pelos seus. Nesse ponto, a sacralidade do lavoro tem a ver com o profundo significado do mito que tal rito atualiza gestualmente.
Ao assumir que tal sacro lavoro seria seu também, Leminski assume a condição mística da profundidade da condução de tal gesto sacramental. Entretanto, seu poema diz respeito à realização mesma do gesto, na qual o autor de fato conduziria o rito eucarístico. Antes, ele apresenta uma interrupção marcada pelo tempo da ação no poema: as mãos iam ser de sacerdote. Elas iam adentrar pelo mistério da transubstanciação. Elas iam ser de um clérigo. Mas, biograficamente, esse futuro foi cancelado pela mudança de planos da família de Paulo e de sua recusa em se adaptar à vida monástica. As mãos de Leminski não seguiram o sacro caminho, mas tornaram-se mãos leigas (ou heréticas, a depender do ponto de vista).
O cancelamento dos planos apontado pelo futuro do pretérito, no poema, é, por outro lado, a abertura a novas possibilidades de labor para Leminski: suas mãos “hoje transformam palavras/ num misto entre o óbvio e o nunca visto”. Esse caminho nos abre, também, uma nova possibilidade interpretativa. Em vez de tratar sobre o sacro lavoro da transubstanciação eucarística, o poema de Leminski pode estar tratando do sacro lavoro da poesia. Aqui, mudam-se os caminhos, mas a sacralidade do trabalho permanece do clérigo ao poeta. Na medida em que o seu trabalho continua sagrado, nessa mudança de eucaristia para poesia, a poesia estaria também atualizando o mito da ceia de Cristo. Agora, todavia, o compartilhamento do corpo e do sangue não mais se transforma na presença concreta de Cristo entre aqueles que comungam da eucaristia. O mito se atualiza na própria palavra poética que transforma os sentidos das palavras.
Numa analogia direta, Leminski não mais transforma pão e vinho em carne e sangue, mas palavras “num misto entre o óbvio e o nunca visto”. Aqui, ainda que substituída a atualização ritual, o autor sustenta a diferença entre os dois elementos míticos colocados em ação. Por um lado, sua poesia trata do óbvio como o corpo é óbvio: visível, palpável, inevitável. De certa forma, podemos inferir que o caráter óbvio da palavra transformada por Leminski no sacro lavoro da poesia diz respeito ao concreto e ao usual – o sentido que, de certa forma, já está socialmente estabelecido através da linguagem. Por outro lado, sua poesia traz à superfície o que nunca é visto, como o sangue: interno, oculto e vital. Aqui, diferentemente da concretude e obviedade do corpo, a figura do sangue se coloca como aquilo que emerge da palavra como seu sentido velado, soterrado e, ainda assim, vivificador e criador de novos sentidos. Nesse ponto, o trabalho sagrado do poeta não contrapõe o velho e o novo, como se a coexistência deles fosse impossível. Antes, a transformação acarretada por tal labor se faz na mistura entre os dois elementos eucarísticos.
As consequências de tal mudança de sentido sobre o trabalho sagrado nos leva a perguntar: se o rito da transubstanciação indicava um efeito salvífico especificamente cristão, do qual Leminski parece abrir mão, o que o rito da poesia indica? Para respondermos, devemos voltar aos Ensaios e anseios crípticos de Leminski e para uma noção fundamental para ele: de que a arte, sobretudo a poesia, é um inutensílio. Em suas palavras:
O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. [...] Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas. Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida. [...] Fazemos coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais. A luta do trabalhador por melhores condições de vida é, no fundo, luta pelo acesso a estes bens, brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do lucro. Coisas inúteis (ou in-úteis) são a própria finalidade da vida. [...] A arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade (LEMINSKI, 2012, p. 86).
Para Leminski, portanto, o sentido interno de sua poesia é não possuir função senão a da inutilidade. Ela é, e deve ser lida como, um fim em si mesmo. Por isso, é inútil enquanto meio para outra coisa: ela é a própria finalidade de si mesma. Na medida em que interpretamos essa inutilidade como o sentido primordial do fazer poético leminskiano, a transubstanciação de palavras se torna um rito também inútil. Uma inutilidade que atualiza a inutilidade primeira de um ato que é fim em si mesmo. Nesse sentido, o labor sagrado de Leminski objetiva manter viva a memória da inutilidade da poesia como forma privilegiada de experiência do mundo da liberdade e da fuga do utilitarismo da necessidade. Essa liberdade, essa inutilidade, e o prazer que daí frui, guardam os aspectos sacros que Leminski encontrou no mosteiro. Agora, a poesia carrega consigo o valor religioso que outrora a eucaristia o fornecia[3].
