Paulo Henrique Lopes
Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato:peagalopes@outlook.com
Resumo: A obra de Søren Kierkegaard (1813 – 1855) é marcada por uma grande articulação estilística entre forma e conteúdo. Para a sua filosofia da existência, o “que” se produz sobre o existir deve necessariamente articular com o “como” se produz. Em uma abordagem indireta do tornar-se si mesmo, a nossa maior tarefa enquanto indivíduos, Kierkegaard esquivará de escrever sistemas filosóficos ou doutrinas religiosas. Para isso, ele recorrerá a figuras de linguagem, humor, ironia, pseudonímia e, no caso de nossa presente análise, à apropriação de personagens bíblicos enquanto modelos subjetivos de tal tarefa. O presente artigo busca uma análise pontual desta última questão aplicada a dois de seus discursos edificantes. Em um primeiro momento, exporemos as bases de uma antropologia religiosa em que Kierkegaard irá basear aquele movimento em que o ser humano se torna um si mesmo, superando sua condição de pecado e desespero, por um salto da fé. Em um segundo momento, analisaremos como ele se apropria das figuras de Jó e da Pecadora para, menos do que explicar ou fornecer diretrizes para este movimento existencial, prover modelos pelos quais aquele salto da fé pode ser observado e, enfim, apropriado pelo leitor.
Palavras-chave: Kierkegaard; discursos edificantes; salto da fé; personagens bíblicos
Abstract: Søren Kierkegaard’s (1813 – 1855) though works with the stylistic articulation between form and content. For his philosophy of existence, “what” is said about the existing being must be necessarily articulated with the “how” it is said. Through an indirect communication of the becoming of a self – the most important task in existence – Kierkegaard criticizes the philosophical and doctrinaires’ religious systems. For that, he will use linguistic figures, humor, irony, pseudonyms, and biblical characters as subjective models. The scope of this paper is to analyze specifically how this appropriation of biblical characters are made in two of his edifying discourses. In a first moment, we will expose the religious anthropology upon which Kierkegaard edifies that existential movement of becoming a self and overcoming sin and despair through a leap of faith. Then, we will analyze how Kierkegaard appropriates of the biblical characters (Job and the Woman who was a Sinner) to, less than explain them, to provide subjective models of the leap of faith in a way it can be finally appropriated by the reader in her own existential movement.
Keywords: Kierkegaard; edifying discourses; leap of faith; biblical characters.
É recorrente a preocupação de Søren Kierkegaard (1913 – 1955) quanto à posição que parte a sua voz inscrita em suas obras. O estilo do filósofo da existência é reconhecidamente caracterizado como um discurso indireto, único modo que, para ele, a questão da existência pode ser abordada sem se tornar um sistema filosófico objetivo. Esta será, inclusive, uma de suas críticas acerca, não só do idealismo alemão, mas também à cristandade de sua época. O uso da linguagem objetiva, na forma de um discurso direto que busca responder “o que, afinal, é a existência?”, incorre no erro de promover uma normatização da existência mesma. Ou seja, fornecer uma cartilha que, resolvendo aquela questão, ditaria o passo-a-passo de como um sujeito deve agir para tornar-se si mesmo, retira a sua responsabilidade frente a esta tarefa individual.
Mas como, então, abordar a questão da existência sem resolvê-la? A comunicação indireta kierkegaardiana recorrerá, então, a uma experimentação intensa com a linguagem que se coloca sobre uma profunda reflexão dialética entre forma e conteúdo. Ou seja, para que a existência mesma não seja objetificada enquanto conteúdo de sua produção, a própria forma textual não pode ser objetiva (POOLE, 1993). Não obstante, Kierkegaard recorre ao humor, à sátira, ao uso intenso de metáforas e figuras de linguagens como forma de manter a carga subjetiva de seus textos ao tratar de assuntos e conceitos subjetivos, sempre pensando em seus leitores (KIERKEGAARD, 1990).
