Samuel Dimas
Doutor em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (UCP).
Resumo: Procuraremos identificar neste artigo de que forma a poesia de José Tolentino Mendonça concilia os pressupostos teológicos da sua experiência religiosa cristã católica com a arte literária enquanto expressão da sua experiência mística. Numa época que vive o desafio da superação dos antagonismos entre ciência e religião, razão e fé, teologia e espiritualidade, podemos encontrar na teopoética deste autor a manifestação de uma experiência estética que traduz o acolhimento do mistério da vida divina na condição paradoxal do mundo finito. O desejo de Deus não é saciado pela voz estridente de uma intervenção arrebatadora, mas pelo silêncio despojado de uma presença inefável e recriadora. A partir deste novo olhar, introduz a sua obra num diálogo fecundo com a cultura contemporânea sequiosa de benevolente serenidade e paz. O Deus de Tolentino manifesta-se na luz e nas trevas como doador de sentido e de amor e não como juiz ou cobrador de impostos.
Palavras Chave: religiosidade; silêncio; poesia; mistério
Abstract: We will try to identify in this article how the poetry of José Tolentino Mendonça reconciles the theological assumptions of his Catholic Christian religious experience with literary art as an expression of his mystical experience. In an age that is experiencing the challenge of overcoming the antagonisms between science and religion, reason and faith, theology and spirituality, we can find in this author's theopoetics the manifestation of an aesthetic experience that translates the acceptance of the mystery of divine life in the paradoxical condition of the finite world. . God's desire is not satisfied by the shrill voice of an overwhelming intervention, but by the silence stripped of an ineffable and recreating presence. From this new perspective, he introduces his work into a fruitful dialogue with contemporary culture thirsty for benevolent serenity and peace. Tolentino's God manifests himself in light and darkness as a giver of meaning and love and not as a judge or tax collector.
Keywords: religiosity; silence; poetry; mystery
A mais nobre literatura também transporta um conhecimento sobre o homem, o mundo e Deus, não se reduzindo a uma forma de entretinimento o de adorno. Contém inquietações antropológicas, ontológicas e escatológicas, que se comunicam de forma expressiva e simbólica através de um discurso transpredicativo analógico-metafórico.
Na relação com as formas simbólico-míticas do texto sagrado e com as categorias teológicas da sua espiritualidade, a poesia religiosa portuguesa contemporânea de autores como José Tolentino Mendonça, José Carlos Pereira, José Rui Teixeira ou Ruy Ventura, enquadra-se na via fenomenológica e histórico-hermenêutica da metafísica que procura a sabedoria a partir da experiência integral do homem e de uma racionalidade conjetural analógica que não se reduz à configuração positivista do real. Na sua procura de sentido, dá particular atenção a uma racionalidade cordial e poética alternativa ao positivismo, ao cientificismo, ao intelectualismo e à filosofia analítica. Quanto à forma ou ao estilo estético, sem uma escola poética própria, estes autores definem-se como herdeiros do simbolismo de Teixeira de Pascoaes, dos modernismos de Fernando Pessoa e de Ruy Cinatti e do vanguardismo experimentalista de Ruy Belo e Herberto Helder.
Neste texto, iremos desenvolver o diálogo com a obra de José Tolentino Mendonça, procurando identificar a sua proposta estética no contexto de uma espiritualidade que apresenta a experiência de Deus no horizonte de um discurso analógico e trans-conceptual. De que forma o poeta concilia as representações teológicas da sua mundividência religiosa com a narrativa lírica de uma poética que se apresenta como manifestação de uma contemplação mística do real? Como conciliar uma poética do silêncio de Deus, na recusa dos intelectualismos metafísicos tradicionais, sem ceder aos irracionalismos pietistas e fideístas?
Na antologia ensaística Uma beleza que nos pertence, de José Tolentino Mendonça, a poesia aparece definida como uma arte da escuta do dizível e do indizível, do visível e do invisível, reabilitando o silêncio e a capacidade de atender ao mistério deslumbrante e gratuito da vida: «Se perdermos a capacidade de abrir os olhos e de nos extasiarmos perante o maravilhoso espetáculo do criado, perderemos o entusiasmo para o louvor» (MENDONÇA, 2019 a, p. 108). A poesia capta o assombro e a surpresa das coisas, numa relação desarmada e rendida com a vida em aberto e sem predeterminações. Esta conversão do olhar proporcionada pela luz noturna da experiência mística contemplativa aparece na sua obra poética A noite abre os meus olhos através da interpelação dissidente e incrédula dos poemas perante o acabado e o definitivo:
O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia (MENDONÇA, 206, p. 102).
Através da inteligibilidade analógica e conjetural da linguagem do paradoxo e do excesso, a poesia comunica a experiência antepredicativa e transpredicativa do mistério do Ser que está a montante e a jusante do conhecimento objetivo e solucionante do discurso lógico-analítico. A sua função não é encontrar soluções para os problemas nem respostas para as perguntas, mas é revelar a radicalidade da vida que antecede esse plano categorial da ordem histórica e nele se manifesta silenciosamente. A racionalidade ou inteligibilidade poética estabelece uma relação afetiva e generosa com a realidade que proporciona a autenticidade da sua manifestação e convoca o despojamento do nosso acolhimento. O mundo deixa de ser um lugar de domínio e de exploração para se tornar num espaço de cuidado e contemplação. A vida deixa de ser uma trágica e degenerada condição, porque o mal perde a roupagem ilusória de absoluto e a morte perde a conotação apressada de aniquilação: «A poesia dá-nos o sentido profundo da nossa fragilidade e da nossa vulnerabilidade. E a aceitação disso»(MENDONÇA, 2019 a, p. 102). Tudo passa a ser compreendido como uma Graça e o coração deixa de ter espaço para ressentimentos e para a escravatura da mediocridade. O fulgor da poesia faz aumentar o nosso desejo de participar nas relações misteriosas do acontecer e proporciona um saudável convívio com a ignorância e a finitude. Aponta para o que falta, dando prioridade ao horizonte infinito e não à meta determinada. Ao arrepio das configurações idealistas do real, a poética de Tolentino Mendonça exprime o drama da realidade concreta de carência e privação, considerando que a «(…) vida ferida por contingência e escassez, dolorosamente limitada é o poço onde a manifestação de Deus se dá»(MENDONÇA, 2019 b, p. 106). A sua poesia espiritual traduz a experiência do abraço de Deus à humanidade tal como ela é, na árida caminhada histórica, não admitindo que uma ideia de vida substitua a vida real: «Mesmo quando experimentamos a vida como um vazio, o grande desafio é acolher a voz de Deus aí» (MENDONÇA, 2019 b, p. 106).
Claro que temos de perguntar que real é esse sem as ideias? Sem as ideais que centram a ação na iniciativa gnóstica e impositiva do sujeito cognoscitivo? Nesse caso sim, porque «Não és tu que trilhas a dura montanha / em busca da planta da vida / mas sim ela que se incendeia / para que de longe a avistes» (MENDONÇA, 2017, p.72). Concordamos que o realismo ingénuo deva ser substituído, não pelo idealismo, mas pelo ideo-realismo que pressupõe uma relação com a realidade que não é o resultado da pura subjetividade humana, mas cujas múltiplas significações resultam da criação hermenêutica de novos sentidos, seja pela vida lógico-científica, seja pela via analógico-poética. Concordamos que a realidade tem uma textura não geometrizável, mas que, ainda assim, não seria sem a razão. Não há sensações puras nem ideias puras, tudo se desvelando nessa comunhão ancestral anterior às categorizações e classificações intelectualistas. Para o poeta isso significará sempre o rasgar da vida no abismo de uma queda infinita, muito para além dos pequenos fracassos e tropeções ou desvios da quadra, denunciados pelas ideias, tal como nos enuncia através de uma analogia com o secretismo da estratégia militar:
O poema segue as premissas da guerrilha urbana. Jamais revela identidades e endereços. Estabelece que pontos de contacto não sejam escritos, apenas memorizados. Cancela dos seus arquivos nomes legais e ilegais e toda a espécie de informação biográfica, mapas e planos. Não permite a ninguém conhecer a globalidade dos elementos em campo (MENDONÇA, 2017, p.74).
