Arlene Fernandes
Doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz (UFJF). Contato: fernandes.arlene@hotmail.com
Resumo: O artigo busca analisar as críticas de Dostoiévski às ideologias ocidentalistas e eslavófilas, bem como em que sentido essa concepção é elaborada enquanto uma crítica da modernidade, porém nos termos de um discurso moderno. O romancista russo foi condenado por conspiração revolucionária contra o tzar e a experiência do cárcere deixou marcas profundas em sua trajetória literária. Dostoiévski ancorou sua literatura em um vocabulário religioso adquirido nesse contato com os camponeses russos, enquanto esteve preso. A interpretação do autor acerca do cristianismo do povo russo será determinante na composição de suas obras futuras e redefinirá suas posições políticas, filosóficas, religiosas e artísticas. Partindo então da influência do Pótchvennitchestvo (movimento em defesa do solo), enquanto única alternativa capaz de articular uma oposição ao eslavofilismo e ocidentalismo, o romancista anuncia sua defesa do cristianismo do povo camponês russo. Portanto, o movimento em defesa do solo se revela como um dos aspectos mais importantes para a compreensão da relação entre política, filosofia, religião e arte na obra de Dostoiévski.
Palavras-chave: Dostoiévski; Modernidade; Cristianismo; Ocidentalismo; Eslavofilismo.
Abstract: This work seeks to analyze the Dostoevsky’s criticism of slavophiles and westernists ideologies, and how that critical conception is designed as a critique of modernity, but formulated in the terms of a modern discourse. The Russian novelist was convicted for taking part in a revolutionary conspiracy against the czar, and this experience as a prisoner left deep marks in his literary trajectory. Dostoevsky anchored his literary production in a religious vocabulary aquired through the contact with the Russian peasents while imprisoned. Thus, the writer’s interpreation regarding the Christianity of the Russian people will be vital to the composition of his future works and will redefine his political, philosophical, religious and artistic positions. Starting from the influence of the Pochvennichestvo (the native soil movement), considering it the only alternative able to articulate an oposition to Slavophilism and Westernism, the novelist will announce his defense of the Christianity of the Russian peasant people. Therefore, the native soil movement is one of the most important aspects for understanding the influence between politics, philosophy, religion and art in the Dostoevsky's work.
Keywords: Dostoevsky; Modernity; Christianism; Westernism; Slavophilism.
A Rússia do século XIX viu as propostas de desenvolvimento civilizacional europeias entrando em seu contexto social e se fundindo com suas tradições. Isso se deu em decorrência do grande aporte de autores como, por exemplo, Nikolái Tchernichévski e Nikolái Dobroliúbov, que viam na razão e na ciência as possibilidades de se construir uma sociedade perfeita (FRANK, 2002, p. 430). Foi nesse contexto que o posicionamento crítico de Dostoiévski em relação às concepções modernas que determinam as experiências humanas se mostrou revelador. A experiência pessoal no cárcere, associada às percepções sociais, fariam com que o autor percebesse algumas das mais severas incoerências modernas e anunciasse seu destino trágico.
Para ir contra essa corrente de pensamento e defender as particularidades de sua nação, Dostoiévski surge como um crítico desse processo de assimilação dos valores europeus pela sociedade russa. Sob essa perspectiva, ele se opõe, no início de sua obra madura, ao racionalismo e ao romantismo, e defende uma retomada dos valores tradicionalmente cristãos do povo russo. O período histórico da modernidade, que submeteu a sociedade a um processo de dessacralização, fez crer que a instância religiosa não resistiria ao domínio dos projetos científicos. Algumas correntes de pensamento, porém, denunciaram que o projeto de um mundo, ancorado na lógica das propostas modernas, não se sustentaria. E na Rússia do século XIX, de fato, não se sustentou. A sociedade russa desse contexto experimentou as consequências da cisão do pensamento social, dividido entre aqueles que defendiam soluções racionalistas aos problemas políticos e aqueles que, ao buscar manter os valores tradicionais, entendiam que se devia construir um percurso próprio para os avanços de sua nação. Política, filosofia, religião e arte foram pensadas pela intelectualidade russa através de um processo conflituoso, entre tradição e modernização, que durou séculos. A obra de Dostoiévski é o resultado dessa reflexão sobre um processo histórico que colocou em discussão diferentes visões de mundo e formas de interpretar a cultura.
O processo de ocidentalização do modo de vida russo começou, de forma concreta na realidade do povo, no século XVIII, por iniciativa do tzar Pedro, o Grande, que buscou promover um processo de secularização dos sistemas sociais e políticos inspirado pela ideia de modernização segundo os parâmetros europeus. Esse processo de ocidentalização foi efetivado por iniciativa do tzar, mas a influência do pensamento europeu, que culminou nessas ideias reformadoras, já vinha sendo assimilada por parte dos intelectuais russos desde o início do século XVII.
O encontro entre modernização ocidental e tradição russa foi, inevitavelmente, a origem dos conflitos que dividiram a intelectualidade russa em dois principais campos de debate. Essa cisão foi a gênese de muitos dos conceitos que, embora por vezes não recebam merecida atenção entre os estudiosos, esclarecem muitas das confusões interpretativas feitas na leitura dos textos ficcionais. Entre os séculos XVII e XIX, a Rússia foi governada pelas mãos de variados tzares e oscilava entre momentos de abertura ao estrangeiro ou de retorno às tradições.
O povo viveu sob essa conturbação sociopolítica por volta de três séculos. O resultado disso foi uma cisão no pensamento russo. Política, filosofia, religião e arte passaram a ser interpretadas segundo duas vertentes de compreensão que defendiam caminhos opostos para o desenvolvimento do país. A intelectualidade foi então dividida entre ocidentalistas e eslavófilos. Por um lado, os ocidentalistas defendiam a manutenção do já iniciado processo de secularização, pois entendiam que a sociedade russa deveria ser ancorada sobre alicerces europeus, copiando os modelos de desenvolvimento já experimentados por aqueles países. Por outro lado, os eslavófilos entendiam que a sociedade russa era uma civilização com características únicas e que, por isso, a história da tradição e sua cultura religiosa deveriam ser respeitadas e preservadas.
Dostoiévski defenderá que essa discussão entre ocidentalistas e eslavófilos era inútil. Ele entendia que o exclusivismo, de ambos os lados, culminaria em uma falta de fundamento, o que faria com que essas teorias não fossem mais respeitadas por aqueles que realmente estivessem dispostos a causar alguma mudança na sociedade. Para o romancista, os ocidentalistas incorriam no erro quando buscavam submeter sua cultura às teorias europeias, que já vinham mostrando suas limitações, enquanto os eslavófilos pecavam por negar a contribuição de qualquer avanço da modernidade. Dostoiévski, portanto, mais que se opondo aos valores modernos, estava falando segundo uma lógica interna própria da modernidade.
A afirmação de Dostoiévski, acerca do conflito entre ocidentalistas e eslavófilos, era o reflexo de uma tentativa de mediar as conturbadas discussões entre as posições mais extremas debatidas entre os intelectuais. A visão do romancista se corresponderá com uma terceira via de interpretação, que pretendia uma alternativa mais realista para os avanços da sociedade. Essa terceira via será traduzida aqui como movimento em defesa do solo. Esse movimento propunha uma articulação entre as contribuições que as teorias estrangeiras podiam fornecer sem, contudo, abdicar das particulares características da nação russa, preservando especialmente os valores do povo.
Nas palavras de Angelo Segrillo, a Rússia viveu uma espécie de pêndulo, que ora tendia aos ideais europeus, ora às ideias tradicionalmente cristãs do povo (SEGRILO, 2012, p. 141). O embate entre modernizadores e defensores das instituições tradicionais já estava posto desde o século XVII, mas a determinação teórica que dividiu ocidentalistas e eslavófilos ganhou contornos mais definidos no século XIX. O sentimento de insatisfação, que começou com uma oposição em relação às imposições autoritárias do regime tzarista, associado às influências do diálogo com as teorias europeias, alimentaram a já então estabelecida divergência entre ocidentalistas e eslavófilos.