As implicações de tal perspectiva são, primeiramente, ético-políticas e, depois, de fronteiras. Primeiramente, diz Leminski que a poesia, enquanto rebeldia, instaura uma tensão ética na medida em que se recusa a virar mera mercadoria útil ao capitalismo. Nesse sentido, a arte funciona como uma antítese social da própria sociedade, em referência a Adorno. Ela permanece inútil e tal inutilidade funciona como crítica à industrialização da vida promovida no Ocidente capitalista. Sua finalidade em si, portanto, abre caminho para um pensamento artístico anticapitalista.
Todavia, para Leminski, uma arte engajada em um projeto político de poder, como uma arte socialista, por exemplo, também não cumpriria os requisitos da arte como inutensílio. Ainda que se aproximem em um anticapitalismo final, toda arte engajada permaneceria, para Leminski, dentro dos âmbitos industriais que impõe a arte uma função – mesmo que essa função seja fazer coro à revolução. Para Leminski, qualquer arte que se engaje em um propósito deixa de lado sua própria essência inútil e se rende a um mundo reificador. Em suas palavras, “Num mundo assim, todas as coisas têm que ter um porquê. Exatamente porque, no universo da mercadoria, tudo tem que ter um preço. Tudo tem que dar lucro. O porquê é o lucro, no plano intelectual das coisas” (LEMINSKI, 2012, p. 132). Desse modo, quando a arte se coloca contra o sistema de mercado capitalista, ela já está usando da lógica mercadológica dele, ainda que a volte contra tal sistema. A noção de lucro, portanto, estaria ainda subjacente a esse tipo de manifestação artística. Aqui, a poesia inútil perguntaria “pra que por quê?” em um mundo voltado ao lucro. A insistência em sua inutilidade, portanto, confronta até mesmo a sua utilidade anticapitalista.
Nos limites que estabelecemos acima, há uma implicação de fronteira na leitura da poesia como sacro lavoro. Aqui, poesia e religião se sobrepõem, de modo que a primeira assume a função da segunda. Com isso, entretanto, a poesia não torna a religião dispensável: sem a estrutura religiosa mítica e ritual, não teríamos como entender a sacralidade do ato poético. Nem mesmo a atribuição de sua sacralidade seria possível sem uma linguagem tipicamente religiosa. Por isso, não podemos afirmar que a poesia esconde a religião nessa sobreposição. Antes, a poesia toma para si contornos religiosos que, ao mesmo tempo em que mantêm sua característica de inutensílio, possibilitam a interpretação do sagrado nela. O poema de Leminski, portanto, nos oferece uma relação de total aproximação entre religião e poesia, na qual não há uma valoração inicial, nem um julgamento de mérito de uma a outra. Antes, como esferas separadas, o autor as une na celebração de um novo ato sagrado: a transubstanciação de palavras em obviedades e ineditismos. O sacro lavoro: poetar.
Faz coro com a ode à inutilidade leminskiana o pensador e líder indígena Aílton Krenak. Estendendo, porém, da arte à vida, Krenak afirma que, contra a lógica branca e ocidental, a vida não pode ser interpretada como um instrumento dentro de uma fábrica de valores mundial. Isto é, a vida, tanto humana quanto em geral, não pode ser pensada a partir de sua utilidade e produtibilidade a um sistema de exploração da terra. Em suas palavras,
construímos justificativas para incidir sobre o mundo como se fosse uma matéria plástica: podemos fazê-lo ficar quadrado, plano, podemos esticá-lo, puxá-lo. Essa ideia também orienta a pesquisa científica, a engenharia, a arquitetura, a tecnologia. O modo de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria e replica isso de maneira tão naturalizada que uma criança que cresce dentro dessa lógica vive isso como se fosse uma experiência total. As informações que ela recebe de como se constituir como pessoa e atuar na sociedade já seguem um roteiro predefinido: vai ser engenheira, arquiteta, médica, um sujeito habilitado para operar no mundo, para fazer guerra; tudo já está configurado (KRENAK, 2020, p. 100-101).
