Nenhum nome serve para dizer o fogo: espiritualidade e poesia em José Tolentino Mendonça      
No name is enough to say the fire: spirituality and poetry in José Tolentino Mendonça       

Marcio Cappelli*
*Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Professor no Programa de Pósgraduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Contato: alocappelli@gmail.com 
 

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Resumo 

O artigo quer explorar a hipótese de que a poesia de José Tolentino Mendonça mantém uma relação com o universo da espiritualidade, ou, dito de modo mais específico, a ideia de que a própria poesia pode ser entendida como um exercício espiritual. Para dar a ver essa característica da poesia de José Tolentino Mendonça, percorreremos o seguinte caminho: 1) procuraremos oferecer um panorama contextual resumido de sua obra poética, ressaltando, com auxílio da fortuna crítica, a sua relação com a religião; 2) buscaremos mostrar, especialmente a partir de um ensaio recente, como o próprio José Tolentino Mendonça aproxima a experiência poética da espiritualidade; 3) e, por fim, como isso se reflete de maneira evidente em alguns poemas. Desse modo, pretende-se evidenciar que a poesia do autor se constrói num movimento de apropriação da tradição espiritual cristã em modo de “torção”, como um esforço de despojamento e reconhecimento da fragilidade e dos potenciais dos poemas para dizer o indizível.  

Palabras clave: José Tolentino Mendonça; espiritualidade; poesia 


Abstract 

The article intends to explore the hypothesis that the poetry of José Tolentino Mendonça maintains a relationship with the universe of spirituality, or, more specifically, the idea that poetry itself can be understood as a spiritual exercise. In order to show this characteristic in José Tolentino Mendonça’s poetic work, we will follow this path: 1) we will try to offer a summarized contextual overview of his poetic work, highlighting, with the help of the critical reception, his relationship with religion; 2) we will try to show, especially based in a recent essay, how José Tolentino brings the poetic experience closer to spirituality; 3) and, finally, how this is clearly reflected in some poems. In this way, it is intended to show that the author’s poetry is built in a movement of appropriation of the Christian spiritual tradition in a “twisting” mode, as an effort to strip and recognize the fragility and potential of the poems to say the unspeakable.  

Keywords: José Tolentino Mendonça; spirituality; poetry 

Introdução 

A vastidão da poesia de José Tolentino Mendonça – doravante JTM – admite muitas entradas. Neste trabalho explora-se uma delas: a correlação entre a atividade artística e a religião. Isso, que numa leitura preliminar do autor parece ser óbvio, precisa ser matizado. De modo mais específico, o desafio que a poesia de JTM apresenta não é tanto a constatação do emprego de elementos religiosos, de resto muito evidentes em todos os seus livros. Mas, sobretudo, a expressão da consciência do esgotamento de discursos totalizantes, sejam de que categoria forem, da singularidade e exiguidade da linguagem artística, seus limites e possibilidades diante do real. É precisamente aí que a religião, sobretudo a herança da espiritualidade, especialmente de extração cristã, se torna imprescindível para a compreensão da poesia de JTM. Este parece ser o fio que dá certa unidade à pluralidade do corpus poético do autor. 

Para dar a ver essa característica na obra poética de JTM percorreremos o seguinte caminho: 1) procuraremos oferecer um panorama contextual resumido de sua obra poética, ressaltando, com auxílio da fortuna crítica, a sua relação com a religião; 2) buscaremos mostrar como em um ensaio recente o próprio JTM aproxima a experiência poética da espiritualidade; 3) e como isso se reflete de maneira evidente em alguns poemas. 

Um “poeta de fé”?

JTM nasceu em 1965, em Machico, na Ilha da Madeira. Doutorou-se em Teologia Bíblica com parte dos estudos no Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Atuou como docente na Universidade Católica Portuguesa, universidade em que, posteriormente, exerceu os cargos de vice- -reitor, coordenador da Faculdade de Teologia e diretor do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião. Desde 2018, após ter sido escolhido pelo Papa Francisco como o pregador dos exercícios espirituais da cúria, ascendeu na hierarquia eclesiástica. Chegou rapidamente ao arcebispado, ocupando a função de responsável pela administração da Biblioteca Apostólica Vaticana (2018), sendo nomeado cardeal em 2019. Tem se destacado por seu trabalho no âmbito do diálogo com a cultura. Prova disso foram sua atuação no Pontifício Conselho para a Cultura e a escolha de Marcelo de Sousa, atual presidente de Portugal, para que ele ficasse encarregado da direção da comissão organizadora das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 2020. Seus ensaios sobre exegese bíblica e espiritualidade têm sido vertidos para diversas línguas e angariado muitos leitores. Destacamos também a sua atuação como tradutor da Bíblia, de textos de Hildegard von Bingen (Flor brilhante) e de poemas de Cristina Campo (O passo do adeus). Contudo, sua poesia conta ainda com uma diminuta fortuna crítica, especialmente no Brasil. 

O seu primeiro livro de poesia, publicado em 1990, Os dias contados, inaugurou uma vasta produção, que já conta com doze tomos, estando onze compilados na quarta edição de sua poesia reunida: A noite abre meus olhos (2021): Os Dias Contados (1990), Longe não sabia (1997), A que distância deixaste o coração (1998), Baldios, (1999), De Igual para Igual (2000), Estrada Branca (2005), Tábuas de pedra (2006), O Viajante sem Sono (2009), Estação central (2012), A papoila e o monge (2013), Teoria da fronteira (2017). O seu livro de poemas mais recente é Introdução à pintura rupestre (2021). 