As declarações de Piótr Chaadáev seriam o ponto de partida para colocar essas ideias contrárias em um campo de batalha. Ele escreveu um texto criticando a realidade cultural e os costumes de seu país, o qual a leitura nos faz compreender:
Um dos traços mais deploráveis da nossa estranha civilização é que ainda estamos descobrindo verdades que são comuns mesmo entre povos muito menos avançados do que nós. Isso porque nunca nos movemos em sintonia com os outros povos. Nós não somos parte de nenhuma das grandes famílias da raça humana; não somos nem do Ocidente nem do Oriente, e não temos as tradições de nenhum dos dois. Ficamos, por assim dizer, fora do tempo, a educação universal da humanidade não nos tocou. [...] Nossas lembranças não voltam mais do que ontem; somos, por assim dizer, estranhos para nós mesmos. Nós nos movemos através do tempo de uma maneira tão singular que, à medida que avançamos, o passado se perde para sempre. Isso é apenas uma consequência natural de uma cultura que consiste inteiramente em importações e imitações. Entre nós não há desenvolvimento interno, nenhum progresso natural; novas ideias varrem o velho, porque não são derivadas do velho, mas caem sobre nós de quem sabe onde. Nós absorvemos todas as nossas ideias prontas e, portanto, o traço indelével deixado na mente por um movimento progressivo de ideias, que lhe dá força, não molda nosso intelecto. Nós crescemos, mas não amadurecemos; nós nos movemos, mas ao longo de um caminho torto, isto é, um caminho que não leva ao objetivo desejado. Somos como crianças que não foram ensinadas a pensar por si mesmas: quando se tornam adultos, elas não têm nada de si mesmas – todo o seu conhecimento está na superfície de seu ser, sua alma não está dentro delas. Essa é precisamente a nossa situação. (CHAADAEV, 1966, p. 92-93).[1]
As afirmações desse texto, publicado em 1836, foram interpretadas, por alguns, como um diagnóstico preciso do contexto de então e, por outros, como uma afronta ao tzarismo. Wayne Dowler, ao interpretar esse momento histórico, afirmou que a influência do pensamento europeu sobre o russo é extremamente complexa, sendo difícil especificar o impacto dessa assimilação com alguma segurança. Os russos foram muito afetados pelo pensamento alemão, com sua visão idealista e relativista da história e sua abordagem orgânica da nação (DOWLER, 1982, p. 20). A mentalidade russa, liberal ou conservadora, nunca foi reticente em absorver teorias estrangeiras, mesmo que compostas por seus opositores ideológicos. Foi sob essa perspectiva que, pensando a partir de seu contexto, Chaadáev afirmou que a abertura às ideias ocidentais promovidas por Pedro, o Grande, não eram estranhas ao povo, mas profundamente nacionais e representavam o resultado lógico do avanço cultural russo para a humanidade (DOWLER, 1982, p. 24-25). O processo de transformação do pensamento de uma nação e repressão dos seus aspectos tradicionais, tido como possível pelo tzar, seria árduo e, no mesmo texto já citado, Chaadáev conclui:
Os povos, como indivíduos, são seres morais. A educação dos povos leva séculos, assim como a das pessoas leva anos. De certa forma, poderíamos dizer que somos uma exceção entre os povos. Somos uma daquelas nações que não parecem ser parte integrante da raça humana, mas existem apenas para ensinar alguma grande lição ao mundo. (CHAADAEV, 1966, p. 93).[2]
A fim de superar os desafios apontados por Chaadáev, os ocidentalistas enfatizavam as virtudes progressistas e defendiam uma solução racionalista para os problemas da sua realidade histórico-social. Os eslavófilos, porém, não estavam dispostos a concordar, pois entendiam que os europeus viviam um materialismo individualista em decadência e, contra isso, buscaram promover os valores tradicionais russos. A metáfora do ocidentalismo e do eslavofilismo era utilizada, de certo modo, como um substituto para discutir as grandes questões ideológicas na sociedade russa, já que a censura do país não permitia uma discussão mais aberta como a que havia entre progressistas e conservadores no ocidente europeu (DOWLER, 1982, p. 25). Mas é preciso cuidar para não fazer uma associação precipitada entre ocidentalistas e progressistas, por um lado, e eslavófilos e conservadores, por outro. Segundo Segrillo, a realidade era mais complexa. Os eslavófilos também lutavam pela emancipação dos servos, defendiam a liberdade de imprensa e seus periódicos sofriam censura pelas críticas políticas que faziam (SEGRILO, 2012, p. 140). Ocidentalistas e eslavófilos se encontravam em algumas de suas ideias, mas defendiam caminhos divergentes para atingi-las.
Não se pode pensar a modernização[3] desse país tão particular a partir dos conceitos aos quais estamos acostumados. Feita essa diferenciação, é possível então compreender em que sentido a política de diferentes tzares foi influenciada pelos dois movimentos da época. Não se pode buscar a mesma dicotomia entre ocidentalistas e eslavófilos tal como se compreendia entre progressistas e reacionários. Deixar-se influenciar por ambos não era uma contradição para o tzarismo.
Na primeira metade do século XIX, alguns intelectuais perceberam que o embate entre ocidentalistas e eslavófilos apenas dividia o pensamento russo e não contribuía para uma mudança efetiva na sociedade. Diante dessa dicotomia, Dostoiévski questiona:
Para que então, diga, por favor, para que voluntariamente atar suas mãos com o teorismo e a exclusividade? [...]. Certamente, o ocidentalismo não pode ser explicado por sua exclusividade de nenhuma maneira, apenas xingar por isso, e nada mais. Com os eslavófilos, nesse sentido, também não se pode argumentar, tudo é em vão. Na verdade, não é pelo sentido dessas antigas teorias que nós agora os censuramos. Nós acreditamos que essas duas teorias, as mais ingênuas e inocentes do mundo, finalmente morrerão por si mesmas, como duas avós decrépitas e rabugentas, diante da nova geração, diante da recente força nacional, que eles até hoje não acreditam e que até hoje, como é de costume entre as avós, tratam como bebê. Não, não temos medo dessas teorias agora, no caso atual, exceto por ter sido um exemplo mau e desagradável para nós. (ДОСТОЕВСКИЙ, 1972-1990, p. 27).[4]
Tal tomada de consciência foi a gênese do que, mais tarde, seria anunciada como uma terceira via de interpretação. Essa proposta ficou conhecida como Pótchvennitchestvo,[5] um movimento com o qual Dostoiévski se identificou na busca por promover uma alternativa às teorias ocidentalistas e eslavófilas.
Apollón Grigóriev foi um dos principais responsáveis pela articulação teórica que fundamentou o movimento em defesa do solo para apresentá-lo enquanto alternativa às possibilidades vigentes. O crítico literário se apropriou do conceito de espírito nacional[6] – um conceito que, desde sua origem, foi interpretado sob diferentes perspectivas –, associando nisso uma definição que articulava os ideais do povo comum russo com aquilo que, em sentido mais amplo, eram as características da nação como um todo. Com essa proposta, ele trouxe uma compreensão de nacionalidade russa enquanto produto orgânico que resultava das contribuições de todos os segmentos da nação, independente da determinação de classe ou do lugar social que ocupavam. Foi por defender a importância de se reconhecer as particularidades da identidade nacional diante das reivindicações universalizantes da humanidade que, ao tratar da transição do racionalismo ao romantismo que aconteceu no pensamento europeu, Grigóriev passou a defender uma mudança das verdades universais da razão rumo às verdades relativas da experiência histórica também na sociedade russa. A consequência foi que ele inaugurou uma tendência independente em relação ao pensamento ocidentalista ou eslavófilo, e não há dúvida de que essa sua proposta exerceu influência sobre Dostoiévski (DOWLER, 1982, p. 40), uma vez que corroborava com as aspirações do romancista na medida em que trazia uma alternativa aos extremismos que Dostoiévski tanto se empenhava em combater.