A poesia é a linguagem do Excesso e do Mistério que penetra a Vida e que dinamiza o pensamento e as emoções. A poesia é a linguagem da multiplicidade e da diferença, da inquietação e do desassossego. A poesia não aceita a quietude das visões dogmáticas e acomodadas do real e das suas relações previsíveis, porque procura os novos sentidos e significações em que o ser se manifesta no seu ímpeto de super-abundante comunicação amorosa. O poeta, tal como tordo, tem o olhar sempre no horizonte e percorre distâncias inacabadas «sem calcular / a despesa do regresso / pois a sua festa é celebrada assim» (MENDONÇA, 2017, p.68). Por isso, a poesia também é a linguagem da fé que não satisfaz a nossa sede, mas intensifica-a e aprofunda-a: «(…) a fé ajuda-nos a ver na sede uma forma de caminho e oração» (MENDONÇA, 2019, p.107). Nesse âmbito, os poemas de José Tolentino revelam a abundância do silêncio e da privação como o verdadeiro lugar da manifestação de Deus, máxima relação pessoal de ser: «dizer-te é inclinar-me / sobre o / silêncio» (MENDONÇA, 2006, p.33). Os seus poemas «São muito mais a fratura, o espaço da falta, o tempo da ausência do que propriamente o lugar epifânico de uma presença» (MENDONÇA, 2019 a, p.109).
A poesia deste autor exprime, não o ideal de uma perfeição, mas a fraqueza da vida real assente no paradoxo de uma experiência espiritual em que a fé se fortalece na sede, resistindo e aprofundando-se nos sofrimentos, afrontas e angústias. É o drama da existência na dor das angústias e no auxílio invisível da graça que nos eleva para a alegria da luz e para a tranquilidade da planura: «A cicatriz das tuas derrotas / é o tapete que te leva /ao prado onde floresce / o jacinto azul» (MENDONÇA, 2017, p.67). A dificuldade de uma vida espiritual e poética em Deus não está na fragilidade e na vulnerabilidade, mas na rigidez da autossuficiência e do orgulho. A sede educa-nos na esperança. Ao contrário da arrogância do cientificismo e do racionalismo filosófico, fundada nas certezas da demonstração argumentativa, a arte poética traduz a insegurança dramática da vida e a sua disponibilidade para a iniciativa surpreendente do Amor:
Tinha passado toda a noite
ele mesmo se sentia perdido
diante dessa presença sem palavras
que lança trevas nos símbolos
e torna os argumentos
insustentáveis. (MENDONÇA, 2006, p.134)
Na experiência nómada da fé, traduzida pela poesia, o encanto no instante das pequenas coisas prefigura a densidade da eternidade, porque o tempo deixa de ser uma limitação do bem e do amor. A arte continua a ser a manifestação sensível da verdade, da beleza e do bem, e a arte poética que sacrifique o conteúdo ético, espiritual e cognoscitivo à forma pela forma acaba por se esvair e secar como a árvore sem a seiva das raízes. Só por si, a perfeição técnica e a inovação das formas não fazem a arte, que tem como condição provocar uma emoção estética que eleve o homem e não provocar o repúdio ou o transtorno pelo aviltamento ou violação da sua humanidade. A correlação entre a arte, a ética e a fé está bem expressa nesta abordagem. A poesia tem um carácter salvífico se houver coerência entre a palavra e a ação: «É possível o poema salvar, se num determinado contexto o poema for dito por um justo ou for lido por um justo. São os justos que salvam o mundo. Se o poema for uma forma radical de justiça, o poema salva. Se não, há de ficar como ornamento» (MENDONÇA, 2006, p.107).
A auto-realização ou humanização, que se efetiva no contexto histórico-cultural, encerra um desígnio divino, e a poesia manifesta esse plano criador de ordem espiritual que antecede a ordem ético-religiosa das diferentes culturas e civilizações. Os valores traduzem a concretização histórica desse plano transcendente ou metafísico e a poesia tem a função de construir e comunicar as vias insondáveis dessa relação. Por isso, o autor rejeita a mercantilização da arte em nome do valor irrecusável da sua experiência vital, partilhando com Rilke a ideia de que «só são poetas se disserem “Se não escrever, morro!» (MENDONÇA, 2020, p.123). A realização integral do homem no processo de se tornar aquilo que é, de acordo com o plano divino de um inefável projeto em desenvolvimento, exige a consciência da radicalidade da experiência estética que apreende a graça sobrenatural no seu movimento original de proximidade ou vizinhança e apreende o mistério do ser no estremecimento imprevisto da sua manifestação afetiva: «O amor é um acordo que nos escapa / premissas traficadas sem certeza noite fora / em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso» (MENDONÇA, 2012, p.24).
Neste sentido, embora herdeiro da forma estética de autores modernistas, neo-realistas, experimentalistas e surrealistas, como Fernando Pessoa, António Ramos Rosa e Herberto Helder, o padre e teólogo José Tolentino Mendonça pertence a uma linhagem poética de carácter metafísico em que o divino surge sob a forma de misteriosa interrogação e paradoxal presença ausente, como se evidencia em autores como Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Fernando Echevarría, Ruy Belo, Cristovam Pavia, Armando Silva Carvalho ou Daniel Faria. Não se trata de uma metafísica logicista, especulativa e abstrata, fundada na exclusividade do intelectualismo, mas de uma metafísica que apresenta o mistério do Ser como fundamento da realidade fenoménica do mundo que não se justifica a si mesma. Deus manifesta-se ou comunica-se espontaneamente nas suas criaturas e na linguagem poética que traduz essa natural vivência ou relação, antes de poder ser vislumbrado ou apontado na frieza de um qualquer argumento: «Nesse tempo / ainda era possível / encontrar Deus / pelos baldios. / Isso foi antes / de aprender a álgebra» (MENDONÇA, 2006, p.12). Desta maneira, o poeta madeirense estabelece uma correspondência entre a experiência crente e a experiência poética, considerando que as duas se fundamentam na mesma vivência silenciosa de espera e atenção que atravessa o drama da existência:
As palavras que expressam o poético são as mesmas palavras que expressam a indagação crente, a construção da experiência crente. É como se fosse uma única experiência. A experiência crente também é um exercício de atenção. Também é um tempo de espera. Tal como a poesia. O silêncio inerente à experiência poética é, penso eu, o silêncio inerente à experiência de Deus, à experiência crente. (MENDONÇA, 2019 a, p.110)
No silêncio da luz noturna o homem tem a capacidade de ver a verdadeira realidade, comungando o júbilo de as coisas serem na graça da infinitude de Deus: «(…) ver não é habitar / o espanto de as coisas serem?» (MENDONÇA, 2006, p.26). Na luz das trevas que vivifica a palavra poética, o homem acede às regiões do ser que estão para além do óbvio, em que se manifesta o espírito de Deus. A disponibilidade interior do poeta que não reduz a realidade atribulada do cosmos à sua dimensão visível é traduzida pela belíssima imagem das mãos vazias: «as mãos vazias são selvagens na sua beleza / duras mesmo se vulneráveis / são o esconderijo ideal para guardares relâmpagos / e verdades ferozmente concisas» (MENDONÇA, 2017, p.63). As mesmas coisas e os mesmos acontecimentos que preenchem a nossa vida quotidiana adquirem novos sentidos iluminados pelo amor e pela esperança de quem se entrega:
Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado
Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes
A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta
o amor é uma noite a que se chega só. (MENDONÇA, 2006, p.181)
Por isso, o autor defende que «O discurso teológico por excelência é feito pelos poetas» (MENDONÇA, 2019 a, p.107), uma vez que Deus não é passível de objetivação conceptual ou de conhecimento lógico-analítico segundo a noção cartesiana das ideias claras e distintas. O acesso a Deus pessoal que não se reduz ao mundo nem à indeterminação da vacuidade, porque que é ao mesmo tempo transcendente e imanente, só é possível pela via analógica de uma racionalidade mistérica e trans-conceptual. Essa trans-racionalidade encerra o discurso poético da metáfora e do oximoro, porque a obscura claridade de Deus não se capta na obediência aos princípios lógicos do modelo aristotélico: «Deus é cúmplice da afetividade: omnipotente e frágil; impassível e passível; transcendente e amoroso; sobrenatural e sensível» (MENDONÇA, 2019a, p.55).