Kierkegaard levará esta questão entre forma e conteúdo tão a sério, que, inclusive, utilizará de vários gêneros literários para formular a sua filosofia da existência de uma forma polifônica (cf. AUMANN, 2013; LOPES, 2018). A obra kierkegaardiana será composta por notas e entradas de diários, por peças de teatro, por textos pseudonímicos, por ensaios, por emulações acadêmicas e, sobretudo, por discursos edificantes. Estes últimos compõem a faceta religiosa de sua escrita. E é sobre estes discursos que mostraremos neste artigo, como Kierkegaard utilizou de personagens bíblicos para, fugindo da comunicação direta objetiva, criar a disposição subjetiva para a apropriação, portanto subjetiva, dos conceitos com os quais trabalha, como o de salto da fé.
A própria definição de sua escrita religiosa revela este zelo. Sendo um teólogo, Kierkegaard poderia escrever sermões, ainda que não pudesse pregar por não ser um pastor. E, de fato, tais textos religiosos ecoam este gênero textual. No entanto, o autor faz questão de chamá-los de discursos edificantes, como forma de criticar aqueles sermões que vinham sendo recorrentes na cristandade de seu tempo e que, ao invés de assumirem a tarefa de tornar o sujeito atento à própria existência, resolviam a existência mesma pelo sujeito.
O prefácio dos Quatro Discursos Edificantes, de 1843, é uma das inúmeras passagens que nos traz explicitamente esta questão.
O livro é chamado “discursos”, e não sermões, porque o autor não tem autoridade para pregar, e “discursos edificantes’, não ‘discursos para edificar’, pois de nenhuma maneira o locutor deseja ser uma espécie de professor (KIERKEGAARD, 1990, p.107, tradução nossa).
Ao contrário dos pastores e professores de seu tempo, Kierkegaard não queria resolver a questão da existência pelos seus interlocutores, mas, antes, trabalhar para reforçar aquela que seria, para ele, a maior tarefa existencial do sujeito: tornar-se si mesmo sem a ajuda de quaisquer mediações para isto.
Se na componente chamada estética de sua obra (tese, livros pseudonímicos, cadernos e diário), Kierkegaard faz questão de emular a linguagem filosófica e teológica corrente para voltá-la contra si mesma, na componente religiosa (os discursos propriamente ditos), ele se vale de uma linguagem confessional, não para pensar a religião, mas para pensar a existência através do cristianismo que, para ele, foi o paradigma responsável pela convocação do sujeito à apropriação de sua própria existência (KIERKEGAARD, 1991). Oras, se como vimos, este movimento não pode ser mediado por nenhum sistema filosófico ou teológico, ou seja, se ela não pode ser ensinada ou comunicada diretamente, todo indivíduo está sozinho consigo mesmo nesta tarefa e deve realizar um salto de fé para efetivar a tarefa de tornar-se si mesmo.
O que cabe à Kierkegaard, portanto, é relembrar os seus interlocutores desta tarefa existencial sedada pelos sistemas filosóficos e pela cristandade de sua época (KIERKEGAARD, s.d.). Mas como chamar a atenção destes interlocutores ao conteúdo existencial, sem resolvê-lo em definitivo ou incorrer em um discurso autoritário? Kierkegaard faz isso ao apontar para sujeitos que já efetivaram tal tarefa religiosa, ou seja, para personagens que já realizaram o salto da fé em se tornando si mesmos.
Por isso, nos seus discursos edificantes é recorrente o uso de personagens bíblicos. Kierkegaard o faz frequentemente em uma construção dialética, pela qual personagens com perspectivas estéticas – aqueles que tentam resolver a questão existencial em apelando para a finitude enquanto mediação – são confrontados com aqueles com perspectivas religiosas – os que entendem não haver mediação na finitude mundana que tornar um sujeito ele mesmo. Estes personagens religiosos, por sua vez, são os protagonistas dos discursos, mas não visando uma apologética (que minaria, inclusive, a proposta existencial), mas no sentido de personificarem e iluminarem os conceitos centrais do pensamento kierkegaardiano. Como o próprio autor pontua, veremos, o recurso de tais personagens bíblicos se dá porque tais personagens funcionam como mensageiros, modelos e símbolos para a tarefa que Kierkegaard não pode tratar de maneira direta, apenas indireta.