Se ocorreu em solo russo, tal teoria de Grigóriev não poderia ter sido trabalhada em outro âmbito, senão o literário. Conhecida como teoria da crítica orgânica, essa foi a contribuição do crítico para uma nova leitura do conceito de nacionalidade russa. A crítica orgânica de Grigóriev foi, entretanto, herdeira da crítica histórica de Vissarión Belínski. Belínski foi um importante crítico literário. Quando Dostoiévski publicou seus primeiros romances, os parâmetros estéticos que dominavam o cenário literário e ditavam as diretrizes seguidas pelos escritores não passavam sem a influência da análise do crítico. Nesse contexto, a crítica histórica de Belínski foi responsável por atribuir maior relevância aos aspectos sociais da arte em detrimento de contribuições puramente estéticas. O impacto do pensamento do crítico sobre as primeiras obras de Dostoiévski é, portanto, previsível, mas a influência de Belínski sobre o romancista não se limitou ao âmbito literário. A vida de Dostoiévski também seria marcada pelo crivo de sua influência. A leitura pública feita por Dostoiévski de um texto escrito por Belínski – no qual o crítico questiona tanto autocracia quanto dogmas ortodoxos – foi utilizada como justificativa para que condenassem o romancista ao fuzilamento, punição posteriormente convertida para trabalhos forçados na Sibéria. Além disso, o próprio Dostoiévski reconheceu que Belínski foi responsável por sua aproximação do socialismo e do ateísmo.
Somando os anos que passou na prisão e nos trabalhos forçados na Sibéria, Dostoiévski ficou fora do círculo literário por cerca de dez anos. O cenário intelectual russo passou, no decorrer dessa década, por transformações decisivas às quais o romancista teve acesso restrito e não pôde acompanhar. Suas primeiras publicações foram influenciadas pelas teorias sociais que tinham Belínski como principal representante e, quando retorna da Sibéria, encontra em Grigóriev argumentos que corroboravam com as intuições que desenvolvera em contato com o cristianismo do povo russo no exílio. O percurso que teve início na crítica histórica de Belínski e culminou na crítica orgânica de Grigóriev foi determinante para a posterior fundamentação das diretrizes do movimento em defesa do solo. Nesse período de ausência forçada de Dostoiévski, Grigóriev desenvolveu suas ideias em uma relação de dependência com Belínski.
Devido às restrições e censuras do regime tzarista e também porque o próprio Dostoiévski se limitou em utilizar termos bastante vagos, pouco se sabe sobre esse período da vida do autor, apesar da importância no processo de regeneração de suas convicções e de representar um marco na ruptura de seu pensamento. Para exemplificar em seus próprios termos, é válido trazer a passagem de uma carta para o irmão, escrita em 1854 – portanto, após os quatro anos de trabalhos forçados –, através da qual o romancista declara:
Não vou te contar o que aconteceu com minha alma, com minhas crenças, com minha mente e coração nestes quatro anos. É uma longa história. Mas a eterna concentração em mim mesmo, através da qual eu fugi da amarga realidade, rendeu seus frutos. Eu tenho agora muitas necessidades e esperanças sobre as quais eu nunca pensei. Mas tudo isso são mistérios e, por isso, passarei adiante sem me deter [nesse assunto]. (ДОСТОЕВСКИЙ, 1972-1990, p. 170).[7]
Por causa disso, se o próprio romancista não facilitou o acesso ao processo que resultou em sua nova perspectiva literária, justifica-se a empreitada de analisar as confluências entre o pensamento de Belínski, Grigóriev e Dostoiévski. Entende-se aqui que a lacuna desse período do pensamento do romancista, sobre o qual se tem pouco conhecimento, pode ser compreendida com mais clareza quando se resgata o processo de interlocução entre as ideias de Belínski e Grigóriev.
Os textos de Dostoiévski, que revelam essa mudança de perspectiva que, apesar de ter se desenvolvido no decorrer e sob influência dos longos anos de exílio, só puderam ser escritos quando do seu retorno ao ambiente literário de São Petersburgo, momento no qual Grigóriev e Nikolái Strákhov já estavam trabalhando na organização do movimento em defesa do solo. O romancista viu em Grigóriev e Strákhov uma sintetização, no campo teórico, daquilo que ele já havia percebido, porém através da experiência concreta e prática.
Novas propostas para o desenvolvimento da sociedade russa já haviam sido esboçadas, dada a necessidade de apresentar uma alternativa ao extremismo de ocidentalistas e eslavófilos, muito antes do estabelecimento teórico do movimento em defesa do solo, e diversos membros da intelectualidade contribuíram – de forma consciente ou não – para que se alcançasse esse estágio. Grigóriev e Strákhov, porém, carregam o mérito de terem sido os responsáveis por uma reinterpretação das questões políticas, filosóficas, religiosas e artísticas na concretização desse novo movimento. Dostoiévski se identificou com muito do que já havia sido proposto por esses membros e, quando passou a integrar o movimento, começou a direcioná-lo de acordo com suas próprias contribuições.
Momentos de tendência ocidentalista ou eslavófila não eram, para Grigóriev, contradições do pensamento, mas reflexo de uma narrativa aberta às contribuições culturais. A influência ocidental, em vez de combatida, deveria ser compreendida enquanto predisposição do pensamento russo ao diálogo. O crítico entendia que o embate entre ambas as correntes de interpretação não contribuía para o desenvolvimento nacional, afirmação que também ecoará em Dostoiévski quando ele ataca o exclusivismo do discurso tanto de ocidentalistas quanto de eslavófilos. Em síntese, o exclusivismo dos discursos de ocidentalistas e eslavófilos fez com que surgisse uma terceira via de interpretação da cultura. Essa nova proposta articulou algumas das contribuições que as teorias estrangeiras podiam fornecer, sem, contudo, abdicar das particulares características da nação russa, preservando especialmente os valores do povo. O percurso traçado desde o pensamento de Belínski até Grigóriev e Strákhov é determinante para a compreensão do conceito do movimento em defesa do solo. Quando do retorno do exílio e ao retomar sua carreira literária em São Petersburgo, Dostoiévski encontrará nessa terceira via os argumentos que corroboravam com as ideias que já vinha desenvolvendo desde quando esteve preso.
Dostoiévski apresentará sua defesa do retorno ao solo não enquanto algo ancorado no poder autoritário do estado ou na religião ortodoxa enquanto instituição, mas nos valores do homem simples, o único ainda capaz de articular liberdade e fraternidade de alguma forma. Não que isso diminua o preconceito que carregam algumas de suas declarações, é preciso antes de tudo observar. Porém, quando tratamos de seu nacionalismo, podemos notar que, para além de uma limitação conservadora, há um sentimento sincero em relação ao que o camponês tem para mostrar. Não seria por puro apelo nacionalista, talvez seja possível acreditar, portanto, que o autor recorre ao modo de vida do campesinato, mas porque realmente demonstra crer que entre os servos se conservaria uma alternativa aos problemas modernos. Com isso posto, cumpre despertar atenção, não se busca aqui reconhecer nas posições nacionalistas do autor um mérito; mas sim tentar compreender como, apesar dessas questionáveis concepções, sua crítica pode nos despertar para a corrupção de valores assimilados por seus contemporâneos.