Deus revela-se no silêncio das palavras, porque é Mistério. Reside no silêncio a verdadeira oração, porque por ele nos centramos em Deus e não nas nossas ideais ou limitadas representações de Deus: «prende na boca / o silêncio e mergulha com ele / até ao fundo / nisto consiste a devoção verdadeira / tudo o mais é vaidade» (MENDONÇA, 2017, p.33). O que de mais significativo conseguimos partilhar dá-se através do silêncio: o mistério de nós mesmos. O Deus rico de misericórdia parece sempre ausente nas injustiças do mundo: «(…) o drama do silêncio de Deus. A dificuldade de fazer convergir finito e infinito, graça e liberdade, provisório e definitivo, o presente e o amanhã» (MENDONÇA, 2019a, p.56). Numa afinidade com a experiência mística e com a sabedoria oriental que não optando pelos modelos especulativos ocidentais desenvolve uma arte de ser e de viver, o poeta recusa a excessiva intelectualização da fé e prefere a força simbólica das coisas simples em que se revela a força da graça: «Precisamos de cair de joelhos perante o espetáculo desabalado e divino que é a vida, por mais frágil que seja» (MENDONÇA, 2019a, p.189). Ora, é precisamente na sua obra escrita sob a inspiração de M. Bashô e de Jack Kerouac, após uma viagem ao Japão, que apresenta a sua Escola do Silêncio na forma do haiku ocidental para advertir que o silencia não significa vacuidade: «O silêncio só raramente é vazio / diz alguma coisa / diz o que não é» (MENDONÇA, 2013, p.15).
O silêncio do mistério de Deus manifesta-se no devir da solidão: «É precisamente quando estamos mais sós, quando somos nós próprios, sem subterfúgios nem evasões, que Deus se faz mais perto de nós» (MENDONÇA, 2019a, p.195). A solidão voluntária, que não implica humilhação e ausência trágica, faz parte da vida espiritual, porque se torna o habitat do encontro mais profundo connosco e com os outros, direcionando-nos no sentido da fonte divina da vida: «O que por palavras nos está oculto / no silêncio crepita / em intimidade» (MENDONÇA, 2013, p.20). A vida espiritual não é uma conquista que temos de dominar e preservar, mas é um dom a partilhar e a solidão poética educa-nos nessa generosidade. Em alternativa a uma vida possessiva de ação e resultados, uma vida generosa e desprendida feita de espera e de sonho: «Silêncio: / encontrámos na encosta / flores ainda sem nome» (MENDONÇA, 2013, p.25).
O silêncio previne o risco de um mergulho numa vida inautêntica feita de aparências e éticas provisórias e promove o caminho da santidade, que não é um ideal extraordinário atingível apenas por uma ação heroica, mas é a normalidade do bem na anónima experiência do quotidiano. Previne também a redução da espiritualidade a um bem-estar intimista e privado, sem correspondência nas ações públicas e políticas. Previne a incidência na severidade, intolerância e lamento, e promove o crescimento na gratidão, despojamento e confiança. E promove a amizade no respeito pelos limites e pelo desconhecido do outro sem qualquer reivindicação de posse, como testemunho do próprio Deus que nos visita sem constrangimentos através do que nos é próximo: «É fundamental entendermos a vida como mistério de visitação. A cada hora somos visitados, e desse reconhecimento depende a paz do nosso coração, depende o vigor da nossa esperança»(MENDONÇA, 2019a, p.18).
A amizade encerra a extraordinária forma de relação que expõe o outro sem quebrar a reserva e violar a solidão: «A amizade não só guarda o silêncio, mas ela é guardada pelo silêncio» (MENDONÇA, 2019a, p.20). Ao contrário do conhecimento dogmático que reivindica a posse da verdade e a claridade da certeza, o conhecimento filosófico da inteligibilidade poética é fundada no silêncio e na amizade, como aproximação mistérica à verdade porque só Deus possui plenamente a sabedoria. Ser sábio significa reconhecer a nossa ignorância perante a realidade infinita de possibilidades, significa compreender que somos peregrinos e a poesia traduz essa abertura e humildade: «Deus ultrapassa tudo / nada se pode dizer / A tua oração seja / a prece do silêncio/ (…) A Palavra que Deus pronuncia / é silêncio» (MENDONÇA, 2012, p.36). A poesia é o conhecimento do amor que se traduz pelo encantamento do inesperado e da descoberta do horizonte permanente: «O amor é mais uma exposição do que uma posse; é mais uma suplica de que um dado; é mais uma sede do que uma barragem; é mais uma conversa de mendigos do que um diálogo de triunfadores» (MENDONÇA, 2019a, p.23).
A sabedoria da arte poética é o excesso do amor que extravasa todas as medidas numa dádiva salvífica não compaginável com o acordo, a prudência, o calculismo e o pacto da negociação: «O desejo do amor é o escondimento» (MENDONÇA, 2019a, p.24). É um risco desmedido cujo vocabulário implica a perdição: «Amar é dar o nosso amor ao outro sem controlar aquilo que o outro pode fazer com o nosso amor» (MENDONÇA, 2019a, p.25). A poesia é a exposição da nossa vulnerabilidade que desarma o poder de quem gosta de exercer o domínio e o controlo: «De facto, Deus não colocou o homem como senhor da criação, mas como seu pastor» (MENDONÇA, 2019a, p.28). Como salienta Heidegger, o homem não é o senhor do ser, reduzindo-o ao plano dos entes e das categorias humanas, mas é o seu ouvinte, porque o Ser é mistério, ocultando-se ao mesmo tempo que se revela.
Esta mudança de paradigma da adequatio ontologista entre o pensar e o ser para a inadequação entre o pensar e o ser atravessa não apenas a reflexão filosófico-teológica do século XX, como também o sentido da sua arte poética, tal como se traduz em Leonardo Coimbra quando ele define o homem como um mendigo do ser ou em Tolentino quando radica o pensamento no silêncio do Mistério: «O silêncio tende a soterrar o pensamento / mas também dele / o pensamento vive» (MENDONÇA, 2013, p.33). É nesse sentido que o poeta procura valorizar a espiritualidade da sede e do desejo por contraposição com a espiritualidade em que tudo está estabelecido, previsto e assegurado: «A experiência do desejo não é um título de propriedade ou uma forma de posse: é antes uma condição de mendicância. O crente é um mendigo da misericórdia» (MENDONÇA, 2019a, p.162).