Reconhecendo este cuidado de Kierkegaard quanto à dialética entre forma e conteúdo no que tange à tarefa existencial e religiosa de tornar-se si mesmo, o presente artigo busca se aprofundar em dois dos discursos edificantes para ilustrar como é Kierkegaard se apropria de personagens bíblicos para efetivar a comunicação indireta de seus conceitos, como o de salto da fé. Os dois discursos serão precisamente o The Woman Who Was a Sinner e o The Lord gave, and the Lord took away; blessed be the name of the Lord. Como veremos, nestes discursos edificantes, Kierkegaard recorrerá à personagem da Pecadora e de Jó, respectivamente, como protótipos e modelos que nos indicam, não o que é o salto da fé, mas como ele reflete na disposição do indivíduo para consigo mesmo e a sua existência.
Mediante isto, analisaremos até que ponto o salto da fé (um conceito kierkegaardiano fundamental de que nos ocuparemos em um primeiro momento) é ilustrado por estas duas personagens bíblicas (de que nos ocuparemos em um segundo momento), a fim de defendermos a tese final de que, quando Kierkegaard as recorre a tais personagens religiosas e as coloca dentro de seus discursos edificantes, ele faz com que elas operem como uma extensão da sua linguagem conceitual filosófica, aplicando-as sob o viés da linguagem religiosa, subjetiva.[1] Pois se a comunicação direta e objetiva do salto da fé implica na privação de seu interlocutor em realizar tal salto por si mesmo, a saída não é simplesmente deixar de abordar tal problema, mas fazê-lo de uma maneira que convoque o interlocutor à realização deste salto por si só. Como? Não se sabe. Mas, pelo menos em seus discursos edificantes, Kierkegaard fornece exemplos, símbolos e modelos de personagens que inegavelmente realizaram este salto.
O salto da fé é, certamente, um dos conceitos centrais para o pensamento kierkegaardiano, movimento pelo qual o indivíduo se relaciona absolutamente com o Absoluto como única forma de tornar-se si mesmo. Este movimento existencial, que passa por uma disposição religiosa no sentido de que o conhecimento de si mesmo por si só não consegue efetivar tal devir, parte de uma discussão antropológica própria.
A antropologia kierkegaardiana é exposta e desenvolvida principalmente em suas obras pseudonímicas intituladas O Conceito de Angústia (2010) e A Doença para a Morte (1980). Nelas, os pseudônimos Vigilius Haufniensis e Anti-Climacus, respectivamente, vão traçar uma definição do ser humano enquanto síntese não efetivada entre necessidade e possibilidade, tempo e eternidade, finitude e infinitude. Efetivar esta síntese é que consistirá tarefa existencial do indivíduo em tornar-se si mesmo, para o pensamento kierkegaardiano. Para Kierkegaard, a efetivação ou não desta síntese antropológica é a peça-chave existencial do cristianismo e suas respectivas concepções de queda no pecado e de salto da fé, como veremos a seguir.
Em O Conceito de Angústia (2010), Haufniensis se debruça sobre a questão do pecado e de como ele entra no mundo, explorando, para isso, a figura de Adão como modelo – mais um exemplo de apropriação conceitual kierkegaardiana de personagens bíblicos. Para Haufniensis, o ser humano nasce enquanto uma síntese psíquico-corpórea efetivada (condição de inocência) (KIERKEGAARD, 2010, p.47). Mas quando ele se vê diante do nada existencial, sente angústia, esta “antipatia simpática e uma simpatia antipática” (KIERKEGAARD, 2010, p.46). O mau encaminhamento da angústia consigo mesmo lançará o ser humano no pecado, que, em A Doença Para a Morte (1980), Anti-Climacus – outro pseudônimo kierkegaardiano – definirá como sendo o desespero propriamente dito.