A síntese da crítica da civilização europeia e da defesa da cultura russa está na ideia de que, ao considerar o conhecimento como único digno de especulação, o homem não só repensa, mas também exclui para longe todos os valores culturais de sua tradição. Aquele que não tem acesso ao pensamento científico está considerado inapto às discussões e incapaz de pensar sua própria forma de vida. Em vez de uma libertação das amarras da tradição, como acreditavam os modernos, esse processo de emancipação submeteu o homem ao raciocínio que movia uma engenharia social burguesa. Quando Dostoiévski percorre as ruas de Londres e narra isso em seus cadernos de viagens, ele observa que a industrialização não tirou o homem daquilo que se convencionou chamar de as trevas da tradição, apenas o impediu de ver que era tão explorado quanto fora antes (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 118).
A modernidade, se se considerar essa lógica, não mudou a condição do homem, apenas não mais permitiu que ele pudesse ver com clareza a dura desigualdade a que era submetido. O homem russo, tão explorado quanto o trabalhador das indústrias, ainda tinha o mérito, segundo o autor, de carregar a consciência de sua escravidão, enquanto o europeu repousava na falsa proposta de liberdade que lhe foi vendida. É dos homens desse solo, que ainda conservam a consciência sobre seu estado de exploração, em vez de se entregarem às ilusórias benesses da lógica burguesa, que Dostoiévski faz referência e considera como sendo os únicos ainda capazes de articular uma proposta alternativa ao projeto civilizacional europeu, que entendia autodestrutivo. Foram essas convicções, resultado das meditações como romancista e das experiências pessoais no exílio, somadas às ideias que já vinham sendo desenvolvidas por Grigóriev e Strákhov, que compuseram as diretrizes ideológicas do movimento em defesa do solo.
Dostoiévski atacou eslavófilos e ocidentalistas com a mesma força e o fez sob a defesa de que o “caráter individual é tão importante no caso quanto a posição social; mas o processo sociopsicológico exerce uma pressão constante e poderosa” (FRANK, 2002, p. 103). Diante dessa concepção, que o coloca frente ao paradoxo da discussão política que opunha eslavófilos e ocidentalistas, o autor se vê obrigado a explicar em que sentido sua posição se apresenta enquanto viável na realidade russa dividida em classes que impunham com rigidez o lugar social de cada homem. Para Dostoiévski, o diálogo entre as classes, algo que parecia inviável, devia se dar pela obrigação daqueles que ocupavam as mais altas posições de fornecer educação ao povo. Com essa defesa, o autor não se viu obrigado a defender a aristocracia intelectual, tal como os materialistas, nem a instigar uma revolta do povo contra seus senhores, tal como os eslavófilos. Essa questão é o que origina sua crítica aos homens supérfluos, um tipo da literatura russa nobre de coração e espírito, mas incapaz de qualquer ação concreta. Essa crítica só ganhará seus contornos finais com a publicação de Memórias do subsolo, quando o autor começou a delinear as oposições entre essas duas vertentes políticas para construir os traços de caráter que compõem a personagem do homem do subsolo, uma consciência cindida pela influência das duas ideologias confrontantes. Nos romances posteriores, portanto, as concepções religiosas, adquiridas no contato com os presos camponeses, ocuparão o espaço deixado pelo que considerava o vazio dessas vertentes ideológicas.
Diante disso, pode-se compreender em que sentido a religião do camponês russo, mais que apenas citada amplamente em seus escritos, é parte integrante da própria composição estética do autor. Para o romancista, no solo da nação russa, ainda se conservavam os valores cristãos que impediam uma maior submissão do povo às lógicas da civilização burguesa. Essa percepção da destituição do sagrado promovida pela modernidade, junto da certeza de que a consequência final desse processo seria o niilismo, foram determinantes para que a obra de Dostoiévski entrasse no ocidente europeu como uma crítica perversa que lançava nova luz aos movimentos intelectuais que dominavam o contexto de então. Toda essa reconfiguração de seu pensamento foi resultado da experiência no cárcere. Quando retornar do exílio, o escritor encontrará no movimento em defesa do solo muitos dos conceitos que corroborarão com o que já vinha desenvolvendo para seus futuros romances. É, portanto, do encontro entre o que a vivência havia ensinado e a concretização teórica que Grigóriev e Strákhov haviam desenvolvido que surge, então, o material que será a fonte para os grandes romances filosóficos.
A discussão estava então centrada nessa oposição entre eslavófilos e ocidentalistas, mas Joseph Frank afirma que Dostoiévski articulava seus novos escritos no cerne desse debate e de forma a evitar tender para um dos lados do discurso (FRANK, 2002, p. 70). É com esse intuito, afirma Jacques Catteau, que o autor insere sua defesa de que a proposta moderna de organização social se mostrava frágil e que apenas os valores do cristianismo poderiam reerguer aquela sociedade decadente (CATTEAU, 1973, p. 194). Numa imparcial defesa dos valores russos, o escritor se ancora nos conceitos do movimento em defesa do solo para tratar daquela que ele acreditava ser a única cultura ainda capaz de reestabelecer os valores que estavam sendo perdidos.
É consenso que a experiência no presídio siberiano foi determinante para uma ressignificação do posicionamento de Dostoiévski, mas não menos importante foi a inspiração gerada pela observação da psicologia dos prisioneiros que forneceu material para a composição de seus romances. Em carta para o irmão, escrita quando terminava o período de trabalhos forçados, Dostoiévski descreve o entusiasmo da descoberta desses “tipos nacionais”. Porém, por mais que o romancista seja breve na declaração ao irmão, mais do que conteúdo para seus novos escritos, sua narrativa já demonstra uma interpretação positiva do povo russo. Na carta, ele nos fornece os indícios daquilo que anunciará através de sua obra ficcional:
Quantos tipos nacionais e personagens eu assimilei dos trabalhos forçados! Eu me acostumei com eles e, portanto, ao que parece, os conheço consideravelmente. Quantas histórias de vagabundos e ladrões e, de maneira geral, de toda existência negra e miserável! Suficiente para volumes inteiros. Que povo maravilhoso. Para mim, absolutamente, não foi tempo perdido. Se eu não conheci a Rússia, os russos eu conheço muito bem, e tão bem, como, talvez, a maioria das pessoas não os conheçam. Mas esse é meu pequeno orgulho! Esperançosamente perdoável! (ДОСТОЕВСКИЙ, 1972-1990, p. 172).[8]
Com essa declaração, temos uma antecipação de como esse caráter essencialmente russo será representado através das personagens criadas pelo escritor nos romances maduros. Através deles, Dostoiévski estabelece sua crítica da modernidade e defende um projeto de desenvolvimento para a Rússia ancorado nos valores desse povo, que considerava a única forma de vida ainda capaz de articular uma alternativa ao projeto civilizacional europeu. É partindo dessa interpretação que Dostoiévski fundamenta sua crítica às soluções propostas por ocidentalistas e eslavófilos.
A recepção da ficção de Dostoiévski pode ser compreendida, desde então, como resultado da inspiração causada pelo contato forçado com esses perfis psicológicos e, em âmbito geral, como resultado de uma nova interpretação religiosa. A escuta dos crimes e comportamentos que levaram esses humilhados e ofendidos ao presídio, somado às reflexões pessoais do escritor – que vivia uma realidade na qual o único livro permitido era a Bíblia –, são a gênese da síntese artística de Dostoiévski. Em outras palavras, é pela consciência das reais necessidades do povo, somada às questões políticas e sociais russas cada vez mais urgentes, que o romancista propõe uma terceira via de interpretação da cultura alinhada às diretrizes do movimento em defesa do solo.