Estamos perante uma poética do silêncio e da ausência de Deus, no reconhecimento de que o desejo que a dinamiza é insaciável porque aspira ao que não pode ser possuído ou perfeitamente inteligido, porque é Mistério: «Os que se amam dão-se a beber não da abundância, mas da própria indigência e escassez. Amar é avizinhar o outro da minha sede, esse outro nome possível para descrever o desejo»(MENDONÇA, 2019a, p.49). Nesta tensão entre atração e distância, que perpassa a relação existencial, o desejo do outro procura desmentir a sua ausência e aproximá-lo de nós: «Na corda bamba / entre silêncio e silêncio / a vizinhança de Deus» (MENDONÇA, 2013, p.38). O máximo que se consegue é a vizinhança, porque o outro nunca é redutível ao eu, a diferença nunca se desfaz na identidade e, por isso, a linguagem hermenêutica que melhor traduz esta relação é aquela que permanece no âmbito da metáfora. O desejo permanece na alteridade do amor, traduzida pelo sentimento da saudade ou da privação, porque nunca seremos Deus: «O silêncio não é ausência ou negação / como ensinam os antigos / é privação» (MENDONÇA, 2019a, p.39).
Deus é invisível, nunca ninguém O viu, e a sua verdade está sempre em dinâmica revelação: «Temos de aceitar as representações, acolhê-las, perceber o seu significado e ultrapassá-las. Temos de escrever o poema de Deus para apagar o poema de Deus. E de apagar o poema de Deus para escrever o poema de Deus» (MENDONÇA, 2019a, p.58). O Deus de Tolentino Mendonça é um Deus que dança, que está no devir da existência e nas interrogações do nosso silêncio, fazendo da sinfonia inacabada do nosso júbilo a alegria da sua presença: «Muitas vezes Deus prefere / entrar em nossa casa / quando não estamos» (MENDONÇA, 2013, p.40). Mas a proximidade da presença de Deus que nos encoraja para uma vida bela e autêntica, seja na graça ou na fraqueza, na abundância ou na privação, não evita o sentimento de distância, porque Deus é infinitamente Outro: «É verdade que, tanto crentes como não crentes, bebemos o silêncio de Deus nas próprias mãos» (MENDONÇA, 2019a, p.60). Perante esta noção de um Deus invisível que não pode ser conhecido pela racionalidade lógico-analítica, o risco de cairmos no fideísmo pietista de Kant ou vitalista de Miguel de Unamuno é grande e essa tentação não deixa de aparecer por vezes na teopoética de Tolentino Mendonça quando, por exemplo, defende que «A mais louca pretensão cristã não está do lado das afirmações metafísicas: ela é simplesmente a fé na ressurreição do corpo» (MENDONÇA, 2019a, p.162).
Ora, nós sabemos que a maior especificidade da religião cristã é a sua apropriação das categorias filosóficas gregas numa síntese não isenta da contaminação gnóstica helenista, mas que elevou o discurso sobre a relação entre Deus e o mundo para além da configuração mítica e mágica da indiferenciação, procurando estabelecer uma inteligibilidade razoável ou analógica acerca da sua presença transcendente. É neste plano metafísico da causalidade e da participação, da presença e da manifestação, que se pode estabelecer o diálogo entre a teologia e a ciência, sem concordismos supersticiosos e sem antagonismos preconceituosos, numa relação de sábia complementaridade. Efetivamente, o maior perigo da arte poética reside no abandono da metafísica e no enclausuramento num mero jogo de palavras e significações adornadas por figuras literárias de complexo recorte, mas sem densidade ontológica e pertinência hermenêutica. A não ser que se reduza a relação com o divino à experiência apofática da mística em que silêncio e sabedoria surgem em oposição, como é enunciado no seguinte poema: «O silêncio declara-se incapaz / de interpretar / renunciando assim ao estatuto de saber» (MENDONÇA, 2013, p.35).
Não nos parece que na globalidade da sua obra seja este o entendimento do poeta. O silêncio de Deus não significa a sua absoluta obscuridade e indeterminada transcendência, mas sim o reconhecimento do seu Mistério que se traduz por uma presença fontal no mundo e por uma relação pessoal com o homem experiencial na oração. A poesia é a linguagem da oração que está a montante de qualquer expressão cultural ou religiosa e que traduz esta nova conceção da relação com Deus. No entanto, a noção kantiana de que estão condenadas ao fracasso as tentativas para provar e conhecer a existência de Deus através da razão teórica, levou a mentalidade moderna a remeter o divino para o plano da fé, entendida esta de forma errónea como irracional ou iluminação sobrenatural justaposta à razão natural. A legitimidade da sua tese na recusa dos ontologismos de autores como Espinosa e Malebranche encerra a mácula de acentuar a cisão artificial que já existia na filosofia medieval entre razão e fé. A filosofia medieval de autores como Santo Agostinho, Santo Anselmo ou São Tomás de Aquino, estabelece a distinção entre fé e razão, sobrenatural e natural, mas defende a sua conciliação e correlação. A modernidade de Descartes, Hume e Kant, para além da distinção, desenvolve uma oposição. Ora, hoje o caminho é, não apenas de superação da cisão e antagonismo, mas também da distinção estabelecida nos termos tradicionais, porque não pode haver fé que não seja também razão e não pode haver razão pura sem elementos do âmbito da crença, da afetividade ou da imaginação. A fé enquanto dom e graça do Espírito de Deus encerra uma racionalidade ou razoabilidade, sem a qual não poderia ser acolhida pelo homem, seja no sentido da configuração mítica, seja no sentido da configuração lógica ou mistérica do real. Não é possível conceber uma distinção entre teologia revelada e teologia racional, como se a primeira não fosse um produto cultural do homem que inclui a faculdade racional. Não há nenhuma experiência humana que não inclua a razão, pois esta faz parte da sua estrutura essencial. E por isso, Kant associa a fé à razão prática de ordem moral e espiritual.
Mas esta posição, como forma de legitimar a crença na existência de Deus para dar sentido ao drama da existência finita humana, não resolve a dificuldade. Associar a crença na existência de Deus ao exclusivo plano axiológico da ética, da estética e da espiritualidade não significa separá-lo da razão teórica, porque esta está presente em todas as dimensões da experiência humana. Todas as dimensões da humanidade incluem o plano da compreensão ou da inteligibilidade: também é assim na estética, na ética e na religião. Não pode haver experiência da fé sem a razão cognoscitiva, como não pode haver fé sem a emoção e sem a sensibilidade. Separar o conhecimento do amor não é uma possibilidade. Não podemos associar a distância de Deus exclusivamente ao plano da verdade e da cognoscibilidade e associar a sua proximidade exclusivamente ao plano do amor, como também reconhece Tolentino Mendonça quando recorre às noções metafísicas de infinito e de alteridade relacional para justificar esta dialética entre ausência e presença: «Mas a proximidade de Deus que experimentamos não elide, nem pode elidir, o sentimento da distância que o crente sente em relação a Deus, porque Deus é infinitamente Outro» (MENDONÇA, 2019a, p.64).