Nesse ponto, podemos distinguir três diferentes estágios da crítica de Krenak à sociedade ocidental. Em primeiro lugar, o modo como o ser humano entende o mundo é problemático. Na medida em que o percebe como objeto a ser dominado e modificado conforme a utilidade que deseja, o ser humano se exterioriza do próprio mundo – como se, por fim, pudesse existir sem ele. Essa lógica, em segundo lugar, se replica para as ciências. Não apenas o ser humano se relaciona com o mundo de forma utilitária como também, além disso, estrutura um modo de pensar e agir diretamente sobre o mundo a partir desse ideal de utilidade. Isso indica um aprofundamento na noção de uso da terra como exploração lucrativa dela. O terceiro passo, portanto, dessa visão é a ampliação dessa lógica para a educação. Aqui, o ideal utilitário ganha contornos ideológicos, para usar um vocabulário marxista. Enquanto a educação replica a exploração da terra a partir de um “porquê” utilitário, ela aponta para algo mais fundamental do que a própria sobrevivência humana. De certo modo, a relação se inverte: não é mais o ser humano que explora e molda a terra para a sua própria subsistência, mas o ser humano explora a si mesmo em favor da subsistência do sistema de exploração da terra. Nesse ponto, passa-se da utilidade do mundo à utilidade da vida humana.
Ao assumir um contorno teleológico, a própria educação capitalista perpetua a lógica de que o sentido da vida humana é sua utilidade dentro do sistema. O que Krenak chama de “roteiro predefinido” é o responsável por normalizar e criar a ilusão de que a lógica da utilidade da vida é a “experiência total” dentro do capitalismo. Não é difícil entender, aqui, como a experiência total se dá, também, como experiência totalitária – na medida em que impossibilita outros tipos de experiência do mundo e, para além disso, outras possibilidades de futuro possíveis. Há uma proximidade entre essa crítica e a noção de realismo capitalista, desenvolvida por Mark Fisher. A utilidade da vida se dá como horizonte inescapável em ambos os casos. Para o autor inglês, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo porque, tanto culturalmente quanto politicamente, vivemos em um tempo no qual nada parece mudar efetivamente. Os dias parecem sempre os mesmos: trabalhamos para viver e vivemos para trabalhar. Independente do partido que assume o poder nas eleições, sabemos que o capitalismo continua nomeando as regras do jogo por meio das grandes empresas dos mais variados ramos. Nesse sentido, há uma espécie de cancelamento do futuro: o amanhã não é mais do que uma simples repetição do agora. As pequenas transformações que percebemos em nosso cotidiano não são mais do que atualizações, como as de computador ou celular: mudam-se algumas funções, altera-se o design, lubrifica-se o funcionamento para que a mesma máquina mantenha o mesmo sistema.
Diz Fisher que “Uma posição ideológica nunca é realmente bem-sucedida até ser naturalizada, e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como um fato” (FISHER, 2020, p. 34). Aqui, Fisher apresenta a ideia de que o capitalismo neoliberal instala culturalmente na sociedade uma espécie de ontologia empresarial, a partir da qual fica naturalizada a tese de que todas as áreas governamentais devem ser geridas como se em empresas. Em tal ontologia, eliminam-se as ideologias políticas em prol de uma tecnicidade que, gerando eficiência, é capaz de gerir a sociedade capitalista em um caminho próspero. Não são raros os exemplos de como essa ontologia atua na política eleitoral, sobretudo no Brasil contemporâneo. Há, pelo menos, dois pontos importantes que precisamos considerar na ontologia empresarial, um em nível anterior e um posterior. Primeiramente, devemos considerar que essa ontologia define a si mesma como algo sem ideologia. A neutralidade que clama para si se dá em nome da eficiência que somente o aperfeiçoamento da técnica de gestão poderia fornecer. Na política, nem direita nem esquerda: somente um outsider com experiência empresarial poderia suprir a demanda supra-ideológica de um caminho plenamente sustentável para a sociedade. Não apenas o posicionamento tecnicista da ontologia empresarial é ideológico como se aproxima, com muita afeição, a ideologias perigosíssimas, como o fascismo. A ideologia da técnica, além de aceitar-se como continuidade do status quo, perfazendo seu caráter intrinsecamente conservador, acelera a sociedade em direção ao aprofundamento do realismo capitalista, impossibilitando ainda com mais gravidade a possibilidade de novos futuros pós-capitalistas. O fenômeno gerado a partir dessa posição supra-ideológica é chamado hoje de pós-política[4]. Ela é, justamente, a alegação de que a política enquanto gestão de desejos ideológicos está fadada ao fracasso frente a uma posição de neutralidade técnico-científica.