Aleksándr Púchkin foi o primeiro a promover o retorno ao solo nativo e inaugurou uma nova era na literatura, marcando certa ruptura e relativa independência em relação às influências ocidentais. Toda a geração posterior herdou as características literárias iniciadas por Púchkin, mas Dostoiévski especialmente se utilizou dessa fonte para justificar suas experiências pessoais na concretude de sua obra. Desse modo, pode-se dizer que naquele contexto literário todos os escritores russos estavam marcados, de uma forma ou de outra, pela defesa do retorno ao solo. Em outras palavras, o processo de busca por uma terceira via de interpretação que se apresentasse como alternativa aos dois extremos do debate – ocidentalismo e eslavofilismo – já se mostrava como uma necessidade dado o encontro do tradicionalismo russo com a modernidade, mas essa ideia ganha contornos mais definidos através do conceito de movimento em defesa do solo. Tal conflito comporá mais tarde a síntese artístico-ideológica que permeia os grandes romances de Dostoiévski.
Todo esse processo político e social, somado às iniciativas literárias que preconcebiam a retomada de uma narrativa que tratasse do retorno ao solo, culminaram no arranjo que delineou esse novo movimento. Os veículos através dos quais essas ideias ganharam contornos mais definidos para serem apresentados ao público serão duas revistas editadas por Dostoiévski. Como já repetidamente pontuado, quando retornou do exílio siberiano e retomou sua carreira literária, Dostoiévski encontrou nessas ideias uma narrativa que corroborava com o que havia observado através do contato com os presos camponeses. Portanto, cabe delimitar as características desse pensamento que despertou identificação em Dostoiévski. Tal recuo na análise é importante porque o romancista se limitou a descrever o período em que passou no exílio em termos bastante vagos (ДОСТОЕВСКИЙ, 1972-1990, p. 170).[9] Os textos escritos sob a influência das experiências vividas do exílio, e que revelam as mudanças no seu pensamento, só foram publicados quando ele já estava retomando sua carreira literária em São Petersburgo. Portanto, uma vez que, como observa Frank, há pouca biografia sobre esse período “enigmático e misterioso” que mudou o pensamento do autor (FRANK, 1983, p. 125), só se pode buscar reconstruir suas ideias a partir dos escritos posteriores. Tais escritos, no entanto, só foram concebidos após o encontro com as ideias de Grigóriev e Strákhov, quando parte dos princípios que comporiam o movimento em defesa do solo já estavam em pauta. Os próximos textos de Dostoiévski, ficcionais ou jornalísticos, foram concebidos sob influência dessa discussão que já estava posta em debate no contexto de então, e é preciso compreendê-la na busca por tentar recriar o sentimento que o romancista encontrou após os anos na Sibéria.
Dostoiévski viu em Grigóriev e Strákhov uma representação das ideias que corroboravam com as intuições que trouxera do exílio, e convidou ambos para colaborar com o projeto literário de uma nova revista. Em 1861, O tempo, periódico literário editado por Dostoiévski e pelo seu irmão, teve suas atividades iniciadas. Apesar de não poder ter seu nome entre os editores por ser um ex-condenado, Frank reconhece que o romancista era quem determinava as diretrizes das publicações (FRANK, 2002, p. 68). A revista desempenhou então o papel de interpretar e difundir o movimento em defesa do solo, que tinha como seus principais divulgadores Grigóriev e Strákhov. Essa linha editorial, porém, faria com que o periódico fosse tido como populista pelo governo tzarista, que fechou a empreitada dos irmãos Dostoiévski em 1863.
Grigóriev, como apresentado quando retratada a influência que recebeu de Belínski, já era, nesse período, um importante crítico literário, mas também se dedicava às atividades da poesia e da ficção. O conceito de crítica orgânica desenvolvido por Grigóriev já foi abordado anteriormente, agora é válido tecer algumas considerações acerca dos pontos de encontro de seu pensamento com Dostoiévski, que Frank resume nos seguintes termos:
Não há dúvidas de que Dostoiévski foi atraído pelas ideias de Grigóriev porque, em primeiro lugar, eram úteis para dar conteúdo literário e cultural concreto às suas próprias experiências mais íntimas. O “retorno ao solo nativo”, cuja necessidade se lhe apresentara à consciência de maneira tão angustiada no campo de trabalhos forçados, agora se revela o caminho seguido pelo maior de todos os escritores russos – e era aquele que toda a literatura russa de alguma estatura iria seguir! (FRANK, 2002, p. 81).
A crítica de Grigóriev ao racionalismo também despertou a atenção do romancista. Como Kierkegaard, que concluiu que a vida não podia ser contida dentro de categorias racionais, Grigóriev entendia que a vida era um mistério inesgotável, um abismo que traga a razão em sua finitude. Essa visão é o alicerce que fundamenta sua crítica ao conceito de arte tal como interpretado pelos materialistas radicais, para os quais a arte só tinha utilidade quando subordinada aos propósitos ideológicos. Dostoiévski e Grigóriev, ao contrário, viam na arte o espaço de articulação para se pensar as necessidades do espírito humano.
É nos ensaios literários de Grigóriev que encontramos a ligação mais direta e evidente com Dostoiévski, mas existem outros pontos de contato que não podemos negligenciar. Como Dostoiévski na juventude, Grigóriev foi fortemente influenciado por Schelling, cuja concepção de arte ele adotou; para ambos, a arte era um meio de conhecimento metafísico, o veículo escolhido pelo qual os segredos do Absoluto se revelam no tempo e na história. Essa concepção exaltada de arte já estava bastante obsoleta na década de 1860; e Dostoiévski viu em Grigóriev um aliado extremamente valioso que podia aplicar esse ponto de vista convincentemente à situação cultural imediata. Assim, ambos defendiam o status da arte contra o ataque sarcástico dos radicais utilitaristas e sustentavam seu direito de ser reconhecida como uma necessidade e uma função autônoma do espírito humano. (FRANK, 2002, p. 81-82).
Esse é o ponto no qual religião e arte se encontram no pensamento de Dostoiévski. Se se considerar a pressuposição de que, para o romancista, religião e arte podiam se distinguir pela forma, mas não pela substância (FRANK, 2008, p. 238), é possível encontrar em Grigóriev semelhante crença de que tanto religião quanto arte são o espaço de articulação das complexidades humanas. Em uma carta na qual critica o processo de modernização de São Petersburgo, a Ortodoxia e – sem se preocupar com a contradição de atacar ambos os lados – também o ateísmo,[10] Grigóriev afirma que o erro dos três está na falta de fé na vida, no ideal e na arte. Para ele, esses extremos eram resultado de uma utopia utilitarista da “felicidade sensual” ou da “escravidão espiritual”, que buscavam uma unidade externa em vez de uma unidade interna. O que ele chama de unidade interna seria Cristo – isto é, o ideal, a beleza. E esse seria o único espaço no qual se pode encontrar a verdade para trazê-la ao homem (FRANK, 2002, p. 83). A identificação de Cristo com os conceitos de beleza, ideal e verdade não pode refletir melhor o pensamento de Dostoiévski que afirmará que a “beleza salvará o mundo” (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 428).
Dos textos publicados e das reuniões editoriais de O tempo, não foi apenas Grigóriev, com sua crítica orgânica, que orientou as diretrizes das publicações; Strákhov, entre tentativas de mediar os conflitos com Dostoiévski e Grigóriev, teve uma influência não menos importante.
