Editorial     

Antonio Manzatto*  
*Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, 1993. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: antoniomanzatto@gmail.com 

Voltar ao Sumário

 

O mal e o sofrimento que causa angústia ao espírito humano desde sempre, o faz buscar explicações e soluções por diversos e múltiplos caminhos, como o temos testemunhado na história. Perguntas sobre as causas ou razões da existência do mal e propostas sobre como vencer o sofrimento ou, ao menos, não se deixar abater por ele, estão sempre presentes nos projetos de sociedade e nas discussões sobre a significação do humano e sua história. Se olharmos com atenção, a propaganda eleitoral não se faz de maneira diferente, com propostas, até mesmo mirabolantes, de como enfrentar e resolver problemas que angustiam a sociedade porque trazem sofrimento, no sentido de dificultar a vida. 

A superação do sofrimento e a vitória sobre o mal também fazem parte da história da humanidade, seja em experiências concretamente vividas, tanto no nível individual quanto social, seja nos sonhos ou nas propostas de solução para o enfrentamento da realidade que causa dor. Se a realidade de sofrimento é uma constante na experiência humana, por outro lado a esperança de uma solução para tal questão faz com que as pessoas busquem formas de ultrapassar e, talvez, resolver aquela realidade superando o sofrimento, alcançando a libertação do mal e encontrando a alegria e até mesmo a felicidade. 

Por conta de sua característica essencial de retratar o humano, a literatura também contempla tal situação. Não raro o enredo das histórias que retrata, começa com uma situação de sofrimento ou, ao menos, problemática, e caminha para uma solução em tipo de “happy end” ou, minimamente, de superação daquela situação inicial. As dores humanas, em suas mais variadas formas, são como que o cenário, senão o combustível, para as formas artísticas de retratação do humano. Mas a perspectiva de mudança da realidade, de superação da dor, de salvação ou de redenção, constitui como que o fator de desenvolvimento do processo artístico, no sentido de ser aquilo que é buscado, desejado, sonhado. Ainda quando canta exclusivamente a dor, a literatura aponta para a esperança de sua superação. 

Também a religião, incluindo aí a teologia, tem como característica o anúncio da salvação que vence o mal. Gesché lembrava que a teologia em seu todo é exatamente isso, uma resposta à indagação do mal, como que uma busca para o vencer (GESCHÉ, 2002, p. 34). Que o mal seja chamado de dor, problema ou pecado, o horizonte da redenção, salvação ou libertação se descortina como afirmação da esperança de que a vitória sobre ele é possível. Em termos teológicos, a questão do mal foi enfrentada de diversas e diferentes maneiras ao longo da história (QUEIRUGA, 2011, p. 54). De maneira mais indicativa que exaustiva, podemos falar em duas grandes correntes que, em teologia cristã, contemplam e enfrentam a questão do mal: uma que segue o pensamento de Paulo e Agostinho, e outra que segue mais de perto a dinâmica de Lucas. A primeira tem como paradigma o pecado original, entendendo o mal como pecado, na linha de Rm 5, enquanto a segunda se refere ao mal inocente, na perspectiva de Jó. 

Assim, a primeira tradição fala do mal do qual se é culpado e se interessa em conhecer o culpado, referindo-se a Adão e Eva na questão do pecado original; por isso tem atenção maior ao mal moral, com sensibilidade dirigida ao mal subjetivo, digamos assim; afinal, a questão é saber quem pecou. Tem preocupação especial com o mal de consciência, aquele que é explicável pela falta, praticamente em uma relação de causa e efeito. Seu resultado eclesial nós o conhecemos pela história através da pregação de penitência, a elaboração de certa teologia da redenção e a prática do ascetismo individual, em uma como que proclamação da luta contra o mal que se realiza no interior do humano, lá em seu coração. Se tal perspectiva ajudou a construir a noção de pessoa no ocidente e enfatizou a importância do “eu”, por outro lado reduziu a compreensão de salvação à da alma, no além depois da morte. 

Já a segunda tradição fala do mal não merecido, como acontece na história de Jó, e tem como paradigma a parábola do bom samaritano de Lc 10. Por conta disso, seu interesse primeiro se direciona à vítima, com atenção especial ao mal físico, como aparece nos relatos das curas de Lucas. Daí que sua sensibilidade é com o mal objetivo, digamos assim, aquele mal de fato, que produz vítimas. Por isso tem atenção ao mal não merecido, aquele mal do qual. Seu resultado eclesial também o conhecemos pela história, como na fundação de hospitais, asilos, compra da libertação de escravos e outras obras assim chamadas “de caridade”. Em tal sentido, é uma perspectiva que proclama a luta exterior, através das ações humanas que efetivamente ajudem a diminuir o sofrimento das vítimas. Tal perspectiva se entende bem no ocidente, que privilegia o agir humano, e proporciona o anúncio da salvação já aqui, através do símbolo do pão repartido. 