Não nos parece difícil definir as afinidades entre Fisher e Krenak, no sentido de que ambos apontam como a utilidade da vida define, no capitalismo, todas as possibilidades de horizonte e futuro para a vida humana, de modo que seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. A proposta de Krenak, entretanto, não é somente analisar os contornos do esgotamento da imaginação não-capitalista, mas apontar ideias e “sonhos para adiar o fim do mundo” (KRENAK, 2020, p. 31-47). Justamente por isso, a negação da utilidade da vida é tão fundamental: pois ela, desde sua própria existência enquanto negação, instaura a possibilidade de sonhar com outros futuros possíveis. A sua própria existência possibilita uma porta de saída do sistema capitalista. Por isso, afirma o Krenak:
[...] a vida não tem utilidade nenhuma. A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma besteira. A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez aquilo, cresceu, fundou uma cidade, inventou o fordismo, fez a revolução, fez um foguete, foi para o espaço; tudo isso é uma historinha ridícula. Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil? Nós temos que ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência. Se continuarmos comendo o planeta, vamos todos sobreviver por só mais um dia (KRENAK, 2020, p. 108-109).
Aqui, Leminski e Krenak se aproximam de modo muito interessante. Notemos que, ao falar da inutilidade da vida, ambos recorrem a aspectos muito próximos. Leminski: “O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia” (LEMINSKI, 2012, p. 86). Krenak: “A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica” (KRENAK, 2020, p. 108-109). A ideia de inutilidade da vida se liga, ao que nos parece, justamente ao que dá prazer ao ser humano de alguma forma. De modo oposto à lógica empresarial-utilitária do capitalismo, a finalidade da vida humana não pode, para os autores, ser colocada em algo fora de si mesma: mas no alimento do próprio prazer. Isso, todavia, não alimenta um egoísmo individualista. Em Leminski, as atividades de prazer que demonstram a inutilidade da vida são atividades coletivas – do amor à festa, passando pelo futebol. Em Krenak, a dança da vida é uma dança cósmica, isto é, se dá em meio à relação com os outros seres vivos que compõem o mundo. Por isso há uma ética indígena, que considera todos os povos da floresta como parentes, independentemente de suas diferenças, que convida a humanidade a andar em constelação (KRENAK, 2020, p. 39): saber viver de modo inútil e prazeroso.
Entretanto, há uma diferença fundamental entre os dois autores. Enquanto, em nossa leitura de Leminski, a religião assume o signo da inutilidade ao tornar a poesia o sacro lavoro; para Krenak, a religião se presta a reenfatizar a utilidade da vida e, de modo inverso, essa ideologia se transforma em uma religião de civilização:
As religiões, a política, as ideologias se prestam muito bem a emoldurar uma vida útil. Mas quem está interessado em existência utilitária deve achar que esse mundo está ótimo: um tremendo shopping. Os grandes templos contemporâneos são shoppings (inclusive alguns que são templos mesmo). [...] O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso. O mundo possível que a gente pode compartilhar não tem que ser um inferno, pode ser bom. Eles ficam horrorizados com isso, e dizem que somos preguiçosos, que não quisemos nos civilizar. Como se ‘civilizar-se’ fosse um destino. Isso é uma religião lá deles: a religião da civilização (KRENAK, 2020, p. 111-113).