Pode-se dizer que estamos diante de uma obra que dialoga com a tradição literária portuguesa e com a herança clássica grega e latina, a filosofia, a espiritualidade cristã e muitas outras. De modo mais específico, JTM inscreve sua poesia na experiência religiosa católica e trava um diálogo com autores como Ruy Belo, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, mas vai além dessas referências mais imediatas, singrando por um intricado caminho de diversidade que inclui, sim, as Escrituras cristãs, os Padres da Igreja, Santa Teresa d’Ávila, São João da Cruz, Angelus Silésios, Simone Weil, Dietrich Bonhoeffer, mas também o sufismo, Bashô, Rilke, Marianne Moore, Patti Smith, Manoel de Barros, Adélia Prado, Kaváfis e Tonino Guerra, e outras formas de arte, de nomes como Pasolini, Tarkóvski, John Coltrane. 

Todavia, algo que nos parece importante pontuar na leitura da poesia de JTM, um autor confessadamente católico, é justamente a necessidade de não tomar de forma simplista os versos como reflexos do discurso religioso. É bem verdade que se trata de um poeta com pertença religiosa delimitada. Um sacerdote católico que, nos últimos anos, ascendeu na estrutura eclesiástica. No entanto, antes que os espíritos avessos à religião possam vir a franzir o sobrolho, é bom que se diga que as incursões apressadas no universo dos poemas de JTM elidem sua complexidade. No que se refere à prática poética desse autor é preciso evitar uma classificação a priori frouxa. Tratá-la apenas como um sub-gênero da lírica, tal como “poesia religiosa”, ou aplicar a JTM o epíteto de “poeta de fé” é incorrer numa simplificação. O próprio escritor, ao ser desafiado a refletir sobre o assunto numa entrevista à Anabela Mota Ribeiro, diz: “sem dúvida que a experiência religiosa traz uma marca específica à minha experiência poética. Também a experiência poética desafia, por dentro, a experiência religiosa” (RIBEIRO, 2012). Ora, se há um inegável parentesco entre experiência religiosa e poética, suas respectivas autonomias também estão preservadas; afinal, somente assim podem elas interpelarem-se mutuamente. 

Como poeta dos anos 1990, JTM partilha de uma série de transformações finisseculares que engendraram novas e complexas interações com o capital simbólico das religiões, algo que poderíamos chamar, ao modo de Karl-Josef Kuschel (1999, p. 215), de “novos amálgamas espirituais”. Estas transformações podem ser entendidas, dentro do escopo desse tópico, como sintomas, por um lado, da crise do fundamento da onto-teologia cristã e, por outro, do enfraquecimento da crença no poder da razão tal como compreendida no âmbito do projeto das Luzes. A religião comparece de maneira explícita nos poemas de JTM por meio do uso de símbolos e textos, mas – e é isto que nos interessa mais –, a própria noção de uma poética, muito mais do que um simples jogo linguístico, ainda que não deixe sê-lo, parece ser concebida por esse autor como a luta com os limites impostos pela própria contingência da linguagem, ou seja, uma luta para esgarçar as palavras até o ponto em que sua debilidade fundaria um espaço a ser iluminado por “algo mais”. A poesia conteria a promessa de uma experiência de religação1 , mas não sem certa dificuldade e precariedade. Por isso, até mesmo os elementos religiosos são deslocados em função desse tipo de sensibilidade. Estaríamos, portanto, diante de uma poesia que carrega a marca de uma relação com uma, por assim dizer, espiritualidade secularizada plasmada pela perda de espessura metafísica do discurso cristão e da filosofia. 

Nesse sentido, o diagnóstico que José Augusto Mourão faz da poesia de Tolentino Mendonça é esclarecedor: 

A poesia aparece hoje como uma nova religião, não a religião da arte, mas como prática duma ligação com o absoluto que advém ao instante e à finitude. (...) Não se procure, porém, na poesia de Tolentino Mendonça um qualquer vislumbre teológico – nenhum nome serve para dizer Deus. Nem sequer é já possível encontrar Deus pelos baldios (TM: 213). E o saber dos anjos que povoam estes versos é um saber frágil. O anjo vem do escuro (TM: 70). Como pedir-lhes uma palavra luminosa? Fica-nos a traçabilidade do nome, os restos. “Deus não aparece no poema/apenas escutamos a sua voz de cinza/ e assistimos sem compreender/ a escuras perícias (TM: 213) (MOURÃO, 2010).   

Em José Tolentino Mendonça: o ofício incerto das palavras, texto no qual Maria João Reynaud (2009, pp. 61-67) faz uma apreciação do livro O Viajante sem Sono (2009), a crítica vê também nos versos deste poeta um contraponto ao racionalismo teológico que se configura como um “misticismo lírico”, cujo mote é a realidade do mundo como matéria espiritual do poema. Se cabe à poesia um reencantamento do mundo, a refundação de um anelo por religação, o poeta já não pode propô-la como um pregador da religião institucional nem como um “profeta” romântico. 

Por mais contraditório que possa parecer, o enfraquecimento do fundamento metafísico da religião é semente para a retomada, em outro registro, de seu próprio “espólio”; a espiritualidade tem seu potencial crítico revalorizado, ou, em outras palavras, a reinterpretação da religião torna-se possível a partir de seu “esvaziamento” – palavra escolhida propositalmente por remeter à ideia bíblica expressa no hino cristológico da Carta aos Filipenses 2,5-11 e que, recentemente, foi reinterpretada, por exemplo, pelo filósofo italiano Gianni Vattimo para explicitar o nexo entre cristianismo e secularização (cf. VATTIMO, 2000, pp.105-106)2