Não se pode associar a distância ao plano espistemológico do conhecimento ou da verdade (impossibilidade da metafísica) e associar a proximidade ao plano ético do amor e ao plano espiritual da fé, como fez Kant, porque a experiência humana do ser e do Ser de Deus faz-se na correlação de todas a faculdades humanas. O amor também tem um valor cognitivo e o conhecimento também tem um valor afetivo. Quer isto dizer que por vezes há uma certa contradição entre aquilo que é apresentado na poesia em oposição à metafísica e aquilo que é apresentado nos ensaios teológicos com o recurso a categorias metafísicas. Esta dissonância não é constante, mas surge como uma tónica que está em consonância com a orientação do movimento da teopoética e com a orientação estética experimentalista e surrealista dos mestres já bastante afastada da poesia metafísica do simbolismo de Teixeira de Pascoaes e do modernismo de Fernando Pessoa. Associar a santidade à ausência de interrogação ou inquietação metafísica não parece corresponder à realidade: «A verdadeira ciência da santidade / é viver / sem porquê» (MENDONÇA, 2013, p.73). Porque, tal como nos descreve Santo Agostinho nas suas Confissões, toda a intensificação da vida espiritual resulta de um grave questionamento interior que encontra em Deus o seu refúgio, não sendo o deus maniqueísta capaz de dar a mesma satisfação que dá o Deus cristão. Discernimento que é proporcionada por distintas lógicas de fé ou de crença ou por distintas teologias.
O acolhimento da graça sobrenatural dá-se na unidade heterogenia do homem sem separação de faculdades, porque a manifestação de Deus não se dá ao jeito de uma justaposição do espírito em relação à matéria ou à maneira de uma intervenção extrínseca. Em vez de falarmos de oposição ou correlação entre fé e razão, espiritualidade e teologia, devemos falar de uma razão mistérica que inclui o plano do conhecimento lógico-analítico e o plano do conhecimento analógico-conjetural, correspondendo a fé a um dom espiritual que o homem acolhe na integralidade do seu ser: pela inteligibilidade analógica e conjetural compreendemos a sua conotação inefável e indizível acerca de dimensões como a metafísica, a protologia, a sacramentologia, a liturgia ou a escatologia; pela inteligibilidade lógica, analítica e experimental, compreendemos a sua conotação fenoménica e epistemológica acerca de dimensões como a antropologia, a física, a biologia, a psicologia ou a cosmologia. O problema está em não podermos separar o conhecimento, qualquer que ele seja, da experiência sensível e, dessa maneira, não havendo uma experiência sensível de Deus não o podemos conhecer, como por vezes alude Tolentino usando a mesma lógica kantiana de associar o silêncio e a visão ao conhecimento da experiência e de associar a fé à ausência da experiência sensível: «A maior parte das vezes, experimentamos apenas o desencontro de Deus, o Seu extenso silêncio. Buscamos Deus sem O ver, acreditamos n’Ele sem o experimentar, escutamos a sua voz sem verdadeiramente O ouvir»(MENDONÇA, 2019a, p.73).
Sim, não o podemos conhecer no registo da objetividade empírica (positivismo), mas isso não significa que o não possamos conhecer num outro plano da ordem metafísica através da experiência espiritual. A experiência do homem não se resume ao plano material sensível. Se não houvesse qualquer tipo de experiência de Deus na unidade de razão, emoção, imaginação, crença, não seria possível afirmarmos a sua existência, mas se essa experiência fosse de evidência sensível e objetiva não haveria como o recusar e o ateísmo ou agnosticismo passariam a ser sinónimo de pura ignorância, tal como é ignorância afirmar que o planeta Terra não é redondo. Afirmar a existência de Deus sem qualquer experiência racional e emocional é reduzir a fé a uma crença irracional, acreditando nele como se pode acreditar num unicórnio. Esvaziar a fé da razão e do conhecimento é reduzi-la ao plano imanente da subjetividade humana, como pura criação da imaginação e da vontade, ou da natureza sensível no sentido panteísta e animista da totalidade indiferenciada. No capítulo Vida Monástica da sua obra A Papoila e o Monge, o poeta no registo da experiência mística sobre o silêncio e a indizibilidade de Deus começa por fazer uma associação tipicamente oriental do nada ao divino «Os que se assemelham a nada / assemelham-se / a Deus» (MENDONÇA, 2013, p.51) e depois estende-a ao registo monista de tudo se identificar com Deus: «Em Deus tudo é Deus / uma simples folha de erva / não é menor do que o infinito» (MENDONÇA, 2013, p.97).
Ora, estas afirmações apenas se podem compreender no contexto teísta, e não panteísta, se pressupuserem uma sólida reflexão metafísica sobre a estrutura analógica do real e o seu discurso trans-conceptual acerca da identidade que não exclui a diferença e acerca da imanência que não exclui a transcendência: «Na orla do mundo o absoluto existe / mas apenas de modo análogo / pode ser dito» (MENDONÇA, 2013, p.164). Esta diferença ontológica subjacente à noção cristã de Criação, por distinção com a noção grega de emanação degradativa da unidade divina na pluralidade existencial, é assinalada, não apenas pelo uso do conceito de «analogia», mas também através da preservação do conceito de “semelhança”: «Em Deus tudo se assemelha: a tua prece e o canto / da rã» (MENDONÇA, 2013, p.92).
Tolentino Mendonça pertence a uma escola filosófico-teológica que revaloriza a dimensão imanente da ação divina, afastando-se dos dualismos deístas tradicionais e, por isso, não podemos estranhar que a representação poética da relação com o divino se traduza pelo carácter da sua «expressão» e «manifestação» sensível no mundo: «A primavera a zumbir / com os seus olhos azuis de papoila: / novas e belas as vestes de Deus» (MENDONÇA, 2013, p.94). A dimensão natural não é uma ilusão nem é uma oposição à dimensão sobrenatural da realidade, mas é a sua manifestação existencial e sensível que não anula a diferença dialógica ou relacional: «Ver Deus em toda a parte / como se ele estivesse ali / e eu aqui» (MENDONÇA, 2013, p.78). Embora formalmente expresse muitas vezes um certo distanciamento da especulação filosófica metafísica está assim comprovado que a sua poética encerra um carácter metafísico teísta, servindo-se explicitamente da sua nomenclatura.
Mas por outro lado e simultaneamente, a poesia de Tolentino Mendonça sublinha que a razoabilidade da nossa afirmação da existência de Deus não resulta apenas da reflexão analógica e conjetural metafísica acerca das relações de causalidade, participação, criação e manifestação entre a realidade infinita do Criador e a realidade contingente e finita das criaturas, nem resulta apenas das experiências ética e espiritual como participações na alegria, na justiça, no amor e na esperança de Deus, mas resulta também da experiência estética ou sensível da existência mundana que se constitui como comunicação insondável do próprio Deus, quer na vulnerabilidade e na carência da incompletude como sentimento de dependência e de procura de sentido, quer na harmonia abundante da vida e da beleza: «Contra o mundo domesticado dos discursos, a beleza é a inevitabilidade de uma experiência» (MENDONÇA, 2019a, p.31).
Nas experiências do amor, da beleza e do gosto, fazemos a experiência sensível e afetiva de Deus e a poesia é uma das linguagens estéticas que nós temos para dizer as expressões dessa relação. Deus é experienciável de forma sensível no simples facto de existirmos e de vivermos, tendo consciência disso, e, por isso, na unidade da sensibilidade e do entendimento: «Acredito num Deus imiscuído, engajado, detetável até pelo impreciso radar dos sentidos (…)» (MENDONÇA, 2019a, p.59). Compreendemos que tudo é manifestação de Deus, sem ceder ao panteísmo, pela compreensão analógica e paradoxal dessa presença manifestativa ou dessa contínua ação criadora que é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente, identidade e diferença. Nesse sentido, somos convidados a reformular a experiência de Deus dizendo que «Deus é o caminho (…) Deus é a água que corre, Deus é o rosto da criança, Deus é a intacta porção da luz, Deus é o dia que rasga a noite» (MENDONÇA, 2019a, p.174), mas Deus também é Mistério que sustenta o nosso ser cuja experiência de escuta e procura não encontra resposta e satisfação na imanência (MENDONÇA, 2020, p.52).