Strákhov, na época em que iniciou as colaborações para a revista dos irmãos Dostoiévski, estava construindo o começo de uma carreira como publicista e crítico literário. Nesse período, ele adotava o idealismo filosófico e tinha uma posição sociopolítica que Frank define como eslavofilismo moderado (FRANK, 2002, p. 67). Mais adiante, Strákhov irá defender o pan-eslavismo, uma corrente de pensamento que será associada aos últimos anos da obra de Dostoiévski. Em sua maioria, os utilitaristas radicais provinham de uma formação em seminários teológicos, origem do que provavelmente justifica o radicalismo de suas posições quando cruzam as fronteiras para o outro lado do debate e criticam os preceitos religiosos. Strákhov vinha de uma família de clérigos e tinha a mesma formação teológica, mas, ao contrário dos utilitaristas radicais, ele adotou uma posição eslavófila, ainda que moderada. Parte do que levou o crítico literário a esse posicionamento pode ser compreendido por seus estudos em matemática e ciências naturais, pois tal formação permitiu que tivesse consciência das limitações do conhecimento científico, no qual os utilitaristas radicais reconheciam uma solução para todas as questões da existência humana. Strákhov chegou a afirmar, mais tarde, que a ciência não abrangia o mais essencial para o homem, que era a vida. Ele também defendeu que o homem não podia ser interpretado como engrenagem de uma máquina, mas como herói daquilo que chamamos vida (СТРАХОВ, 1887, n.p.).[11]
Segundo o crítico, não se pode subordinar a liberdade humana e a autonomia moral às condições materiais: “De maneira essencial e necessária, a vontade está subordinada a apenas uma coisa – isto é, à ideia de sua própria liberdade, à ideia de insubordinação, à autodeterminação independe e consciente” (СТРАХОВ apud ДОЛИНИН, 1940, p. 240).[12] Para Dostoiévski, que viria a defender a necessidade de autonomia da personalidade, sem a qual o homem pode não querer mais continuar vivendo, essa concepção de Strákhov não poderia estar mais correta.
Em um suplemento escrito por exigência da censura tzarista na ocasião da publicação do livro Recordações da casa dos mortos, mas que acabou não sendo usado, o autor elabora uma síntese daquilo que viria a enfatizar no decorrer do desenvolvimento de sua obra:
Tente construir um palácio. Coloque no palácio mármores, quadros, ouro, aves-do-paraíso, jardins suspensos, várias coisas... e entre nele. Realmente, talvez você nunca mais queira deixá-lo. Talvez você de fato não sairia. Há de tudo! “Para que mexer no que está bom”. Mas, de repente – uma bobagem! Seu palácio é cercado por muros, e te dizem: “Tudo é seu! Aproveite! Só não dê um passo para fora daqui!” E, tenha certeza, que nesse momento você vai querer deixar seu paraíso e pular os muros. E não é só isso! Todo esse luxo, toda essa felicidade ainda aumentará seu tormento. Você vai até ficar ofendido justamente por causa desse luxo... Sim, falta apenas uma coisa: autonomia! Autonomia e liberdade! (ДОСТОЕВСКИЙ, 1972-1990, p. 250).[13]
A visão de Dostoiévski acerca da necessidade do homem de se sentir livre surgia naquele contexto como oposição às defesas feitas pelo materialista Tchernichévski sobre o determinismo social.[14] Tal discordância marca uma literatura arraigada na defesa do racional em oposição àquela que aponta os limites da racionalidade. Com isso, Dostoiévski não estava negando as conquistas do racionalismo, mas apontando os limites de tomar a razão como capaz de solucionar todas as questões da existência humana. Essa afirmação também encontra em Strákhov um apoiador.
O entendimento de que os eslavófilos se equivocavam quando buscavam no passado a justificativa para uma retomada dos valores tradicionais, bem como de que os ocidentalistas também se equivocavam quando propunham um futuro para a Rússia baseado nos preceitos da modernidade ocidental, certamente exerceria forte atração sobre Dostoiévski. No mesmo texto já citado, Strákhov defende que aqueles que se voltam para o passado ou para o futuro estão cometendo um erro. É preciso que os conflitos sejam resolvidos em seu próprio tempo e lugar, e qualquer transferência da solução para outro momento é apenas um engano (СТРАХОВ, 1887, n.p.).[15] Apesar de se associarem ao racionalismo, os naturalistas, materialistas e positivistas são, na defesa de Strákhov, os maiores opositores de uma visão racional do mundo (СТРАХОВ, 1887, n.p.).[16] Isso porque eles centram sua discussão nos conceitos de matéria, natureza, entre outros temas externos ao homem, em vez de se dedicarem a discutir racionalmente a centralidade do homem e as questões de sua existência.
Segundo Frank, Strákhov, ao contrário de Dostoiévski e Grigóriev – que sempre tentavam distanciar os ideais do movimento em defesa do solo dos ideais do eslavofilismo –, estava mais empenhado em minimizar tais divergências, aproximando-se do eslavofilismo ortodoxo, bem como evitando as principais distinções entre ambos (FRANK, 2002, p. 70). Talvez por isso, Dowler reconheça em Grigóriev, mais do que em Strákhov, maior influência sobre Dostoiévski, além de considerá-lo mais fiel às questões do movimento.
A relação de Dostoiévski com Grigóriev e Strákhov foi marcada por algumas divergências de opinião, o que fez com que Grigóriev abandonasse as colaborações da revista por certo tempo. A força da influência dos críticos literários sobre Dostoiévski é vista pelos intérpretes como tendo diferentes intensidades. Dowler entendeu que a obra ficcional do romancista deve ser interpretada sob o crivo da influência de Grigóriev e Strákhov, sendo o primeiro ainda mais determinante para o caminho trilhado por Dostoiévski. Por outro lado, o biógrafo se limita em afirmar que:
Ambos são figuras importantes por privilégio próprio; cada um desempenhou papel expressivo na cultura russa; e cada um exerceu inegável influência sobre Dostoiévski. No entanto, ajudaram mais a enriquecer e reforçar determinados elementos já existentes do modo de ver do romancista do que a estimular um novo ponto de partida. (FRANK, 2002, p. 74).
Porém, Frank reconhece que o embate entre os defensores do movimento em defesa do solo e seus opositores, os responsáveis pelo processo que gestou o que ficou conhecido como niilismo russo, forneceu o material para a composição artística e ideológica dos romances de Dostoiévski (FRANK, 2002, p. 83).
À parte da discussão acerca do quão determinante foi tal influência sobre o pensamento do romancista, portanto, o que se pode afirmar com certeza é que o movimento em defesa do solo foi resultado do encontro das experiências pessoais de Dostoiévski com as ideias desenvolvidas por Grigóriev e Strákhov. Ademais, cabe observar que não se busca aqui reduzir o pensamento de Dostoiévski às possíveis influências de Grigóriev e Strákhov, até porque o temperamento do romancista não era do tipo que se permite persuadir. Aliás, como observou Frank em sua biografia sobre o autor, foi Dostoiévski que muitas vezes tentou interferir nas publicações dos críticos (FRANK, 2002, p. 93-94), ditando as diretrizes da revista.
Apesar das limitações que impedem um conhecimento mais amplo acerca do que se passou durante o período no presídio, o importante é enfatizar que foi o próprio Dostoiévski quem reconheceu como fato que a experiência siberiana foi responsável por causar uma mudança definitiva em seu posicionamento teórico e em suas crenças pessoais. As concepções religiosas, adquiridas no contato com os presos camponeses, serão o fundamento de sua oposição às teorias ocidentalistas e eslavófilas.
Na precariedade em que viveu durante esses anos, o único livro permitido na prisão era a Bíblia. O contato de uma das mentes mais influentes da literatura com os textos bíblicos, somado às experiências diárias de convivência com os presos camponeses – momentos nos quais teve oportunidade de observar como verdadeiramente o povo comum russo exercia a religiosidade cristã ortodoxa –, fizeram com que Dostoiévski passasse a se dedicar a pensar o lugar do sagrado na modernidade. O esforço proposto de colocar luz sobre esse momento se justifica na medida em que auxilia na compreensão da nova postura adotada pelo romancista. Quando retorna do exílio, para se opor às ideologias ocidentalistas e eslavófilas, Dostoiévski passa a defender o modo de vida da comunidade camponesa por considerá-lo o único espaço ainda capaz de articular uma alternativa ao projeto civilizacional europeu que estava sendo assimilado pela sociedade russa.