Aqui, cabe um esclarecimento a mais. Ainda que a categoria da kénosis pareça produtiva para explicitar o cerne da poética de JTM, é importante assegurar a sua peculiaridade no arcabouço do projeto estético do poeta. Note-se: a aplicação do termo “estética” indica a compreensão de certa autonomia da poesia em relação à religião. É evidente que na afirmação de Cristo como logos divino e, portanto, na noção de encarnação, i.e., na declaração de que em Jesus conviviam perfeitamente a substância divina e a completa humanidade, reside o núcleo da articulação de toda experiência cristã. Mas, isto não quer dizer que a poesia, para JTM, é apenas um exercício de meditação cristã, seja ela religiosa ou secular. Não se trata de afirmar que o poeta estaria próximo de uma reafirmação da religião nos moldes de um “reacionarismo”, mas tampouco da ideia levada a cabo por teólogos como Altizer, Hamilton e Cox, para os quais o “desaparecimento” da religião seria a própria realização do desígnio de um Deus “totalmente outro”. Ou seja: a poesia, no caso de JTM, não se assemelha a diatribes fideístas ou secularistas, que até apontam para a necessidade de uma autocrítica, mas, no fundo, se sustentam numa espécie de convicção narcísica de superioridade cultural. Os versos que parecem, de maneira sintética, expressar esta recusa a enquadramentos fáceis são: “a arte existe apenas/ como homenagem (pobre, desolada)/ àquilo que cada rosto foi/ um dia através da paisagem” (MENDONÇA, 2014, p. 112). 

Poesia, esvaziamento e espiritualidade

A pobreza, como é possível perceber nos versos citados anteriormente, é condição inescapável da arte e, ao mesmo tempo, sinal da promessa do encontro com o “rosto” que passou pela paisagem. Essa compreensão se reforça em um ensaio de JTM, Creio na nudez da minha vida – onde mística e literatura se encontram (2020), em que ele aproxima a mística da literatura por meio da categoria da nudez, fazendo referência justamente ao texto da Carta aos Filipenses que remate ao “esvaziamento”. Ou seja, JTM liga a espiritualidade cristã, que na sua perspectiva é kenótica, à poesia por meio da imagem da nudez. Em diálogo com o filósofo italiano Giorgio Agamben, o poeta português procura recuperar o valor da nudez como dado essencial da experiência cristã, retirando-lhe o acento negativo dado por certa hamartilogia. No seu percurso argumentativo, ressalta que a nudez, antes de ser uma falta moral, é a verdade do rebaixamento de Cristo, sua kénosis – que chama de “desapropriação”. Em outras palavras, a espiritualidade cristã, cujo fundamento é o esvaziamento de Cristo, é uma “mística da nudez” (MENDONÇA, 2020, p. 30). Mas, o que mais nos interessa aqui é o fato de JTM aproximar a nudez da vida à prática poética. Na sua perspectiva, a poesia não é adorno, tampouco trabalho de idealização, mas: “ela cria um método que nos adentra sempre na experiência do inominável, no silêncio da vida nua” (Ibid., p. 31). 

O argumento é levado a cabo num diálogo com Sophia de Mello Breyner Andresen, para quem a poesia é “uma arte do ser”, o testemunho de uma convivência com as coisas, de uma participação no real. As palavras dos escritores, de acordo com Sophia Andresen – posição endossada por JTM –, são escolhidas, não por sua beleza, mas por uma necessidade: “pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança” (ANDRESEN, 2015, p. 1142). Essa declaração auxilia JTM a chegar à conclusão de que a poesia e a espiritualidade se avizinham por serem formas de dissidência em relação a uma visão ornamental e idealizada da vida, uma precariedade cujo símbolo é a nudez, ou, se quisermos, a própria kénosis. Na visão de JTM: “o essencial está além e só na pobreza da nudez (...) o podemos entrever” (MENDONÇA, 2020, p. 34) Se, para o cristão, a nudez de Cristo dá a ver a nudez de Deus, a máxima dedicação do trabalho poético se traduz num esforço para revelar a nudez do real. Claro, no sentido duplo da palavra revelar – desvelar e velar novamente. Poesia e espiritualidade são, no máximo, mantidas as suas peculiaridades, fundadas em ausências; elas não dispõem completamente dos objetos que as fundam. Isso nos coloca, portanto, diante de outra categoria fundamental. 

Poesia e mística se aproximam, afirma JTM, por serem formas de “exercícios espirituais” (MENDONÇA, 2020, p. 33), que têm por objetivo uma “religação” com a nudez da vida. Isto nos obriga a esclarecer de modo um tanto mais preciso a compreensão da categoria “exercícios espirituais”. 

Lida assim, de súbito, ela se liga à tradição jesuítica, cujo fundador foi Inácio de Loyola. Seu objetivo precípuo é o progresso da vida contemplativa com vista à experiência de participação no Ser divino por meio do exame e do justo ordenamento da consciência, dos afetos, das motivações, das vontades etc. Embora, esta associação seja imediata, houve quem propusesse outras nuances. 

É possível, nesse sentido, ressaltar o esforço de Pierre Hadot para dar a estes termos uma conotação não religiosa, de cunho sobretudo filosófico. De maneira geral, Hadot se refere assim aos exercícios (2019, p. 09): “trata-se de atos do intelecto, da imaginação ou da vontade, caracterizados por sua finalidade: graças a eles o indivíduo se esforça por transformar sua maneira de ver o mundo, a fim de transformar a si mesmo”. Todavia, o curioso é que Hadot, inclusive, fez questão de ligar sua reflexão sobre os exercícios espirituais à literatura. Percebeu em Goethe uma atualização da tradição desse tipo de prática, entendida especialmente como uma concentração no instante presente (Cf. HADOT, 2019). Além disso, numa entrevista, reconhece o impacto que a leitura de um volume sobre a poesia como exercício espiritual, De la Poésie comme Exercice Spirituel, havia lhe causado – o que remete à ampla discussão no âmbito dos debates literários do século XX, sobretudo no período entre as duas Grandes guerras, que procurou matizar a relação entre poesia e espiritualidade e da qual dois exemplos significativos foram Prière et poésie (1926), de Henri Bremond, e Situation de la poésie (1938), de Jacques e Raïssa Maritain. 