Como mostra Le Blanc (2003, p. 88), para Kierkegaard, “a essência do pecado é o desespero.” Esta articulação será importante para, mais tarde, analisarmos como tais conceitos são apresentados pelos personagens bíblicos discursos edificantes. Por hora, basta entendermos que
[a] angústia é a condição na qual o homem é colocado pelo possível. A possibilidade que provoca a angústia está ligada à situação do homem no mundo [...]. Já o desespero é inerente à relação do eu consigo mesmo e à possibilidade desta relação (LE BLANC, 2003, p.84).
Ao resolver mal esta “vertigem da liberdade” que é a angústia de existir, o ser humano perde a sua inocência, sofre a queda no pecado, isto é, desespera-se caso apele somente para um dos polos que o constituem enquanto síntese: ou só para elementos da finitude corpórea, ou só para elementos da infinitude psíquica. No entanto, nenhum deles basta para lançar o ser humano a si mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p.67), no que Anti-Climacus dirá, é preciso que o sujeito em desespero apele para um terceiro termo Absoluto à síntese mesma.
O processo de superação do desespero constitui-se, portanto, de um movimento de tornar-se si mesmo, no âmbito de uma nova efetivação da síntese antropológica em desalinho consigo mesma. Este movimento, assim como a queda no pecado, implica em um salto qualitativo – porque o sujeito não consegue sair do desespero pela mesma via em que caiu neste estado. Agora, impotente por si só, ele precisa realizar um salto de fé – acreditar que pode ser salvo da condição de pecado em que caiu, pois o “contrário de desesperar é crer” (KIERKEGAARD, 1980).
Com isso, o salto da fé se coloca como virada qualitativa que coloca o ser humano em relação consigo mesmo novamente. Em outros termos, para a antropologia kierkegaardiana, o sujeito desesperado, o pecador, é curado de sua condição de desespero e salvo de seu pecado apenas quando repousa transparentemente no poder que o estabeleceu fundamentalmente enquanto síntese. Em suma, tendo fé em Deus.
O tornar-se um self que pressupõe o essencialmente humano definido enquanto espírito é esse processo de extirpação do desespero. Na medida em que o desespero é identificado com pecado e o oposto de pecado é, não virtude, mas fé, a fé vem a constituir a cura para a doença do espírito que o desespero é. A má relação da síntese que constitui o desespero é corretamente estabelecida na fé onde o eu repousa no poder que pôs a síntese. (ROOS, 2007, p.179).
O salto da fé terá, portanto, um caráter absurdo porque, ainda que não possa sair da condição de desespero e pecado por si mesmo, o sujeito deve acreditar que isso é possível.
Como a existência se caracteriza pela precariedade absoluta ligada à possibilidade, a fé instaura entre o eu e o mundo, entre o eu e ele mesmo, uma relação de estabilidade que apaga [... o] desespero apenas pelo princípio de que para Deus tudo é possível. (LE BLANC, 2003, p.90).
Com isso, podemos ter uma breve ideia da complexidade conceitual do pensamento kierkegaardiano. Kierkegaard estabelece uma antropologia com bases teológicas ao apontar que o único meio de o ser humano superar a condição de desespero e de pecado em que caiu por conta própria é, portanto, realizando um salto da fé, tornando-se um si mesmo ao efetivar-se enquanto síntese mediante uma relação absoluta com o Absoluto, no caso, Deus.
Vejamos nos seguintes tópicos como a superação do desespero pelo salto da fé é ilustrado por personagens bíblicos (assim como apenas indicamos anteriormente que foi feito com Adão em O Conceito de Angústia, no que tange à queda no desespero e no pecado). Não recorreremos ao estudo da fonte bíblica para tanto, mas apenas ao modo como tais personagens – Jó e a Pecadora – aparecem, respectivamente, nos seguintes discursos edificantes: O Senhor proveu, o Senhor tomou; santo seja o Seu nome (KIERKEGAARD, 1990, tradução nossa) e A Pecadora (KIERKEGAARD, 1997, tradução nossa).