É na unidade da compreensão metafísica e científica, filosófica e teológica, estética e ética, mística e religiosa, sensível e espiritual, que o mistério da relação do homem com Deus é depurado dos desvios irracionalistas da superstição, do mito, da magia, do fideísmo, do ontologismo e do panteísmo, e é depurado dos desvios racionalistas do deísmo, do agnosticismo, do maniqueísmo, do dualismo, do secularismo, do cientificismo e do positivismo. Com frequência, a arte poética foi colocada ao serviço da cisão fideísta e pietista da modernidade, constituindo-se como a linguagem da irracionalidade religiosa e espiritual contra a linguagem da racionalidade filosófica e teológica. Ora, acontece que a poesia, nas suas dimensões analógica, conjetural, imaginal, metafórica, deve ser entendida como o discurso trans-racional ou trans-conceptual das ordens atemática e transpredicativa da experiência radical do Ser ou do Mistério de Deus, estabelecendo a síntese mistérica e simbólica superadora da oposição entre mito e logos. Compreendemos que a nossa experiência de Deus não se situa no plano animista das religiões antigas da natureza, pela compreensão da relação analógica de dependência e autonomia entre o Criador e as criaturas e pela compreensão da relação espiritual. A experiência de Deus é da ordem do afeto na morada interior do homem: «As grandes experiências humanas estão do lado do inefável, do intraduzível, do sem-nome, do silêncio» (MENDONÇA, 2019a, p.119).
No pressuposto da cisão kantiana, iniciada em Locke e D. Hume, alguns movimentos da nova teologia que procuram um discurso renovado sobre Deus em diálogo com a cultura e em rutura com o auto-centramento das perspetivas escolásticas e dogmáticas, estabelecem uma oposição entre teopoética e teologia metafísico-hermenêutica, contrapondo imaginação e conceptualização, fé e razão, religião e ciência, e caindo numa certa irracionalidade fideísta. Ora, essa não é a solução para se resolverem os problemas de uma teologia substancialista ainda prisioneira da contaminação gnóstica e da imagética mítica, que faz da liturgia um ritual mágico ininteligível para o homem científico e técnico de hoje. O mundo está criado em proporção com o nosso conhecimento, está comensurado connosco porque encerra uma racionalidade resultante do desígnio criador. O nosso cérebro está programado para compreender a natureza, embora a cada compreensão outros problemas surjam numa complexidade, beleza e diferença inimagináveis, remetendo para a infinitude da bondade de Deus. O mundo é bom e compreensível, permitindo o desenvolvimento científico e a oposição ao ceticismo, porque até a sua dimensão material inerte, biológica e vulnerável expressa a beleza e a bondade de Deus: «Só a vulnerabilidade nos eleva à altura do infinito à maneira de uma dança, onde a gravidade é vencida pela graça» (MENDONÇA, 2019a, p.211).
Em vez de uma distinção antagónica, seria útil estabelecermos uma complementaridade entre a teopoética e a teologia metafísica a partir do pressuposto epistemológico de uma inteligibilidade trans-conceptual e analógica e de um discurso transpredicativo metafórico que supera o dualismo da escolástica decadente e do gnosticismo e que recupera a dignidade da reflexão sobre a imanência de Deus, tal como acontece com o panenteísmo de Sallie Mcfague, com a correlação entre transcendência e imanência de Jürgen Moltmann, ou com transcendência imanente e imanência transcendente de Béla Weissmahr, superando a visão maniqueísta da coeternidade entre o inferno e paraíso negada por autores como Karl Rahner. O poeta socorre-se das dialéticas entre ausência e presença, silêncio e voz, distância e proximidade para caracterizar a paradoxal relação de Deus com o mundo e com o homem: «Sem a proximidade primordial nem seriamos gerados. Mas também sem a separação e a distinção progressiva a nossa existência não teria lugar» (MENDONÇA, 2020, p.40).
A arte tem a capacidade de provocar uma emoção positiva sobre a vida e sobre o mundo. Na exuberância da emoção estética aprendemos a agir sem a contenção do medo e sem a travagem do cálculo. Controlamos a suspeita da dúvida e afastamos a obsessiva desconfiança de que a realidade é uma ilusão dos sentidos. Aprendemos a arriscar no tempo e a usufruir do espaço, numa confiança ilimitada no dom da vida e nas formas da existência: «Há uma verdade na beleza do mundo que somos chamados a hospedar» (MENDONÇA, 2020, p.68).
A arte pode constituir-se como uma prevenção contra o pessimismo gnóstico dos dualismos maniqueístas que estabelecem a contraposição entre o espírito e a matéria, a alma e o corpo, o sobrenatural e o natural, o divino e o mundano. A inteligibilidade da arte está menos contaminada pelo ideário moralista da culpa e pela metafísica da cisão que vê na temporalidade uma degradação ou degeneração da perfeição absoluta. A arte poética tem a capacidade de vislumbrar o Deus vulnerável e mais próximo à relação, o Deus do silêncio que se esvazia para acolher a alteridade na abundância do seu Amor. A arte valoriza a relação emocional com Deus, que no contexto grego foi negada, porque o divino estava reduzido ao plano inteligível da imutabilidade por contraposição com a temporalidade associada ao precário e ao mal. A forma material da realidade não é uma degradação de Deus nem uma derivação de um princípio mau. Toda a realidade sensível exprime a beleza e a bondade de Deus. O poeta adverte para a necessidade de recuperarmos a experiência originária de Deus que ama a sua criação, manifestando-se nela, redimindo-a e plenificando-a. Por isso, o poeta lamenta que ainda estejamos presos a este intelectualismo e posiciona-se na perspetiva contemporânea existencialista: «Preocupamo-nos mais com a credibilidade racional da experiência da fé do que com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva. Acudimos mais à razão que ao sentimento (…) Nós intelectualizamos demasiado a fé» (MENDONÇA, 2020, pp. 188-190).
A arte promove uma atitude contemplativa num olhar para além de nós que excede a cerca das nossas ocupações imediatas. Permite-nos superar o âmbito da imposição e conquista intelectiva e técnica para acolher o que surge como inexplicável dom. Conduz-nos a transmutar a voragem impiedosa, consumista e dispersiva do chrónos no tempo vagaroso, gratuito e oportuno do kairós. Liberta-nos da visão quantitativa e vertiginosa do sem tempo para uma visão qualitativa e graciosa do tempo para. Pela arte poética não nos deixaremos devorar ou engolir por Cronos na correria ofegante dos dias e na ilusão das convenções economicistas e cientificistas. A arte poética ajuda-nos a não adiar a vida para uma ocasião que nunca se proporciona, centrando-nos na relação essencial de admiração, exultação e saudação.
A arte seduz-nos para além de uma vida de convicções e práticas e educa-nos na atenção à beleza das coisas simples, como a frescura de uma aragem numa tarde quente, ou a cor forte de uma buganvília numa parede de cal. A experiência poética educa-nos na unidade do ser e da beleza que nos atrai para fecundar a esterilidade da racionalidade predicativa fora de qualquer código, artificio ou método, e estabelecer a vida que nos pertence: «A beleza é uma metafísica concreta, uma teologia visual, um ponto de união entre o mundo invisível e o mundo visível, encarnação do espírito, forma sensível daquilo que é suprassensível» (MENDONÇA, 2019a, p.31).
Através do olhar poético que vê a natureza como uma criação e manifestação de Deus que está destinada à plenificação da glória celestial, podemos vencer a exploração selvagem dos recursos do mundo e voltar a reconhecer o aroma das flores. Julgo que a vida poética é uma vida frugal centrada no desejo de ser e de viver livre do cárcere do desnecessário. O regresso à natureza exige esse despojamento e com ele regressamos aos sentidos: «Deus vem ao nosso encontro pelo mais quotidiano, mais banal e próximo dos portais: os cinco sentidos. Eles são grandes entradas e saídas da nossa humanidade vivida» (MENDONÇA, 2019a, p.179). Mas a presença de Deus não se traduz por um providencialismo fantasioso e mágico que nos desresponsabiliza, porque a criação desenvolve-se com a nossa colaboração.