No entanto, mesmo em críticos que absorveram os efeitos da secularização de modo mais ostensivo, em quem a religião aparece de maneira mais diluída e a respeito de quem é possível dizer que estão num “tom” de pensamento distinto em relação àqueles citados no parágrafo anterior e cujo alicerce epistemológico corresponde a uma religiosidade mais fácil de se circunscrever, há uma série de referências a práticas ascéticas no gesto de compreensão de autores modernos, por exemplo. Para se ter uma ideia, Walter Benjamin, ao tratar da Recherche de Proust, afirma que ela é o resultado, entre outras coisas, da “absorção do místico” (BENJAMIN, 1994, p. 36); ele diz ainda que “dificilmente terá havido na literatura ocidental uma tentativa mais radical de auto-absorção, desde os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola” (Ibid., p. 46)3 . Parece estar claro para Benjamin que não se vê em Proust uma preocupação doutrinadora, tampouco um programa bem definido cronologicamente com passos específicos para a contemplação e o exame de consciência com o objetivo de uma união com Deus. Mas o que há de mais interessante na comparação estabelecida pelo crítico é noção de que a literatura é uma realização espiritual que se dá a partir de uma prática ascética. A “absorção do místico” por Proust corresponde ao exercício da escrita que liga as possibilidades criativas que residem virtualmente na linguagem às percepções interiores, transfigurando assim o vivido. Se os exercícios espirituais inacianos estão dentro de um horizonte de rememoração com o objetivo da reprodução da vida de Cristo, mas cujo limite se estabelece na doutrina, a Recherche proustiana fertiliza a imaginação por meio da memória desperta um sem-número de possíveis associações livres. 

Ao longo da história, houve, por assim dizer, um tipo de prática espiritual capitalizada pelas burocracias eclesiásticas, i.e., que serviu perfeitamente à repressão que visava o controle sacerdotal da vida. Mas houve também uma ascese mística de caráter perturbador. Claro, não é possível dizer que ambas estavam assim tão separadas em figuras emblemáticas como São João da Cruz e Santa Teresa D’Ávila, apenas para citar dois dos mais emblemáticos casos em que a experiência mística pode ser reconhecida. O lado repressor e moralista da ascese é perceptível neles. Por motivos óbvios, não era possível viver uma mística fora da instituição ou numa espécie de vínculo esgarçado tal como vemos sobretudo a partir dos séculos XVIII e XIX. Contudo, é a experiência mística, ainda que no horizonte institucional, que se pode ver também em São Bernardo de Claraval, nas Beguinas, Mestre Eckhart, Inácio de Loyola, Jakob Böhme, entre outros, que, desde dentro da religião, planta uma desconfiança em relação às próprias definições da vida espiritual, razão pela qual os místicos foram também alvo de perseguições inquisitoriais. Ou seja, um pensador como Benjamin foi capaz de perceber que o artista moderno pode sorver dos exercícios espirituais, devidamente deslocados por uma chave secularizada, o princípio de uma estética que permite imaginar outras paisagens para a vida. Em muitos casos, até mesmo naqueles em que há uma evidente revolta contra a religião, herda-se a linguagem paradoxal da mística, sua tendência de relativização das mediações institucionais e a experiência do excesso (de prazer e dor, melancolia e euforia). O que nos parece produtivo destacar aqui é algo a respeito do que Octavio Paz já havia advertido: é necessário ter em conta a separação entre as esferas da arte e da religião a partir daquilo que costumamos chamar de modernidade, mas também é preciso reconhecer seu vínculo. Se certa beligerância em relação à experiência do sagrado institucionalizado por parte de alguns poetas – o que, diga- -se de passagem, pode até ser interpretado como intenção de “criar” um novo sagrado – é conditio sine qua non para sua justa compreensão, igualmente importante é a manutenção de uma paradoxal proximidade, já que tanto na religião quanto na poesia mantêm-se a pretensão transformar o sujeito, aspecto sem o qual a prática artística torna-se inofensiva (PAZ, 2012, p.124). 

Além de Benjamin e Paz, outros críticos sublinharam o valor da mística para a literatura produzida a partir da modernidade. Poderíamos mencionar, como exemplos, respeitadas as particularidades dos respectivos projetos intelectuais, também Gershom Scholem4 , Georges Bataille5 , Harold Bloom6 e, recentemente, entre outros7 . Todos eles, cada um a seu modo, ressaltaram a importância de se compreender o potencial da experiência ascética e mística, ainda que seja para ressaltar na sua recuperação por parte dos artistas o que consideram o seu potencial subversivo. O excerto do parágrafo que encerra o primeiro volume de A fábula mística, de Michel Certeau, importante teórico da mística, sintetiza bem esse gesto de reconhecimento: 

Desse espírito de ultrapassagem, seduzido por uma intocável origem ou fim chamado Deus, parece que subsiste principalmente, na cultura contemporânea, o movimento de partir sem cessar, como se, por não poder fundar-se sobre a crença em Deus, a experiência guardasse a forma e não o conteúdo da mística tradicional (CERTEAU, 2015, p.482).   

No caso de JTM, a noção de exercícios espirituais parece plasmar a experiência poética. Evidentemente, não se trata de separar completamente forma de conteúdo, tampouco de pensar que o procedimento criativo de JTM é uma espécie de emulação apenas, mas de perceber que sua poesia é uma espécie de processo alquímico singular. Se não há como negar, nos poemas do autor, por exemplo, a proximidade com a espiritualidade, especialmente cristã, da qual os exercícios espirituais fazem parte, é igualmente importante perceber as refrações que esses construtos sofrem nesse meio específico de linguagem. Vejamos adiante como isso se apresenta nos próprios poemas. 