É forçoso notar que, no nível da prática, as duas tradições mantêm certo equilíbrio, pois a Igreja que anuncia a conversão também realiza continuamente obras para socorro dos mais necessitados. No nível mais específico da teoria, da pregação eclesial, a primeira tradição tem maior destaque. Elabora-se uma ampla teologia do pecado que resulta no universo da falta e da culpa (MOSER, 1996, p. 78), não raro ocasionando uma pastoral de terror, que busca a causa do mal, insiste na culpa sem se preocupar com vítimas. Produz uma teologia que olha mais para o Gênesis e não para Jó; que lê Paulo, mas não Tiago. Se isso tem como consequência positiva a descoberta da pessoa livre e responsável, por outro lado gera não pouca culpabilização individual. 

Em nosso horizonte teológico mais recente, a teologia latino-americana foi quem recuperou a noção do mal imerecido e proclamou como necessário, em primeiro lugar, o socorro às vítimas através da afirmação da opção preferencial pelos pobres, e isso não pode lhe ser negado. O Papa Francisco, não por acaso originário da América Latina, retoma o socorro às vítimas como urgente e necessário nos dias atuais, propondo uma Igreja que sai de si e vai ao encontro dos feridos da história, atuando como hospital de campanha no socorro aos descartados da sociedade (FRANCISCO, 2013, 198). 

Na contracorrente de tal compreensão, segue nossa sociedade que, como que em mentalidade miliciana (MANSO, 2020, p. 122), quer buscas e punir culpados. É o próprio enredo dos romances policiais, cujo único objetivo é identificar o culpado, sem que se olhe para a realidade da vítima (JAMES, 2012, p. 49). Parece aquela antiga compreensão de que o mal vem de fora do humano, e por isso basta identificá-lo e expulsá-lo para que o paraíso terrestre aconteça (QUEIRUGA, 1999, p. 125) sem que se perceba que isso nega a importância da ação do sujeito, afirmada com grande importância em outros espaços. 

Por sua vez, a compreensão teológica de salvação já passou por grandes transformações semânticas seguindo a evolução da própria sociedade. Os sinóticos a caracterizam como Reino de Deus, Paulo fala em justificação e dom do Espírito, assim como João que fala ainda de vida eterna. A teologia cristã já conheceu significações como redenção ou libertação, e sempre se debateu contra reducionismos na compreensão dessa realidade. Na verdade, salvação tem de ser uma noção ampla, porque implica em superação da negatividade e afirmação da felicidade. Salvação não é apenas vencer o mal, mas inclui, ainda que como em excesso, um dom de plenificação do humano. Por isso, atualmente, seguindo a terminologia de Castillo (2009, p. 194) muitos trabalham a ideia de humanização, seja daqueles cuja dignidade humana é negada por conta da pobreza, da violência ou outras formas de opressão, seja daqueles submetidos ao pecado; mas também a humanização precisa ser trabalhada como horizonte a ser buscado, comportamento a ser assumido, no sentido de que o ser humano pode tornar-se, ao longo da vida e da história, mais humano. Em teologia essa noção tem bastante lastro, seja na perspectiva da criação, pois o humano é criado à imagem e semelhança de Deus, seja na perspectiva da ressurreição, quando Jesus se manifesta como o humano pleno, paradigma de nossa humanidade (GESCHÉ, 2003, p. 37). 

Diante de quadro tão vasto e tão importante, tanto para a literatura quanto para a teologia, a Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia (Alalite) realizou, em 2021, um congresso cuja temática foi, exatamente, A salvação e seus rostos: teopoéticas do mal e da redenção. Seu objetivo não era apenas o de pensar a questão do mal, mas também de formas e rostos pelos quais a salvação acontece, é experimentada pelo humano e expresso em sua arte. Seja através do herói literário, seja através de eventos indescritíveis ou através da ação do Messias de Deus, a salvação é buscada pelo humano e acontece em sua história. Por isso pode ser retratada em suas obras de arte, de maneira especial em suas histórias narradas e passadas de geração em geração pela cultura expressa em veias artísticas. O presente número de Teoliterária traz um dossiê que prolonga o debate ali iniciado, provocando outros pesquisadores a desenvolverem a temática. 