Aqui, diferentemente da leitura que fizemos a partir de Leminski, a religião é pensada a partir de suas possibilidades inúteis, isto é, de ser assumida pelos contornos estéticos do sacro lavoro. Pelo contrário, a religião é pensada em dois níveis: a partir de sua realidade necropolítica[5], como espécie de véu ideológico que esconde e legitima a violência branca da vida útil; e como um culto da necessidade de civilização. A religião é pensada, portanto, como instituição objetiva e concreta, que se manifesta na sociedade e interfere diretamente na vida dos seres humanos. Mas, além disso, também é pensada como um sistema de crença que sacraliza torna uma série de ideias. Aqui, a religião não está num nível objetivo-concreto, mas abstrato. Em ambos os casos, entretanto, Krenak a posiciona junto à violência ocidental da utilidade da vida – seja como parte que a sustenta, seja como crença que é consequência de sua teoria.
Dessa forma, parece-nos que nossa leitura de Leminski e o pensamento de Krenak convergem em certos pontos na mesma medida em que se afastam, em outros pontos. Ao tratarem da utilidade da vida, ambos se recusam a ela e interpretam, nesse movimento, uma posição anti-capitalista e a favor da fruição e do prazer na vida humana. Embora cheguem em tal recusa por caminhos diferentes, pela arte ou pela crítica à exploração da terra, tanto Leminski quanto Krenak defendem que a inutilidade da vida é o modo mais próprio de resistir à industrialização do ser humano promovida pelo capitalismo. Por outro lado, quando abordamos a religião, os autores divergem sobre sua relação com a inutilidade da vida. Em nossa leitura de Leminski, a religião se faz presente no próprio ato da poesia enquanto transformação sagrada da realidade: da palavra ao nunca visto. Krenak, diferentemente, enxerga a religião como uma sustentação ideológica da afirmação da utilidade da vida, de modo que ela legitima e sacraliza tal ideia. Nesse ponto, não haveria possibilidade de afirmação da inutilidade da vida pela religião.
Em meio às recentes comemorações do século passado desde a Semana de Arte Moderna de 22, cabe-nos questionar de que modo as reflexões acima nos auxiliam a pensar as questões propostas pelo modernismo brasileiro. Portanto, aqui buscamos apresentar como o pensamento da inutilidade da vida, a partir de Leminski e Krenak, poderia se relacionar com a herança modernista. Para tal, não nos voltaremos às produções mesmas, mas a uma espécie de Zeitgeist conforme percebido por Mário de Andrade. Seu relato e seu testemunho, nesse ponto, são importantes porque nos permitem dialogar não com as obras específicas da vasta produção modernista, mas com a questão subjacente a todo o movimento, de modo geral. Obviamente, os produtos que tentam responder a tal questão também importam, mas nos são, aqui, posteriores quando relacionados à generalidade da questão que subjaz a elas. Assim, voltemo-nos ao relato de Mário de Andrade intitulado “O movimento modernista”, uma conferência em escrita 20 anos após a Semana de 22:
Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e a por muitas partes o criado de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos internos da nova técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência nacional (ANDRADE, 2002, p. 253. Grifo nosso).
Aqui, nos chama atenção as preocupações que Mário de Andrade sublinha como sendo de fundamental importância para o movimento modernista: a criação de uma nova inteligência nacional, um espírito brasileiro aliado a uma nova consciência. Essa necessidade, entretanto, não se dava em um vácuo histórico, mas a partir de um contexto bem definido: a transformação do mundo diante de um aprimoramento técnico, simbolizado pela velocidade do transporte – mas visto também na tecnologia em geral e na educação. Com isso, Mário de Andrade contextualiza o surgimento do movimento modernista com o avanço da modernidade.
Embora possamos relacionar, nesse caso, modernidade e modernismo, devemos tem em mente que há uma substancial diferença entre eles: a modernidade, entendida sobretudo histórica e filosoficamente, é anterior e posterior ao modernismo, entendido como movimento artístico e literário. Enquanto o início daquela data de uma série de eventos entre o fim do século XV e meados do século XVI que apontam o esgotamento de um paradigma medieval de pensamento; essa tem como marco histórico a Semana de 22, no Brasil, e a produção artística que girou em torno dela, acrescida ainda de outros importantes nomes que não estavam presentes no evento fundante, como Tarsila do Amaral. Entretanto, para além da semelhança de nomes, modernismo e modernidade se relacionam de modo muito íntimo, conforme aponta Mário de Andrade. Em primeiro lugar, a busca modernista por uma nova inteligência nacional surge de um contexto de avanços tecnológicos gerado a partir de noção moderna de progresso. Aqui, o progresso é tanto um fato proveniente da gradual iluminação pela qual a humanidade passava a partir de então, como também um valor a ser buscado pelas sociedades – como reflexo de sua autonomia baseada na razão[6]. Em segundo lugar, modernismo e modernidade se relacionam na medida em que, aquele tenta responder a questões colocadas por essa.