O poema como exercício espiritual 

Um dos poemas significativos de JTM que esclarece o que estamos querendo afirmar chama-se “Grafito” e traz como epígrafe uma frase de Emmanuel Levinas que por si só explicita a vocação espiritual do poema, a saber: “o poema é o acto espiritual por excelência”. Abaixo, os versos que se seguem: 

O poema pode conter: 
coisas certas, coisas incorretas, venenos para manter fora do alcance 
(...) 
Pode conter Le matin, Le midi, Le soir 
audácias típicas de um visionário 
uma guerra civil 
um disco dos Smiths 
correntes marítimas em vez de literárias (MENDONÇA, 2014, p. 214). 

Ora, se o poema é ato espiritual, só pode cumprir tal intento caso sua índole seja antidogmática. Dito de outro modo, ainda que o trabalho poético possa ser, de algum modo, comparado àquilo que o autor mesmo chama de exercícios espirituais (MENDONÇA, 2017, p.75), ele só pode sê-lo à sua maneira, como a construção de uma liberdade; por outro lado, o poema não é apenas autorreferencial, já que traz em si mais do que correntes literárias. Sendo assim, JTM situa-se num limiar: reitera o inevitável desgaste dos anacronismos de extração dogmático-religiosa e literária. O poeta seria fiel a uma espécie de mitologia particular. Algo que no dizer de Octavio Paz pode ser traduzido assim: “a poesia não é ortodoxa; é sempre dissidente. Não necessita da teologia nem do clero, pois não tem missão nem apostolado. Não quer salvar o homem nem construir a cidade de Deus” (PAZ, 2017, p. 20). 

JTM introduz, desse modo, seus leitores numa concomitante paradoxal estranheza familiar em relação ao próprio legado cristão. No entanto, embora o trecho citado de Paz culmine na ideia de que a poesia pode ser uma forma clandestina de religião (Ibid., p. 20), o que parece ter pertinência especialmente para poéticas românticas que, para esse crítico, seriam o cerne da literatura moderna (PAZ, 1984, p. 117), vale dize que, no caso de JTM, não estamos diante da substituição do cristianismo por religião estética e tampouco de sua dissimulação. Na poesia de JTM comparece uma apropriação da tradição espiritual cristã em modo de “torção”8 – entendido como uma dinâmica crítico-criativa de releitura das formas e conteúdo que marcaram presença no desenvolvimento da espiritualidade, especialmente no âmbito do cristianismo –, como sintoma da insuficiência das formas obtusas tanto da religião quanto de visões que esvaziam o mundo da possibilidade de qualquer vislumbre de transcendência. Por outras palavras, a poesia, no final das contas, estabelece-se a partir da consciência exígua de sua fragilidade, mas também de seu potencial. Mantém aberta a possibilidade de um rasgão transcendente, claro, na mais densa imanência. 

A poesia até pode ser tida como exercício espiritual, mas está longe de corresponder à ascese que direciona o fiel nos limites da bem determinado das doutrinas. Isto parece ficar claro no poema que, inclusive, recebe o título de “Exercícios Espirituais”: 

Devem existir maneiras de ir além 
do pequeno fracasso 
dar agora meia dúzia de passos 
mas de olhos vendados 
ver a vida romper-se no governo do vazio 
arriscando em vez dos tropeções habituais 
a queda infinita (MENDONÇA, 2017, p. 75). 

A referência explícita aos exercícios espirituais parece ser consoante à noção trazida à baila pelo próprio escritor no ensaio já citado anteriormente, em que a nudez e a kénosis perfazem o núcleo da alegação. O exercício espiritual coloca-nos no interior das experiências limite. A modo de aproximação, é possível dizer que o poema é, na verdade, uma forma de tatear o vazio, ou, nas palavras do próprio JTM, “as paredes nuas do silêncio” (MENDONÇA, 2020, p. 34). Enfrentar as solicitações que o poema faz é sentir a vertigem da queda livre; trata-se de perder-se em seus jogos, seu conjunto de imagens, suas tensões – claro, conscientes de seus potenciais e limites, suas promessas e suas precariedades. Se os exercícios espirituais na filosofia e na religião, guardadas as diferenças entre eles, são um ordenamento do mundo interior, um treinamento para colocar-se sistematicamente na perspectiva do todo, no caso de JTM, a arte poética só pode ser considerada como tal enquanto experiência singular que, na sua contingência, nos faz mergulhar numa certa desordem que contém a promessa de algo difuso, um desvelamento. 

Mas a relação com a espiritualidade fica ainda mais evidente se considerarmos, por exemplo, o título e a epígrafe da poesia reunida do autor. Título: A noite abre meus olhos; epígrafe: “Na sua miséria, a teologia olha em direção à porta”9 (Michel de Certeau). No título, a imagem da noite alude a uma tópica frequente na tradição mística cristã, tal como, por exemplo, vemos no poema de São João da Cruz: En una noche escura, em que a noite é o recurso imagético que ambienta a Unio Mystica. Já a epígrafe sugere a radicalização da ideia da indigência da teologia trabalhada por Certeau – teórico da mística citado anteriormente – num artigo em que procurava mostrar a dificuldade de articulação do discurso teológico no mundo contemporâneo. A frase, que representa bem o mote de Certeau no artigo, pode ser lida como o indício de uma atitude fundamental diante de uma realidade inabarcável. O historiador francês encaminha seu argumento para a defesa de uma cidadania da teologia entre os saberes, desde que ela mantenha uma postura de reconhecimento de sua própria fraqueza enunciativa, i.e., a consciência de que ela não é autossuficiente e, no máximo, pode ser o testemunho de uma experiência particular e precária (CERTEAU, 2006, pp. 261-262), algo bem distinto do registro de outros tempos em que ela, mantida sob controle da autoritas concebida como depositum fidei, era a “rainha das ciências”. Ora, a pergunta a se fazer agora, tendo em conta esse diálogo de JTM com Certeau é: à miséria da teologia não corresponderia a fragilidade ou a pobreza da prática poética? 