Teoliterária agradece, por isso, a Alalite, parceira de longa data, pela disponibilidade em participar do presente dossiê que é apresentado por Roberto Onell, presidente da Associação até a realização daquele congresso. A partir de lá, a presidência de Alalite cabe a Cecília Avenatti de Palumbo, presidente, e Daniel Del Percio, vice-presidente, a quem saudamos e desejamos frutuoso trabalho, inclusive na proposta de novo congresso a ser realizado em 2023. 

O dossiê temático da presente edição traz a contribuição de Luce Lopez-Baralt que, desde Porto Rico, nos oferece uma interessante reflexão que liga Cervantes e São João da Cruz, falando de D. Quixote diante de uma cavalaria que aponta para dinâmicas de espiritualidade. Margit Eckholt, por sua vez, em ambiente mais religioso, traz importante texto sobre a Mãe das Dores e comportamentos devocionais e religiosos que a Maria se dirigem, em referência ao manto protetor da Virgem. Maria Clara Bingemer nos brinda com um bonito texto sobre martírio e desenhos de utopia que conhecemos em diversas regiões da América Latina no desenvolvimento de sua teologia própria. 

Dante Alighieri é o referencial dos estudos que seguem. Cecília Avenatti retoma a perspectiva da viagem para apresentar a perspectiva de trabalho interdisciplinar que propõe Alalite e seus membros. Daniel Del Percio, por sua vez, apresenta a relação entre texto e profecia, onde a comédia de Dante será percebida como utopia. Já Pedro Bayá Casal destaca a importância de figuras paternas como afirmação de segurança e esperança de salvação, como Dante em seu caminho para o Pai. Silvia Campana nos brinda com sua reflexão sobre peregrinação, percebendo o peregrinar de Dante desde o desejo até o amor. 

Unindo música e literatura, Antonio Manzatto apresenta seu estudo sobre “A morte de José”, canção que retrata a cultura popular em sua compreensão de morte e salvação, percebendo a importância dos pobres também em tal horizonte. Em uma pequena memória, Felipe Espinoza e Jaime Blume referem-se à homenagem prestada a Gaston Soublette, importante artista e pensador chileno, homenageado, com razão, por Alalite. Rafael Miranda-Rojas apresenta sua reflexão sobre o mal como causador de sofrimento, mas em relação com a maldade, ou seja, intencional. E Maria Eugênia Góngora encerra o dossiê com figuras femininas, especialmente a sabedoria e a justiça, pensadas a partir de Hildegard de Bingen. 

Além do dossiê, Lucas Alamino Martins e Thiago Barnabé apresentam um trabalho sobre violência, assunto importante nos tempos atuais, relacionando Raskolnikov e Caim. Em seguida Márcia Maria e Emerson Sbardelotti apresentam reflexão sobre a ecoteologia, também um tema de atualidade, relacionando com algumas canções que povoam o cancioneiro nacional. Carlos Mário Paes Camacho fala da recepção do Eclesiastes em Machado de Assis, enquanto César Martins de Souza e Weverton Castro refletem sobre ódio e salvação a partir de Charlotte Brontë. Juan Carlos Ramos Hendez apresenta interessante relação entre o acontecimento de Fátima e outro acontecido na Colômbia, e Márcio Cappelli apresenta uma reflexão sobre o pensamento de José Tolentino, enquanto Lúcia Pedrosa-Pádua reflete sobre o pecado na mística de Santa Teresa. Por fim, encerrando a edição, trazemos, em edição bilingue, o Regimento Interno da Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia, como um serviço prestado à rede de pesquisadores para que se torne conhecido e ocasione, talvez, o ingresso de novos membros. 

Com agradecimentos especiais a todos os que colaboraram na presente edição, desejamos frutuosa leitura, lembrando sempre que Teoliterária quer ser isso, um serviço à rede de pesquisadores que se debruçam sobre a interrelação entre teologia e literatura, religião e arte, ajudando na publicização de estudos e facilitando o contato entre todos que atuam na área. 

Referências

GESCHÉ, Adolphe. O mal. São Paulo: Paulinas, 2002. 

GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. São Paulo: Paulinas, 2003.

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a salvação. São Paulo: Paulinas, 1999 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar o mal. São Paulo: Paulinas, 2011. 

MOSER, Antonio. O pecado. Petrópolis: Vozes, 1996. 

MANSO, Bruno Paes. A república das milícias. Rio de Janeiro: Todavia, 2020. Francisco, Evangelii Gaudium, 2013. 

CASTILLO, José Maria. La humanización de Dios. Madrid: Trotta, 2009. 

JAMES, P. D. Segredos do romance policial. São Paulo: Três Estrelas, 2012.