Por isso é necessário purificar as representações e imagens de Deus que muitas vezes não passam da projeção das inseguranças e medos da humanidade, vivendo a gratuidade relacional e amiga da sua presença, sem a necessidade de sacrifícios ou o medo de punições, e sem a expectativa de recompensas: «(…) persistimos numa imagem de Deus que exige de nós sacrifícios, quando o Deus de Jesus Cristo quer a vida justa, a vida plena, a vida levada à sua alegria»(MENDONÇA, 2019a, p.61). Tolentino Mendonça é uma das vozes culturais mais reconhecidas do Cristiniano contemporâneo que recusa a visão gnóstica, maniqueísta e legalista romana de um Deus justiceiro que centra a sua ação na contabilização das faltas e boas ações do passado para condenar ou salvar eternamente no futuro, e centra-se na relação de amor que alimenta o presente de cada um.
Esta mudança de paradigma centra-se numa nova abordagem ao texto revelado pelo abandono da exclusividade da hermenêutica histórico-crítica e pela adoção de uma abordagem narrativa, no reconhecimento de que a personagem de Jesus não nos é apresentada de forma linear e acabada, mas em estado de construção. Através da exegese narrativa, em diálogo com autores como Greimas, Paul Ricoeur, Metz ou Alonso Schökel, o poeta conclui que «(…) a verdade bíblica é solidária com o seu meio expressivo, já que fé e linguagem intrinsecamente se reclamam» (MENDONÇA, 2004, p.20). Recuperando o património do raconto, arte que serviu a judeus e cristãos para expressarem a fé bíblica, a narratividade é identificada como a forma literária do kérygma que explicita um sentido teológico.
Não é possível aceder à verdade da fé cristã sem reconhecer a sua profunda estrutura metafórica ou narrativa. Só dessa maneira é possível superar as posições historicistas, dogmáticas ou espiritualistas que submetem a verdade do sentido bíblico a um subjetivismo devoto de cariz mítico. O reconhecimento das formas poéticas de uma narrativa bíblica que inclui o narrador que conta a história, os personagens, a intriga, o tempo e o espaço, permite superar dificuldades aparentemente irresolúveis que os concordismos cientificistas e os dogmatismos historicistas procuraram resolver de forma extrínseca. O texto deixa de estar aprisionado ao seu contexto original porque encerra uma dinâmica autónoma que manifesta ao leitor uma grande potencialidade de significados e uma pluralidade de leituras. A revelação bíblica consiste na substituição do tempo cronológico pelo tempo kairológico da salvação, o qual se comunica de forma poética e parabólica em torno de noções centrais como hospitalidade, perdão, silêncio, e amor. Ora, estas noções bíblicas presentes no episódio de Lc 7, 36-50 ecoam em toda a poética de Tolentino de Mendonça como faróis que orientam o leitor na sua aproximação à significação do texto:
Através da terra o amor
torna-nos estranhos à terra
liga-nos a uma divina linhagem
com seu tormento inapagável
suas velocidades enormes
O amor vive na ponta dos cabelos
O amor, ditam os frios de coração, é ruinoso
qualquer momento em chamas
denunciará a imprecisa inquietação que nos toma
Os inocentes que se amam dizem
teu corpo está a nevar
tua alma é uma flor
um prado tranquilo sua noite
Os inocentes que se amam
por seu tormento elevam-se
como plumas
num chapéu de passeio. (MENDONÇA, 2006, p.195).
A consequência mais radical e fascinante desta abordagem narrativa é a valorização do evangelho da misericórdia, que o poeta diz ainda estar por descobrir numa cultura gnóstica e legalista que se habituou a cultivar a imagem de um Deus justiceiro, intransigente e castigador. Em alternativa o poeta salienta que a justiça de Deus não é punitiva, mas iluminada pela misericórdia que consiste no reencontro, na arte de curar, na experiência do perdão e no excesso do amor: «Crer em Deus é, portanto, crer na misericórdia» (MENDONÇA, 2019b, p.136).
No horizonte da parábola do filho pródigo ou do pai misericordioso, é verdade que Deus pai respeita a liberdade do filho na sua opção pela separação, mas também é verdade que pelo seu excesso de misericórdia ou compaixão, acolhe-o e salva-o reintroduzindo-o na intimidade da sua casa, mesmo sem merecer. Recebe-o com um banquete, numa analogia ao banquete do paraíso celestial. Incapaz de regressar apenas pelos seus pés, Deus antecipa-se e pela ação da graça transporta-o ao colo do seu amor: «A misericórdia é isso. Não é esperar que o outro faça o caminho: é antecipar-se e carregá-lo aos ombros como a outra parábola do bom pastor nos ensina (Lucas 15:4-7), aceitando as suas feridas, as suas vulnerabilidades e reintroduzindo-o na esperança, sinónimo da festa» (MENDONÇA, 2019b, p.133). Embora saiba que o filho procedeu de forma errada, abraça-o e cobre esse mal redimindo-o ou transformando-o com o seu amor. Perante a indignação do irmão leal e justo, o pai diz «tínhamos de fazer uma festa», para nos fazer compreender que há uma obrigação que nasce da esperança e do desejo de relançar a vida. Por compaixão e numa decisão de incondicional amor, Deus redime a nossa vulnerabilidade e não deixa ninguém de fora, mesmo que isso implique ir ao seu encontro, obrigando-o a regressar. É a imagem mais adequada para explicar a redenção universal em que por infinita misericórdia Deus todas as criaturas serão transfiguradas na abundância e excesso do seu amor, tornando-se descabido admitir a condenação eterna. Mesmo na eventual resistência de algum filho, o pai sabe o que é melhor e no esplendor da sua irrecusável presença atrai a si os corações mais endurecidos, conduzindo-os à conversão. Na condição existencial da vida terrena essa resistência pode não ser totalmente vencida, mas no além morte Deus será tudo em todos e todos os seres serão n’Ele glorificados.
Mas o pai misericordioso não se deixa capturar pelo juízo. Ele vê no espelho da misericórdia que o filho regressa como quem vem de uma guerra, todo estilhaçado, maltratado e ferido. Ora, se não há excesso de amor que ajude a curar as feridas, que dê um novo horizonte, que seja uma alavanca não há solução. O filho não poderia entrar em casa pelos seus pés. Ele precisava de ser levado ao colo pelo amor do pai. A misericórdia é isso. (MENDONÇA, 2019b, p.133)
A misericórdia tem como alcance último a verdade da vida imortal da pessoa, a qual é esperada na existência terrena de acordo com a promessa de Deus. A poética da esperança é específica do teísmo cristão, constituindo com a fé e a caridade o âmago da mensagem paulina aos Coríntios (1.ª Coríntios 13, 13). Concebidos como dons da Graça de Cristo, pela fé o homem adere livremente a Deus e às suas verdades reveladas, pelo amor constrói a ordem social justa e boa com o objetivo da perfeição e da felicidade, pela esperança aguarda a plenificação na vida eterna depois da morte terrena. Estas três virtudes teologais resumem a doutrina do teísmo cristão e constituem as estruturas invisíveis da obra poética de Tolentino Mendonça, tal como se pode comprovar pela leitura do seu texto Esperar contra toda a esperança, escrito em diálogo com a encíclica Spe Salvi de Bento XVI e com as teologias de Dietrich Bonheffer, Françoise Mies, Eberhard Bons e Jürgen Moltmann.