Dentro dos Quatro Discursos Edificantes, publicados em 1843, o presente discurso se ocupa do personagem bíblico Jó. O discurso logo se inicia elegendo Jó como um protótipo, um guia para o homem desesperado. Sabemos que a sua história gira em torno da aposta que Deus faz com o diabo de que o seu mais fiel crente não teria a sua fé abalada por quaisquer tentações. É neste contexto que Deus toma tudo o que um dia havia dado à Jó, relegando-o à mais miserável das condições. Não obstante, Jó aceita toda a danação que Deus lhe infringe – isto mostra que a fé de Jó nunca esteve baseada somente em um dos polos da síntese que o constitui enquanto ser humano: nem aos bens finitos, nem às abstrações de uma infinitude, mas articula-as sob o critério absoluto que ressignifica absolutamente a ambos. Por ter Jó ter agido como agiu diante da provação de Deus é que ele se constitui, para Kierkegaard, como um indivíduo que superou o desespero pela fé, servindo, portanto, de exemplo para todos aqueles indivíduos desesperados.
(...) quando o mais íntimo do ser de uma pessoa geme no desespero e, na ‘amargura da alma’ chora aos céus, então Jó ainda caminha ao lado das gerações e garante que existe a vitória, garante que mesmo se o indivíduo se perde em sua luta, ainda há um Deus (...). (KIERKEGAARD, 1990, p.111, tradução nossa).
A ênfase que demos no agir, é importante porque vai ao encontro do caráter subjetivo de tal movimento. Isto é, o nome de Jó é eternizado porque ele se porta como um exemplo e se exime do teor professoral e da relação de mestre: Jó não prega ou ensina o que deve ser feito para os demais indivíduos desesperados possam sair desta condição, mas apenas o faz por si mesmo: indica com a própria existência de que este salto é possível.
Esta superação do desespero em Jó está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento conceitual que Kierkegaard elabora ao longo das demais obras. No entanto, aqui nos discursos edificantes, Kierkegaard não se preocupa em retomar as aquelas discussões conceituais que ele elabora de maneira pseudônima nos livros anteriormente citados. Kierkegaard parte de uma linguagem essencialmente religiosa pela qual, inclusive, ele tentará retomar e aplicar os termos em sua carga existencial. Jó se torna, então, um modelo na medida em que se presta como uma extensão religiosa para o aparato conceitual subjetivo de Kierkegaard. E o modo como Jó realiza o salto da fé deve estar em consonância com o desenvolvimento kierkegaardiano: ele não é, nem pode ser explicado objetivamente, antes, apenas apontado indiretamente – a fé de Jó salvou-o do desespero mesmo quando acometido pela maior das misérias.
Como o próprio Kierkegaard ressalta, ao ter as suas dádivas confiscadas pela mesma força divina da qual proveram, Jó não se revolta pelas suas perdas. Mesmo ante a sua completa ruína, Jó louva o nome de Deus – o mesmo que o colocou nesta situação (KIERKEGAARD, 1990): “nu eu vim do útero de minha mãe e nu eu devo voltar.” Ao dizer isso, ele assina a sua resignação – a sua relação consigo mesmo não é definida por nenhum atributo da finitude, mas, antes, em sua relação absoluta com o absoluto que o lança para si mesmo. Antes de dizer “o Senhor tomou”, ele diz, “o Senhor deu”, ou seja, tudo o que ele possuía, e que lhe foi tomado, nunca lhe pertenceu de fato. Isto é o que lhe confere uma disposição existencial que o torna inabalável: ele jamais depositou a sua existência em atributos que não lhe cabem para erguer-se como um si mesmo, mas utiliza o próprio Absoluto como critério. “Ele viu o Senhor, e então ele não viu desespero. [...]. Mas aquele que vê Deus, superou o mundo” (KIERKEGAARD, 1990, p.121, tradução nossa).