A busca por um novo espírito nacional manifesta, nas entrelinhas, uma busca por um progresso baseado em um tipo de inteligência própria do Brasil. Isso, apesar de certo grau de rompimento, não rompe com a própria ideia de uma inteligência. Como Mário de Andrade relata, “o modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a inteligência nacional” (ANDRADE, 2002, p. 258). Nesse caso, a revolta contra o que era a inteligência não pressupõe uma crítica ao seu lugar privilegiado na sociedade, mas à sua formação europeizada. Todavia, a própria ideia de uma intelectualidade, ainda que formada nos moldes nacionais, permanece parte de uma racionalidade eurocêntrica. Esse aperto no parafuso parece não ter sido dado pelo modernismo. Isso constitui não apenas uma grave limitação em sua projeção, mas uma inerente contradição, já que expõe uma tentativa de ir contra certa intelectualidade europeizada a partir de uma crítica ainda demasiadamente europeia.
Para ilustrar esse ponto e essa contradição, evocamos o pensamento de Walter Mignolo sobre a impossibilidade histórica de separar a modernidade da colonialidade e da decolonialidade. Para ele, essa tríade conceitual é uma unidade, de modo que tratar separadamente de uma delas implica uma perda que invalidaria qualquer argumentação. Dessa forma, não se pode falar de modernidade ignorando o fato de que, simultaneamente, grande parte das margens globais estavam sendo exploradas como colônias e seus nativos escravizados (em seu próprio continente ou em outros). Nas palavras de Mignolo,
A barra (/) entre modernidade e colonialidade e entre colonialidade e decolonialidade significa que os três termos estão simultaneamente, desde o séc. XVI, divididos e unidos. Eles estão, de fato, entrelaçados: modernidade/colonialidade/decolonialidade. As divisões e interconexões são constantemente cruzadas por fluxos e energias que não permitem a nenhum desses termos estar isolado e imutável [...]. Se não há modernidade sem colonialidade, se a colonialidade é constitutiva da modernidade, se a “/” de uma só vez as divide e conecta, então a decolonialidade propõe o desfazer da modernidade (MIGNOLO, 2018, p.139)
Ao lermos paralelamente o desejo modernista e a lógica moderna/colonial, aproximamos a Semana de 22 à afirmação leminskiana e krenakiana da inutilidade da vida. Na medida em que o modernismo repete ainda um modelo mercadológico de inteligência brasileira, baseada numa produção artística que visa a construção de uma nova identidade nacional, esse movimento reproduz uma lógica de dominação do próprio racional da própria nacionalidade. Isso se demonstra, por exemplo, quando Mário de Andrade trata das especificidades internas do projeto modernista. Ao mesmo tempo que ele parece revolucionário em suas afirmações, há demasiada cautela em manter parte do cabedal teórico moderno/colonial, de modo que ele fica impossibilitado de dar o necessário passo para fora da lógica eurocêntrica de mercantilização da vida. Diz o autor: “os abstencionismos e os valores eternos podem ficar para depois” (ANDRADE, 2002, p. 280). Aqui, poderíamos interpretar um pensamento proto-pós-metafísico que faria coro ao anúncio nietzchiano da morte de Deus. Todavia, a nota de rodapé que acompanha essa citação demonstra a cautela:
sei que é impossível ao homem, nem dele deve abandonar os valores eternos, amor, amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que vivemos, cuidar desses valores apenas e se refugiar neles em livros de ficção e mesmo de técnica é um abstracionismo desonesto e desonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também (ANDRADE, 2002, p. 280 n. 1).