A arte poética, para JTM, ao nos parece, é uma via de despojamento, condição necessária para uma união com um “tu”, signo de uma alteridade que sobrevive nos poemas apenas como rastro de um rosto – imagem fulcral da poesia de JTM – que um dia se vislumbrou na paisagem. A poesia pode muito e pouco ao mesmo tempo. O poema “Quando ainda se ignora a morte” termina assim: “Não lamentes serem os versos/ saberes tão frágeis/ as flores mais belas são as que se colhem quando ainda se ignora a morte” (MENDONÇA, 2014, p.51). Não seria forçoso dizer, assim, que os poemas se constituem como esforço para dar a ver uma dinâmica, onde o imaginário e o real se cruzam e fertilizam outro tipo de sensibilidade, afinal: como diz o poema “Bocca dellla Verità”: “as línguas são portas/ que se abrem rangendo/ para coisas que não existem” (MENDONÇA, 2017, p. 62). 

Note-se: a porta – já presente na epígrafe da poesia reunida – reaparece. Tomemo-la como princípio imagético norteador de uma hipótese10: ela é o instrumento que remete de uma só vez para a separação e a “religação” (religare) – dos espaços interiores e exteriores, para o potencial do esvaziamento (kénosis) como abertura, o “exercício” (áskesis) espiritual de contemplação (theoría) da fronteira. Na epígrafe ela, a porta, se insinua como sinal, uma espécie de sacramento da poética, que se desenrolará no conjunto da obra, ou seja, elemento que antecipa o fundamento de toda a arte de JTM; uma arte cujo reconhecimento do limite é o seu potencial, justamente porque é como “pobre” e “desolada” que sobrevive como anelo de vislumbre da nudez da vida, ou o testemunho de uma espera no meio da “noite” que aguarda ver uma presença, algo que os versos do poema “Os dias de Job” parecem confirmar. 

Às vezes rezo 
sou um cego e vejo 
as palavras o reunir 
das sombras 
às vezes nada digo 
estendo as mãos como uma concha 
puro sinal da almaa porta 
queria que batesses 
tomasses um por um os meus refúgios 
estes dedos
inquietos na ignorânciado fogo (...) (MENDONÇA, 2014, p. 29) 

O eu-lírico oscila na inconstância, se reconhece como cego, mas vê. Vê palavras e, no reunir das sombras, algo lhe é revelado – mostrado e velado; por isso nada diz. Restam-lhe as mãos vazias, uma prece em forma de gesto, sinal de uma postura existencial de espera traduzida no poema como a alma diante da porta à espera de um “tu”. Para recorrer ao personagem que o poema traz no título, é a miséria de Job que o coloca frente a frente com uma alteridade que, no caso bíblico é Deus. Mas ele não recebe respostas e sim uma enxurrada de perguntas, as quais trazem algumas das mais belas imagens da espiritualidade bíblica. Para JTM, a poesia também não carrega certezas, é uma aposta no despojamento, anelando a nudez. Haveria aí um paradoxo originário da poética tolentiana: o ato poético se dá no reconhecimento de sua fragilidade intrínseca e ao mesmo tempo de seu potencial. Quanto mais ela se torna consciente de sua pobreza, mais se torna um espaço fecundo para uma experiência significativa. Ao nos depararmos com um poema como esse, é possível dizer que estamos diante de um intrincado diálogo com a espiritualidade cristã, em que pesem sua variedade e as inúmeras possibilidades de reinvenção no contexto das sociedades contemporâneas – um pendor apofático, uma ascese, que tem por objetivo precípuo o voltar-se para um não referenciado que se vê de maneira semelhante e condensada, por exemplo, no Pseudo-Dionísio Areopagita e ganha contornos específicos em Dante, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. Mas, é preciso ter calma, afinal: essa aproximação ao modus loquendi místico se dá em JTM a partir da crítica à arquitetura de uma teologia totalizante e de uma razão potente. 

Outro poema interessante, que parece corroborar essa tese, é o que abre o livro de estreia, Os dias contados (1990), de JTM, “A infância de Herberto Helder”: 

No princípio era a ilha 
embora se diga 
o Espírito de Deus 
abraçava as águas 
Nesse tempo 
estendia-me na terra 
para olhar as estrelas 
e não pensava 
que esses corpos de fogo 
pudessem ser perigosos 
Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas 
ordenando berlindes 
sobre a erva 
Não sabia que todo o poema 
é um tumulto 
que pode abalar 
a ordem do universo 
agora acredito 
Eu era quase um anjo 
escrevi relatórios 
precisos 
acerca do silêncio 
Nesse tempo 
ainda era possível 
encontrar Deus 
pelos baldios 
Isto foi antes de aprender a álgebra (MENDONÇA, 2014, p.11). 

No plano formal, é possível reparar uma ostensiva opção pelo verso livre, uma deliberada falta de preocupação com técnicas de versificação, algo que poderia ser confundido com certa negligência, mas também podemos destacar a musicalidade alcançada especialmente através do jogo sonoro consonantal – como podemos ver na primeira estrofe com a interpolação das letras “p”, “r”, “b”, “r”, nas palavras: princípio, embora, espírito, abraçava (que, em certa dicção portuguesa, ganha uma especificidade, dado que se tende a passar mais depressa por esses encontros consonantais e a pronunciá-los com menos articulação dos lábios) – e ao predomínio do acento rítmico na terceira sílaba poética, especialmente na primeira estrofe, que é aquela em que o ritmo indicar a recriação do tempo mítico da cosmogonia. 