Jó “vê” Deus e supera o mundo porque olha o mundo com os olhos da fé. Retomando esta constatação, podemos interpretá-la sob linguagem indireta de Kierkegaard. Superar o mundo, em Jó, significa, afinal das contas, superar o desespero em se realizando o salto da fé. Por sua vez, isto só é possível quando ele prescinde de tentar compensar a angústia que nele emerge pela fatalidade que lhe é imposta em recorrendo a mediações. Em outras palavras, Jó não procura razões para nem para a sua dádiva, nem para a sua ruína; pelo contrário, aceita as eventualidades como extensões da vontade divina sem se abalar; ele encara a prova de Deus com gratidão e, com isso, coloca-se em uma perspectiva religiosa, experimenta o mundo estando (também) além do mundo. Colocando-se em uma nova qualidade de existência para consigo mesmo, no sentido de efetivação da síntese com base no poder que o estabeleceu enquanto tal – se não é o mundo que fornece o critério para que ele se torne um si mesmo, não é a sua abstinência que o fará deixar de ser um si mesmo. Jó acredita nisso e a sua fé é o que lhe faz ver o
[...] quão fraco é o braço do assaltante, quão inútil é a inteligência do manipulador; quão lamentável é todo poder humano quando ele tenta submeter a pessoa ao desespero ao tomar tudo dela e, em sua fé, ela diz: não é você, você não pode fazer nada; é o Senhor quem tira (KIERKEGAARD, 1990, p.121, tradução nossa).
Se no último discurso, Kierkegaard elege Jó à posição de modelo, neste ele elegerá a Pecadora ao de símbolo para o salto da fé e a superação do desespero que, neste caso, é trabalhado pela terminologia do pecado.
Neste discurso, uma mulher apenas identificada como a Pecadora se encontra em um evento em que Cristo compartilha da mesa com fariseus. Mas na presença do Deus encarnado, ao contrário de todos os fariseus que lhe adulavam, a mulher não se contenta e se joga aos pés de Cristo que “é a Graça e o portador da Graça” (KIERKEGAARD, 1997, p.143). Frente ao salvador, a sua condição enquanto pecadora é contrastada. A partir disso, e assim como acontece a Jó, a Pecadora age, não na direção de pedir para que Jesus a salve – o que denotaria um tom egoístico ao gesto – mas na direção de expressar o amor que ela sente por aquela presença:
Ela não diz uma palavra; nem faz qualquer afirmação – oh, frequentemente uma afirmação enganadora necessita de outra para se afirmar. Ela não faz nenhuma afirmação; ela age: ela chora, ela beija os Seus pés. (KIERKEGAARD, 1997, p.140).
Aqui, mais uma vez o caráter subjetivo e intraduzível do salto da fé está presente na ação pelo interdito da comunicação direta que se vale da palavra. Se Jó, tornando-se um modelo, não se comporta de modo professoral, mas age, entrega-se à sua fé, assim a Pecadora o faz, só que pela via do amor que passava necessariamente pela tomada de consciência e repúdio de sua condição desesperada enquanto pecadora. Pela via do amor que expressa o seu salto da fé, a Pecadora é redimida por e pelo Cristo sem, contudo, pedir por tal redenção. As palavras de Roos ajudam a clarificar mais esta relação:
O único modo de ser curado do desespero é levando-o às últimas consequências. Não se escapa do juízo divino virando-se as costas para ele, assim como a cura para o desespero, a experiência da graça, passa pela experiência do autoconhecimento que implica, na perspectiva cristã, na consciência do pecado. Este é o ponto onde o “conhece-te a ti mesmo” de Kierkegaard é diferente daquele de Sócrates, pois o que faltara a este é precisamente a consciência do pecado. (ROOS, 2007, p.182).
No discurso, Kierkegaard deixa evidente que uma das reações da Pecadora em meio a este encontro com o seu Salvador é ela odiar-se a si mesma quando, frente ao Deus encarnado, ela toma consciência de sua condição de pecado e desespero. Mas pela via do amor, ela assume esta sua condição e, esquecendo-se de si, entregando-se não no sentido de adoração, mas no de superação, é restituída a si mesma. Isto é, redimida, ela realiza o salto da fé e se coloca em uma nova qualidade de existência que legitima a personagem enquanto símbolo para tal movimento existencial de resgate de si mesma.