No seu entender, a esperança não pode ignorar os absurdos do drama histórico pelo que terá de se sujeitar à prova da desesperança traduzido por São Paulo com a expressão «esperar contra toda a esperança» (Rm 4, 18). Não a esperança imediata e utilitarista, mas a esperança profunda, humilde, silenciosa e crucificada que dá sentido à vida, garantindo ao crente a infinita possibilidade de um destino glorioso sem sofrimento e sem morte. Esta esperança em Deus remete, ao mesmo tempo, para o presente no sentido de preservar e suportar a vida e para o futuro no sentido de um horizonte transcendente meta-histórico. Ou seja, remete para a verdade de uma salvação que já está em curso no quotidiano do dia-a-dia e para a verdade da salvação futura no cumprimento escatológico da história: «Os cristãos vivem no tempo. Eles são membros de uma comunidade escatológica que se configura como uma realidade futura já iniciada, mas que aguarda ainda a sua consumação final e é, por isso, inseparável do presente histórico» (MENDONÇA, 2015, p.16).
Este presente de questionação e tribulação põe à prova a esperança, que não se constitui como uma exaltação imaginária ou ficcional que nos subtrai ao devir histórico, mas como algo que se exercita na paciência e na resistência ao mal e ao absurdo. Enquanto seres inacabados e incompletos temos na esperança a graça espiritual que nos remete para possibilidades desconhecidas: «A ação do Espírito Santo é uma prova de que uma nova era já começou e que a sua consumação final não tardará. Os gemidos e a fadiga são um indício eloquente de que a condição presente da criação se resolverá num estádio glorioso, que incluirá a redenção do cosmos» (MENDONÇA, 2015, p.22). A redenção não se resume à alma, no sentido dualista e gnóstico do pensamento grego, ou à carne, no sentido fenomenológico da subjetivada afetiva de Michel Henry, mas estende-se ao homem na sua totalidade pessoal de soma, psique e pneuma e estende-se a toda a Criação, naquilo que pode ser denominado por uma redenção universal e integral.
Pela cumplicidade da vida contemplativa, a esperança exprime-se na humildade e na magnanimidade, na doçura e na benevolência, na paz e na serenidade, surgindo inseparável da alegria, da dor e da graça. Por ela vivemos na tensão e dinamismo do presente a prefiguração da vida futura. A esperança conduz-nos para além do plano reduzido das nossas evidências e visões parcelares e num movimento de expansão antecipa a plena consumação do homem e do mundo na vida gloriosa do amor total de Deus. Em diálogo com o filósofo Sören Kierkegaard, o poeta caracteriza a esperança como um viver o drama da vulnerabilidade e da incompreensibilidade do desígnio da criação na respiração longa e distendida da ininterrupta promessa de Deus(MENDONÇA, 2015, p.37)
Através do seu poema Escatologia traduz o modo como podemos conceber essa vida futura e definitiva de excesso e infinita misericórdia, que já é a vida presente:
E, por fim, Deus regressa
carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder
Eis que Deus sobe a escada íngreme
mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente
Qual de nós dois é a sombra do outro?
Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore (MENDONÇA, 2012, p.51).
O cardeal José Tolentino Mendonça é um dos mais ilustres representantes da cultura lusófona no âmbito da relação entre espiritualidade e metafisica, não apenas pela qualidade da sua obra de ensaísta, poeta e hermeneuta, mas também pela capacidade de promover o diálogo entre a teologia e a literatura, a religião e a cultura, tal como viria a ser reconhecido pelo Papa Francisco. Promotor de uma nova forma de fazer teologia no CITER - Centro de Investigação de Teologia e Estudos de Religião da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, o poeta desenvolve uma profunda cumplicidade entre a arte literária e a reflexão teológico-filosófica no pressuposto de que devemos construir um entrecruzamento entre o tempo da graça e o tempo da calamidade, dando lugar ao inesperado e ao diverso, hospedando a diferença e a surpresa na esperança de que o futuro trará a plenitude do Amor (MENDONÇA, 2020, p.115). A filosofia e a teologia apresentam-se como atividades criadoras do máximo sentido e através da literatura manifestam a sua linguagem natural de carácter metafórico num caldeamento espiritual que não se aprisiona nas repetições e cálculos, mas que se abre ao inesperado no respeito pelas diferenças (GONÇALVES, 2011, p. 694)
A partir de uma visão dinâmica, flexível e aberta da realidade, o poeta religioso considera que o homem vive em permanente trânsito podendo encontrar no futuro o sentido para os absurdos do drama presente. O autor tem uma missão particularmente importante nessa perspetivação, comunicando através da palavra ainda não dita que todos somos infinitamente amados por Deus e que todos podemos ser protagonistas da beleza da escuta, do cuidado e da compaixão. A poesia consiste numa navegação interior que não se conforma com os limites da linguagem conceptual e das ideias de uma época e abre as mãos ao mistério misericordioso do Infinito, seduzindo o homem para a beleza divina (VILLAS BOAS, 2021, p. 19).
A tentação para o irracionalismo fideísta é travada por uma espiritualidade bem consolidada no conhecimento vivencial da tradição teológica e da hermenêutica bíblica que o Cristianismo desenvolveu em diálogo constitutivo com a filosofia e a ciência. Nesse sentido, a sua poesia nunca deixou de ser metafísica, embora pelos caminhos renovados da experiência fenomenológico-hermenêutica que, no horizonte relacional da radicalidade histórica, conduzem à vivência de uma transcendência imanente apenas comunicada pela linguagem analógico-metafórica do paradoxo e do excesso.
Deus habita hoje nas páginas de poesia e no imaginário dos seus autores também sob a manifestação indizível de silenciosa ausência (TEIXEIRA, 2017, p. 19), como se uma presença arrebatadora dispensasse a necessidade do nome, estilhaçando os limites do conceito e do rito. Mas o facto de serem transbordados não significa que sejam aniquilados, porque a sua significação vai mediando a presença do Mistério nas circunstâncias da História. A ausência explícita do semantema na poesia espiritual de autores como Tolentino Mendonça não traduz a ausência de Deus de um mundo secular, mas significa o reconhecimento de uma Presença maior que não está presa ao templo sagrado ou ao formulário mágico, mas arrebata todos os lugares do Cosmos e da experiência humana afetiva e intelectiva sob a forma de Esperança.
Os novos conceitos para racionalizarem a experiência atual da ininteligibilidade de Deus são uma exigência de autenticidade. Deus não pode ser possuído e delimitado em sistemas filosóficos e teológicos, mas pode ser interiorizado e amado por meio de palavras e gestos de significação filosófico-teológica mistérica. A presença real de Deus não está confinada a um espaço objetivo e cousificado pelos limites mágicos de madeiras nobres e metais preciosos. O Deus de Tolentino está na liberdade infinita da metáfora que é a vida desconcertante do homem despojada do auxílio de Deus para as tarefas do mundo. É nesta ausência explícita que se evidencia a verdade da sua Presença, intuída no pressentimento de quem se sente existir quando a face é tocada por uma brisa suave.
A poesia que hoje revela este Deus também é teológica e filosófica, mas a racionalidade desta significação teológico-filosófica é mistérico-metafórica e não puramente lógico-analítica. A racionalidade poética desta experiência religiosa trans-conceptual revela-nos um Deus que nos acolhe e liberta no mais profundo abismo de nós mesmos de forma absolutamente gratuita.
Referências
ANGÉLICO, José Pedro. In illo tempore. Sobre a (im)possibilidade de uma teopoética. Porto: Officium Lectionis. 2021.
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