Essa aparente desordem, antes de ser uma despreocupação, satisfaz a vocação do poema: “um tumulto/ que pode abalar/ a ordem do universo”, condição mais próxima, mas ainda aquém da infância do eu- -lírico, um “quase anjo” que transita entre a ordenação do mundo pela experiência lúdica e o vazio – “baldio” – em que ainda era possível encontrar Deus. Se a “descontinuidade discursiva traduz, ocasionalmente, o sentimento de perda de unidade e de totalidade, uma espécie de nostalgia da perfeição, por outro lado, não deixa intuir o Todo, inscrevendo o poema no paradoxo da necessária ignorância, pobreza, esvaziamento, para a sabedoria. 

Ao longo dos versos constitui-se uma antinomia. De um lado, temos a ilha, a infância, o olhar ingênuo para as estrelas, a ordenação do mundo pelos berlindes, os relatórios sobre o silêncio, Deus; e, de outro lado, temos a álgebra, que é linguagem matemática, refletida, mas, no poema, um macrossema para tudo que propõe um conhecimento definitivo sobre o mundo, como a filosofia e a teologia metafísicas. Portanto, se fôssemos traçar uma geometria do poema, em uma ponta, no primeiro verso, teríamos um estado de pureza condensado na ilha, e, na outra, no último verso, a sua perda resumida na álgebra. Entre eles, como uma espécie de ponte precária, estaria o poema? 

De partida, para verificar isto, destacamos a nítida evocação dos textos bíblicos de Gênesis 1,1-2 e de João 1,1. Para experiência religiosa judaica, o Bereshit, termo que dá nome ao primeiro livro e que é comumente traduzido por “no princípio”, denota o momento da criação divina vista sob um ângulo de convergência; e o versículo 2 explicita o ambiente do ato criativo, o caos inicial: a terra vazia e vaga, as trevas cobrindo o abismo e o vento agitando as águas. No cristianismo, tudo isto é relido à luz da primazia de Cristo, o logos, isto é, a encarnação da palavra de Deus. Já na primeira estrofe do poema, a expectativa criada pela alusão aos dizeres bíblicos é frustrada pela ilha, que se conecta à voz lírica de Herberto Helder, poeta madeirense, assim como o próprio JTM. A origem insular, portanto, comum aos dois, é determinante para o modo como percebem o mundo. Ou seja, esta suposta infância do homenageado se organiza a partir de um centro, a ilha, e, posteriormente, toda a construção poética marcada também por esse locus é, no fundo, a busca dessa experiência primordial. 

Algo também a se notar é a mudança para a primeira pessoa, que somada a ambiguidade da anáfora “nesse tempo” – por que não “naquele”? –, reiterada na abertura da segunda, terceira e sexta estrofe, intensifica a qualidade da experiência primordial e o desejo de recuperá- -la. Dito de outro modo, o tempo evocado se refere, concomitantemente, à infância de Herberto Helder, à de JTM, à natureza idílica/mítica da fundação do mundo desses sujeitos e de sua própria poesia. A ilha e a infância são mais do que coordenadas espaço-temporais. A voz lírica revela ao leitor a condição pré-adâmica da infância insular, tempo em que ainda era possível marcar a latitude das estrelas com brinquedos, “encontrar Deus/ pelos baldios” e em que o futuro poeta “não pensava” e “não sabia”. Mas estaria o eu-lírico fadado a viver apenas da lembrança da infância ou preso à álgebra? Se olharmos com calma a quarta estrofe, será possível vislumbrar que a contrapartida a esses dois polos é o próprio poema, já que ele pode abalar a ordem do universo. Há, porém, uma ambiguidade semântica provocada pela cesura mais abrupta na continuação da unidade dos dois últimos versos. É possível ler a estrofe de duas formas: 1) Não sabia que todo o poema é um tumulto que pode abalar a ordem do universo, agora acredito, ou 2) Não sabia que todo o poema é um tumulto que pode abalar a ordem do universo agora. Elas não são necessariamente excludentes, mas surpreendem e convocam o leitor. O advérbio de tempo, “agora”, solicita a máxima atenção do leitor, encurta a distância entre a infância, a poesia e o ato de leitura, mantendo a clivagem entre eles. 

Poderíamos, aqui, evocar A poética do devaneio, de Gaston Bachelard, para quem a infância não é algo a ser superado para um amadurecimento, mas um estado de ativação da imaginação que podemos preservar e acessar na vida adulta por meio de imagens poéticas. Se, de acordo com Bachelard, “um excesso de infância é o germe de poema” (BACHELARD, 2018, p. 95), para JTM, parece que “o poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça aquela impureza que o mundo repudia” (MENDONÇA, 2014, p. 202). Ou seja, mantém sua singularidade e precariedade. Permanece como algo dissonante. Não é retorno à ordem experimentada na infância, tampouco conhecimento peremptório a respeito do mundo e de Deus. 

Mas o que a experiência poética nos dá a saber, afinal? Qualquer asseveração seria leviana, porque o poema é desordem, caos produtivo, fenda de tráfico de coisas ditas e não ditas, espaço da referencialidade rasurada. No máximo, procurando ser fiéis às ideias de esvaziamento, de nudez, de exercícios espirituais tal como sugeridas por JTM, poderíamos dizer que o poema é um evento que não pode ser exatamente equivalente a nada. Enfrentar as solicitações que nos faz é sentir a vertigem da queda livre, é perder-se em seus jogos, seu conjunto de imagens, suas tensões. A ascese poética de JTM seria, portanto, a luta com a linguagem para dizer algo que até pode passar pelo verso, mas não pode ser capturado, afinal, não do “ofício incerto das palavras” (MENDONÇA, 2014, p. 25). 