Cumprida essa proposta, será possível pensar em que medida os temas religiosos tiveram influência sobre o desenvolvimento artístico de Dostoiévski. Consequentemente, será preciso reconhecer que, mais que identificar alguns pontos em que a religião aparece de forma evidente, é possível acessar qual compreensão de religião está por trás desse processo de composição do autor. Dostoiévski se utiliza amplamente de um vocabulário religioso em sua obra, porém ainda muito se especula sobre a compreensão de religião que o autor acessa para extrair suas referências. Por causa disso, entende-se aqui que, ao esclarecer quais as formas de religiosidade cristã Dostoiévski teve contato, faz-se viável uma aproximação do entendimento acerca do conceito de religião que permeia sua obra. A finalidade, portanto, é demonstrar que a dimensão de religiosidade que compõe o modo de vida do camponês russo, mais que apenas amplamente citada em seus escritos, é parte integrante da própria percepção artística do autor.
No século XIX, a mente russa estava assombrada pela questão de Deus, e isso explica em que sentido a religião deve ser considerada enquanto importante elemento para compreensão do pensamento de Dostoiévski. Pensar a religião era uma necessidade da época e pensar a religião nos termos do povo russo era, especificamente, uma necessidade que decorreu da experiência pessoal do autor.
Quando Dostoiévski se utiliza da palavra religião, essa religião é a cristã ortodoxa. Por mais que tal constatação possa induzir uma redução precipitada do conteúdo artístico do autor aos dogmas de um nacionalismo religioso, é preciso enfatizar que, antes de tudo, Dostoiévski pensava a religião de forma idealista (CASSEDY, 2005, p. 115). Mas Dostoiévski era um russo. Nasceu e cresceu no solo da nação russa, uma tradição fundada na simbologia do cristianismo ortodoxo. Todos os homens, de qualquer tempo ou lugar, carregam em si os símbolos de sua cultura. Por mais que se questione, jamais se consegue escapar dessa influência e deixar de ler o mundo segundo essa construção simbólica de sentido. Ainda que disposto a questioná-los, Dostoiévski, como todos, carregava em si os símbolos de sua cultura. Sendo a religião um dos aspectos mais influentes da cultura tradicional russa, a dimensão religiosa não poderia deixar de ocupar um espaço importante no desenvolvimento de seu pensamento.
Por fim, em resumo, quando Dostoiévski se utiliza da palavra religião, essa religião é cristã. Mais especificamente, é cristã ortodoxa. Mas sua obra não pode ser lida como defesa do cristianismo ortodoxo enquanto instituição. Dostoiévski foi um crítico da Igreja Cristã Ortodoxa. Quando defende uma alternativa ao modo de vida promovido pela modernidade, o conceito de religião que o romancista defende com admiração é tão somente o cristianismo do povo russo. Isto é, o cristianismo tal como era verdadeiramente vivenciado pela comunidade camponesa. Ainda assim, sua compreensão dessa manifestação de religiosidade é vista como sendo um ideal. Esse ideal nunca poderá ser concretizado pelo homem na terra. Ainda que pertença ao âmbito ideal, é essa forma de vida do povo comum russo que Dostoiévski defende como única alternativa viável para combater as teorias radicais que estavam redirecionando o futuro da Rússia.
O movimento em defesa do solo, como será repetidamente observado, buscava promover uma alternativa para o desenvolvimento do país desvinculada do ocidentalismo e do eslavofilismo. Portanto, era inevitável que, em seu cerne, fossem incorporadas e divulgadas suas próprias propostas interpretativas acerca do que estava sendo debatido no contexto social russo do século XIX – o que incluía as questões políticas, filosóficas, artísticas e, não menos importante, religiosas.
É nesse sentido que se justifica a importância da análise do movimento em questão. Afinal, é compreendendo sua origem e desenvolvimento que se tem acesso às releituras das teorias políticas, filosóficas, artísticas e religiosas segundo os parâmetros com os quais o romancista mais se identificava – que, é preciso observar, mesmo havendo ressalvas e discordâncias em relação às definições teóricas, as diretrizes desse movimento ainda permitem uma aproximação mais segura da obra de Dostoiévski na medida em que esclarecem muitos dos conceitos que permeiam os textos ficcionais do romancista.
Dostoiévski não escreveu sua crítica da modernidade sob o viés de uma defesa da tradição. Sua crítica é feita a partir de dentro (FRANK, 2002, p. 432). Ele toma para si o discurso moderno a fim de levá-lo ao limite da contradição ao questionar o que aconteceria e quais as consequências se, de fato, todas as teorias modernas fossem tomadas a sério na vida concreta do homem.
A crítica do romancista, tanto aos preceitos ideológicos estrangeiros que penetravam a sociedade russa quanto aos preceitos ideológicos nacionais que emergiam de seus contemporâneos – ocidentalismo, eslavofilismo, materialismo radical, entre outros –, não é feita enquanto uma simples oposição exterior. Em outras palavras, a ficção de Dostoiévski não representa uma rejeição desses preceitos, mas sua assimilação na narrativa para, por consequência, denunciar aquilo que considerava suas implicações destrutivas.
O que se pretendeu demonstrar aqui foi que, após questionar tanto as teorias estrangeiras quanto os valores da tradição, abriu-se um vácuo, e Dostoiévski não impôs sua narrativa como única e definitiva forma de preenchê-lo. Por fim, ainda que não tenha feito, diante dos problemas urgentes do contexto russo de então, seu romance estabelece uma tentativa de conciliar os avanços da modernidade com os valores da tradição – tal como era promovida pelo movimento em defesa do solo –, abrindo uma possibilidade de atribuição de sentido que guiasse os homens na construção do até então incerto futuro da Rússia.
Ao traçar esse percurso, pretendeu-se demonstrar em que sentido a encenação da sentença de morte por fuzilamento, somada às experiências vividas durante o período de exílio na Sibéria, onde teve contato direto com a religiosidade do povo russo, representam marcos decisivos na trajetória do romancista na medida em que estabeleceram um processo de regeneração de suas convicções pessoais e uma ruptura em relação às concepções adotadas até então.
Esse empenho se deu porque Dostoiévski acreditava que os problemas da sociedade russa não seriam solucionados por ocidentalistas ou eslavófilos. As soluções que eram propostas pelos dois extremos do debate eram, em sua visão, marcadas por hostilidade e propostas abstratas daqueles que não conheciam a realidade e as necessidades do povo. Após os anos que passou imerso nessa realidade, Dostoiévski se viu no direito – senão na obrigação – de recorrer à autoridade de sua experiência, e ele não hesitou em afirmar que suas convicções não derivavam de uma teoria abstrata, mas de seu contato forçado com a verdadeira natureza do povo (FRANK, 2002, p. 152). Para compreender o que significa nacionalidade russa, ele diz a seus opositores que é preciso que as circunstâncias o tenham obrigado a viver com o povo, partilhando de suas ideias e interesses, de forma direta e prática, não a partir de uma posição de superioridade. Só assim, nas palavras do escritor, é que se pode compreender o caráter russo (FRANK, 2002, p. 153). Dostoiévski, por fim, afirma que o contato com a realidade do camponês é o único modo de se ter uma autêntica fé na cultura russa.
As implicações impostas pelo conturbado contexto histórico russo, somadas às experiências pessoais do romancista, culminaram na articulação final das diretrizes do movimento em defesa do solo, através do qual Dostoiévski expõe sua própria visão e proposta de mundo, promovendo sua compreensão de cristianismo do povo russo como única alternativa capaz de combater as teorias defendidas por seus opositores ideológicos. É diante disso, portanto, que Dostoiévski estabelece uma tentativa de conciliar os valores do cristianismo do povo russo com os avanços da modernidade. A ficção do romancista estabelece uma proposta de articulação entre tradição e modernização tal como ele havia desenvolvido e promovido através do movimento em defesa do solo, na busca por abrir uma possibilidade de atribuição de sentido que guiasse os homens na construção do até então incerto futuro da Rússia.