Aqui, mais do que mero receio, Mário de Andrade revela com ainda mais força como o modernismo não rompe com a lógica moderna/colonial de determinação unívoca sobre os conceitos “fundamentais” como “valores eternos”. São, justamente, esses valores conforme definidos pela modernidade/colonialidade que justificam a exploração do ser humano pelo próprio ser humano levada a cabo a partir da noção de utilidade da vida. Por isso, 100 anos após a Semana de 22, parece-nos que, mais do que a busca por uma inteligência ou uma identidade nacional, devemos instaurar um anti-modernismo inútil. Não porque negamos as incontornáveis contribuições dos modernistas, mas porque nos recusamos a responder às questões impostas pela modernidade/colonialidade. Antes, interessa-nos responder àquilo que a decolonialidade, aqui representada pela poesia marginal e pelo pensamento ameríndio, tem a nos questionar. Afinal, a questão de um espírito ou de uma identidade nacional não pode fugir do que o Brasil é historicamente:
A identidade brasileira não existe, mas a ideia de uma “identidade brasileira” existe. Dela não só se pode falar, como foi inventada para que se fale dela. Essa ideia é um instrumento político, uma palavra de ordem ideológica que conjura um ente imaginário, e não um conceito antropológico referente a uma condição psicossocial empírica. “Identidade brasileira” não é uma noção descritiva, mas uma noção normativa. Não é um fato, mas um valor; um valor gestado historicamente em certas esferas de poder e imposto com violência, sutil ou brutal, sobre povos, comunidades e pessoas vinculados à própria revelia a um certo sujeito de direito público internacional, o Estado-Nação chamado Brasil. [...] O Brasil é um país estruturado geneticamente pelo instituto da escravidão, negra e indígena. Se existe algo como uma “identidade brasileira”, esta teria de consistir em uma certa qualidade sinistra, difusa das relações sociais, onde toda diferença é gatilho para o ódio; no descaso, não isento de hostilidade, diante de uma natureza cada vez mais devastada; em uma certa obsequiosidade admirativa diante da força bruta e da riqueza ostentatória; na imagem vaidosa que se tem da imagem que se teria do país no exterior. Essas características, que, escusado dizer, estão longe de serem compartilhadas igualmente por todos os habitantes do Brasil, são continuamente alimentadas por um um habitus entranhado nas instituições nacionais, proveniente do espezinhamento multissecular dos povos indígenas e da população escravizada de origem africana (VIVEIROS DE CASTRO, 2022)
Nesse artigo buscamos apresentar como a afirmação da inutilidade da vida se apresenta como modo de resistência à lógica mercadológica do capitalismo. Para tal, buscamos primeiramente uma leitura de Leminski apresentando como o gesto inútil da poesia toma contornos teológicos na medida em que transubstanciam palavras. Em segundo lugar, apresentamos o pensamento de Krenak atestando como a inutilidade da vida é necessária para a sobrevivência da terra contra sua exploração concreta e ideológica. Nesse ponto, o que apresenta contornos teológicos é a própria justificativa para a exploração – do ser humano e da terra. Por fim, buscamos dialogar com a busca modernistas por um espírito nacional apresentando como ele continua seguindo uma lógica moderna/colonial que, por fim, acaba por reforçar a mercantilização da vida humana através da afirmação de sua utilidade.
Por isso, concluímos que, 100 anos após a Semana de 22, não é preciso recuperar um modernismo que responde afirmativamente à modernidade/colonialidade. Mas, pelo contrário, é preciso reafirmar a inutilidade da vida (não apenas a humana) como resposta afirmativa à decolonialidade. A busca por uma identidade nacional não faz sentido se é negado aos povos indígenas e aos povos escravizados a vez e a voz para constituir um novo sistema epistêmico no país. Isso implica dizer que a inteligência nacional não é possível nos moldes da razão europeia, mas somente através das sabedorias relegadas a segundo plano pelo universalismo branco. Por isso, a dominação da terra como modo de conhecimento não é mais cabível no anti-modernismo inútil que sugerimos. Por isso, insistimos, com Leminski e contra o que atesta Krenak, que a inutilidade da vida é sagrada – na medida em que serve como modo de resistência à mercantilização do mundo promovida pelo regime do capital.
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002, p. 253-280.
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2010.
FERNANDES, Sabrina. Sintomas mórbidos. São Paulo: Autonomia literária, 2019.