Uma das grandes sacadas de Kierkegaard, para entender o cristianismo como um paradigma para se pensar a existência, talvez tenha sido o reconhecimento das figuras bíblicas como modelos e símbolos na medida em que delas se apropria para expressar indiretamente os conceitos envolvidos no movimento de individuação existencial, isto é, ao movimento pelo qual o ser humano acaba por tornar-se si mesmo. Mais do que construir uma filosofia sobre os personagens bíblicos, Kierkegaard toma emprestado a narrativa de cada um deles para alimentar o seu pensamento, isto é, para mostrar que o que ele não pode comunicar diretamente pode ser encontrado nos movimentos que personagens como Adão, Abraão, Isaac, Jesus e, como aqui exposto, Jó e a Pecadora realizaram. Em cada uma dessas figuras, em especial às duas últimas para o nosso caso, o que Kierkegaard parece fazer é, primeiro, o exercício de escuta. Kierkegaard leva às últimas consequências o que cada personagens pode e têm a dizer. Não fala por eles, mas se atenta ao que cada um ou pode contribuir para o contexto existencial que ilumina o modo pelo qual indivíduo pode, afinal, tornar-se si mesmo pelo salto da fé. Por isso mesmo, a filosofia da existência de Kierkegaard é altamente teológica.
Mas mais do que isso, ao personificar seus conceitos a partir da linguagem religiosa, Kierkegaard cria uma extensão do seu pensamento filosófico a atingir o ouvinte / leitor de uma maneira que o estilo propriamente filosófico por si só talvez não seria capaz. Ou seja, ao se apropriar destes elementos religiosos tão desgastados pelo senso comum, além realocá-los em suas corretas dimensões cristãs, Kierkegaard cria e oferece elementos, não só figurativos, mas, sobretudo, religiosos, frente aos quais o leitor / ouvinte que estiver na disposição de encará-los como tal, será convidado a considerar a própria existência em meio aos conceitos de angústia, desespero, redenção e fé – no limite, o leitor será reconduzido a si mesmo pelos modelos e símbolos que Jó e a Pecadora lhe oferecem. A forma sobre a qual opera o pensamento kierkegaardiano, menos do que resolver a questão da existência, convoca o seu interlocutor à reduplicação de seu conteúdo em seu próprio devir.
Referências
AUMANN, Antony. Kierkegaard, Paraphrase, and the Unity of Form and Content. Philosophy Today. 57 (4): 376–387. 2013.
CAMP, Elizabeth. Two Varieties of Literary Imagination: Metaphor, Fiction, and Thought Experiments. Midwest Studies in Philosophy. vol. 33, no. 1: 107–130. 2009.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates. Traduzido por Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Editora Vozes. 1991.
KIERKEGAARD, Søren. Eighteen Upbuilding Discourses. Ed. e trad. com introdução e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1990.
KIERKEGAARD, Søren. Migalhas Filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. Trad. Ernani Reichmann e Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes. 1995
KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia. Trad. Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes de Bolso. 2010.
KIERKEGAARD, Søren. The Sickness unto Death. Ed. e trad. com introdução e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1980.
KIERKEGAARD, Søren. Without Authority. Ed. e trad. com introdução e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1997.
KIERKEGAARD, Søren. Ponto de vista explicativo de minha obra enquanto escritor. Traduzido por João Gama. Lisboa: Edições 70. s.d.
LE BLANC, Charles. Kierkegaard. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade. 2003.
POOLE, Roger. Kierkegaard: the indirect communication. Virginia: University of Virginia Press. 1993.
ROOS, Jonas. Tornar-se cristão: o Paradoxo Absoluto e a existência sob juízo e graça em Soren Kierkegaard. Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Teologia, Escola Superior de Teologia. São Leopoldo, 2007.
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[1] A nossa metodologia se inspira naquela em que Camp (2009) usará para analisar a questão do texto enquanto reduplicação subjetiva da forma-conteúdo na existência de seu leitor.