Nesse sentido, a expressão de André Malraux retomada por George Steiner em Tolstói ou Dostoievski (2006, p. 4) captura bem o espírito da poesia de JTM, já que ela parece se desenvolver entre “a finitude da condição humana e a infinitude das estrelas”. Esperamos ter explicitado ao longo de nosso percurso as razões para dizê-lo. Mas ainda podemos recorrer, para rematar a ideia, ao título da penúltima coletânea de nosso autor: Teoria da Fronteira (2017). A fronteira, aí, mais do que uma geografia delimitada, perfaz a imagem da descircunscrição, i. e., um “lugar” imaginado sob o signo da imprecisão – algo que JTM indica ao tomar como epígrafe para este já referido livro a frase de Gloria Anzaldúa: “penso na fronteira como o único ponto da terra que contém todos os outros lugares dentro de si” (MENDONÇA, 2017, p. 14). No entanto, mais do que remeter ao trabalho de intersecção de múltiplas referências, sejam literárias, de outras artes, ou de tradições religiosas, por vezes oriundas de universos díspares, os próprios poemas podem ser compreendidos como um exercício para desvelar o “entre-lugar” no qual acontece o trânsito entre o visível e o invisível, o real e o imaginário, o dizível e o indizível, o imanente e o transcendente – entenda-se, aqui, o transcendente não como algo descrito na positividade dos credos específicos, mas como um horizonte essencialmente negativo, que, justamente por isso, não é possível nomear a não ser precariamente. Certamente, ainda há muito a se explorar no universo poético de JTM a partir da relação com a espiritualidade, mas, por ora, fiquemos com os versos do poema “Inscrição”, que parecem sintetizar bem a nossa hipótese: “o brilho é o leve/ júblio/ que// ainda que sejamos obscuros// e nenhum nome/ sirva jamais para dizer/ o fogo” (MENDONÇA, 2014, p. 24). 


Referencias

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Notas

[1] Em outro trecho da entrevista a Anabela Mota Ribeiro, JTM diz: “A experiência religiosa é uma experiência de relação, de procura. Às vezes é uma experiência fusional – sentimo-nos dentro do mistério. Outras vezes, porventura a maior parte das vezes, é uma experiência de interrogação, de deserto. Por vezes crucificante. Um permanecer apesar de. Ou contra o silêncio. Essa é a experiência da fé. E essa é também a experiência poética, de comunhão, tão profunda que parece que nos funde com a própria realidade. O mundo torna-se experiência. Ao mesmo tempo, nada é fácil para o poeta. Nada lhe é dado. Ele tem de fazer aquele caminho de pedras, de pergunta em pergunta, afinando, na dificuldade, os instrumentos da sua audição. O poema dá a ouvir o inaudível, e nisso ajuda-me na experiência religiosa. Diz, procura dizer, dá a ficção do dizer o indizível” (RIBEIRO, 2012). 

[2] A compreensão de Vattimo, ainda que possa ser sugestiva, não se sobrepõe à poesia de JTM, especialmente porque, no filósofo, ela remete a uma radical ruptura com qualquer possibilidade de transcendência, o que não parece ser o que se visualiza nos poemas do autor português.   

[3] É curioso notar que Benjamin, ao apontar a necessidade de superação de uma fé no progresso e a confiança no apoio das massas por parte dos políticos, fala das regras de meditação dos monges (BENJAMIN, 1994, p. 227). Para uma abordagem acurada da importância dessas técnicas em Benjamin, ver: LOSSO, 2021, pp. 107-127.    

[4] A cabala e seu simbolismo (1978).  

[5] A literatura e o mal (2015).   

[6] Cabala e crítica (1991).     

[7] Mallarmé and the language of mysticism (1970), de Tomás Williams, T. S. Eliot and mysticism: the secret history of Four quartets (1994), de Paul Murray, T. S. Eliot: mystic, son, and lover (1997), de Donald Childs, Mysticism after modernity (1998), de Don Cuppit, Language mysticism: the negative way of language in Eliot, Beckett, and Celan (1995), de Shira Wolosky, The sensual philosophy: Joyce and the aesthetics of mysticism (1997), de Colleen Jaurretche. No Brasil, no campo dos estudos literários, o trabalho de Claudio Willer, Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (2010), e o de Eduardo Losso, Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna (2007), representam bem esse tipo de esforço de maneira mais sistematizada.  

[8] O que entendemos por “torção” pode ser descrito da seguinte maneira: uma dinâmica de reapropriação criativa e crítica no seio das imbricações entre o espaço profano e sagrado, especialmente no campo da arte, tendo em conta a sua autonomia em relação à religião. Um exemplo interessante vem de Theodor Adorno (1998, p. 230), quando afirma, na sua ensaística, referindo-se a Walter Benjamin, que numa profanação radical sem reservas havia uma chance para o sagrado, ou seja, na profanação do sagrado surge ao mesmo tempo a possibilidade de uma sacralização do profano. Se no caso de Tolentino há o re-uso de elementos “consagrados” pela religião, no jogo poético eles são profanados, o que, ao mesmo tempo, não deixa de revelar, em certa medida, uma sacralização do próprio ato poético. Na incerteza da perdição, nas miudezas e fragilidades profanas é que se encontram rastros do transcendente, desvelados pela poesia, e não em resistências rígidas da crença diante do movimento destruidor da dúvida e do niilismo.   

[9] Tradução livre: “Dans sa misère, la théologie regarde vers la porte”.      

[10] Este insight surgiu a partir da leitura do artigo de Marcos Lopes, Da poesia como exercício espiritual (2014), em que ele comenta poemas de Daniel Faria, Ruy Belo e JTM. No caso desse último, sugere que a porta é um dos elementos fundamentais para a compreensão de sua poética.