FISHER, Mark. Fantasmas da minha vida. escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2022.
FISHER, Mark. Realismo capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’? (Aufklärung). In: KANT. Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 63-71.
KRENAK, Aílton. A vida não é útil. Companhia das Letras, 2020.
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Ed. Unicamp, 2012.
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski - 4 Biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
LÖWITH, Karl. O sentido na história. Lisboa: Edições 70, 1991.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
MIGNOLO, W. The conceptual triad. In: MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. On Decoloniality: Concepts, Analytics, Praxis. Durham/London: Duke University Press, 2018, p. 135-152.
PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática – v. 3. Santo André; São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2009.
PIEPER, F; MIGUEL, M.; MENDES, D. Necropolítica e sua lógica sacrificial em tempos de pandemia. Estudos Teológicos, v. 60, n. 2, p. 533-553, 2020.
VAZ, Toninho. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O “lugar impossível” da identidade brasileira. Público online, 1 ago. 2022. Disponível em <https://www.publico.pt/2022/08/01/culturaipsilon/noticia/lugar-impossivel-identidade-brasileira-2015685>. Acesso em 13 ago. 2022.
ŽIŽEK, Slavoj. O amor impiedoso (ou: Sobre a crença). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
ŽIŽEK, Slavoj. The Ticklish Subject: The Absent Centre of Political Ontology. New York: Verso, 1999.
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[1] “Compra a briga das coisas/ Gigante em vão/ Contra a parede branca/ prega a palma da mão” (LEMINSKI, 2013, p. 15).
[2] Conforme argumenta Croatto, a relação entre mito e rito se dá no sentido de atualização: enquanto o mito se prende a um relato acerca de uma ação divina, o rito o mimetiza em ato litúrgico, de modo que o mito é repetido inúmeras vezes no rito, mas agora pelo ser humano. Nas palavras de Croatto, “é no rito que a repetição daquela ação divina é mimetizada como ato litúrgico. As ações sintonizam, mas a segunda ação (a ritual) repõe em ação a primeira. Os atos divinos são atualizados na cena ritual. [...] Então, no rito, os seres humanos fazem o que no mito fazem os deuses” (CROATTO, 2010, p. 332-333).
[3] Nesse ponto, devemos indicar que uma das consequências da atualização do mito da entrega de Cristo como o ato da poesia, mas agora a partir do sentido da inutilidade, também possui interessantes desdobramentos que não cabem a esse artigo. Para tal, indicamos a reflexão de Slavoj Žižek sobre a falsidade do sacrifício de Cristo (ŽIŽEK, 2013, p. 35-40) – o que indica, de certa maneira, também sua inutilidade lógica quando lido sob o signo da salvação pelo resgate.
[4] Para uma discussão mais aprofundada da pós-política, recomendamos os textos de Sabrina Fernandes Sintomas mórbidos (2019), e Slavoj Žižek The Ticklish Subject (1999). Embora Mark Fisher não utilize o termo, seu pensamento se aproxima do fenômeno a partir da noção de ontologia empresarial aliada ao conceito de realismo capitalista como uma “atmosfera” que condiciona a cultura, o trabalho e a educação. A relação entre esses termos se encontra em “O capitalismo e o Real” (FISHER, 2020, p. 32-39). Outra importante consideração de Fisher para entender tal realismo a partir de suas consequências reais se encontra na relação entre realismo e saúde mental, no ensaio “Não prestar para nada” (FISHER, 2020, p. 137-141) e na obra Fantasmas da minha vida (FISHER, 2022).
[5] Esse conceito desenvolvido por A. Mbembe (2017) possui uma íntima relação com a religião. Sobre essa relação, indicamos o artigo de Pieper, Miguel e Mendes (2020). Embora ele localize a questão na pandemia de COVID-19, aborda também a relação entre necropolítica e religião em geral.
[6] Como texto paradigmático desse modo de pensamento, indicamos o artigo de I. Kant “Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’?” (KANT, 2019). Aqui, o autor deixa claro quais são os pressupostos e os objetivos de uma gradual autonomização da razão humana em relação ao Estado e à vida humana em geral. Para uma interessante análise entre a relação entre religião, progresso e história, indicamos a obra de K. Löwith O sentido na história (LÖWITH, 1991).