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[1] “It is one of the most deplorable traits of our strange civilization that we are still discovering truths that are commonplace even among peoples much less advanced than we. This is because we have never moved in concert with the other peoples. We are not a part of any of the great families of the human race; we are neither of the West nor of the East, and we have not the traditions of either. We stand, as it were, outside of time, the universal education of mankind has not touched us. [...] Our memories reach back no further than yesterday; we are, as it were, strangers to ourselves. We move through time in such a singular manner that, as we advance, the past is lost to us forever. That is but a natural consequence of a culture that consists entirely of imports and imitation. Among us there is no internal development, no natural progress; new ideas sweep out the old, because they are not derived from the old but tumble down upon us from who knows where. We absorb all our ideas ready-made, and therefore the indelible trace left in the mind by a progressive movement of ideas, which gives it strength, does not shape our intellect. We grow, but we do not mature; we move, but along a crooked path, that is, one that does not lead to the desired goal. We are like children who have not been taught to think for themselves: when they become adults, they have nothing of their own – all their knowledge is on the surface of their being, their soul is not within them. That is precisely our situation”. (CHAADAEV, 1966, p. 92-93).
[2] “Peoples, like individuals, are moral beings. Their education takes centuries, as it takes years for that of persons. In a way, one could say that we are an exception among peoples. We are one of those nations, which do not seem to be an integral part of the human race, but exist only in order to teach some great lesson to the world”. (CHAADAEV, 1966, p. 93).
[3] É preciso observar que não é possível tratar da modernidade que se desenvolveu em contexto russo tal como nos referimos ao seu desenvolvimento no ocidente europeu. Compreende-se aqui o conceito de modernidade enquanto uma síntese do contexto histórico russo descrito até então. Isto é, a Rússia da segunda metade do século XIX era caracterizada por um paradoxo entre o modo de vida tradicionalmente agrário, no qual vivia grande parte da população, e o círculo restrito daqueles que tinham acesso aos ideais europeus, marcados já pelo processo de industrialização. A concepção ocidentalizante que preconizava a implementação de uma modernidade social no país já estava posta, mas esse processo apenas foi efetivado no século XX. Portanto, o conceito de modernidade ao qual recorreremos neste trabalho é tão somente aquele que resultou do esforço que os intelectuais faziam para assimilar, o que não tinha ainda implicação prática na vida concreta da população daquele momento.
[4] « К чему же, к чему, скажите, пожалуйста, добровольно себе связывать руки теоретизмом и исключительностью? [...] Конечно, западничеству не растолкуешь его исключительности ни за что; только обругают за это, и больше ничего. С славянофилами тоже в этом смысле спорить нельзя, всё одно что воду толочь. Не за смысл, собственно, этих старинных теорий мы теперь и упрекаем их. Мы верим, что эти две наивнейшие и невиннейшие теперь в мире теории умрут наконец сами собою, как две дряхлые ворчливые бабушки в виду молодого племени, в виду свежей национальной силы, которой они до сих пор не верят и с которой до сих пор, по привычке всех бабушек, обходятся как с несовершеннолетней малюткой. Нет, не этих теорий боимся мы теперь, в настоящем случае, а пример худой нам был неприятен ». ДОСТОЕВСКИЙ, Фёдор. Полное собрание сочинений в тридцати томах. Том 20. [DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Obras completas reunidas em trinta volumes. Volume 20.], p. 27.
[5] O termo Почвенничество (Pótchvennitchestvo) pode ser interpretado como um movimento em defesa do solo, pois deriva de uma compreensão de народная почва (naródnaia pótchva), que pode ser traduzido como solo nacional – почва (pótchva) significa solo, mas também tem o sentido de fundação ou apoio; e народность (naródnost) significa povo, etnia, caráter ou espírito nacional. A partir daqui, utilizarei a expressão movimento em defesa do solo como tradução para me referir a esse conceito.
[6] O conceito de народность (naródnost) foi interpretado de maneiras diversas pelos intelectuais russos, mas foi com a compreensão de Grigóriev que se tornou referência teórica para o movimento em defesa do solo. Embora seja traduzido como povo, etnia, caráter ou espírito nacional, os eslavófilos haviam restringido seu significado ao modo de vida dos camponeses. Eles entendiam que apenas os camponeses preservavam o verdadeiro espírito nacional, enquanto os nobres estavam cada vez mais ocidentalizados, afastando-se do modo de vida russo. O eslavófilo Iván Kiréevski, é verdade, tentou ampliar o conceito para toda a nação, mas foi Grigóriev que introduziu a noção de que a nacionalidade russa era produto orgânico das contribuições de todo o povo. Ele entendia que o conceito designava os ideais que governavam a vida das pessoas comuns e, em sentido mais amplo, caracterizava o que era peculiar na vida de toda a nação.
[7] « Что сделалось с моей душой, с моими верованиями, с моим умом и сердцем в эти четыре года - не скажу тебе. Долго рассказывать. Но вечное сосредоточение в самом себе, куда я убегал от горькой действительности, принесло свои плоды. У меня теперь много потребностей и надежд таких, об которых я и не думал. Но это всё загадки, и потому мимо ». Carta para o irmão Mikhaíl Dostoiévski, 30 de janeiro - 22 de fevereiro de 1854. ДОСТОЕВСКИЙ, Фёдор. Полное собрание сочинений в тридцати томах. Том 28., кн. 1. [DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Obras completas reunidas em trinta volumes. Volume 28., livro 1.], p. 170.
[8] « Сколько я вынес из каторги народных типов, характеров! Я сжился с ними и потому, кажется, знаю их порядочно. Сколько историй бродяг и разбойников и вообще всего черного, горемычного быта! На целые томы достанет. Что за чудный народ. Вообще время для меня не потеряно. Если я узнал не Россию, так народ русский хорошо, и так хорошо, как, может быть, не многие знают его. Но это мое маленькое самолюбие! Надеюсь простительно ». Carta para o irmão Mikhaíl Dostoiévski, 30 de janeiro - 22 de fevereiro de 1854. ДОСТОЕВСКИЙ, Фёдор. Полное собрание сочинений в тридцати томах. Том 28., кн. 1. [DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Obras completas reunidas em trinta volumes. Volume 28., livro 1.], p. 172.
[9] Carta para o irmão Mikhaíl Dostoiévski, 30 de janeiro - 22 de fevereiro de 1854. ДОСТОЕВСКИЙ, Фёдор. Полное собрание сочинений в тридцати томах. Том 28., кн. 1. [DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Obras completas reunidas em trinta volumes. Volume 28., livro 1.], p. 170.
[10] É digno de nota observar que a carta na qual Grigóriev elaborou tal declaração foi redigida em 1858, enquanto Dostoiévski estava no exílio siberiano e, portanto, os dois ainda não tinham estabelecido relações, o que revela a independência do caminho trilhado pelo crítico para tais conclusões.
[11] СТРАХОВ, Николай. О вечных истинах. [STRÁKHOV, Nikolái. Sobre verdades eternas.], n.p.
[12] « Существенным, необходимым образом воля подчинена только одному — именно идее своей свободы, идее неподчинения, самобытного и сознательного самоопределения ». СТРАХОВ, Николай. Материалы к биографии Достоевского. [STRÁKHOV, Nikolái. Materiais para a biografia de Dostoiévski.]. Apud ДОЛИНИН, Аркадий. Ф.М. Достоевский и Н.Н. Страхов. [DOLÍNIN, Arcádi. F.M. Dostoiévski e N.N. Strákhov.], p. 240.
[13] « Попробуйте выстройте дворец. Заведите в нем мраморы, картины, золото, птиц райских, сады висячие, всякой всячины... И войдите в него. Ведь, может быть, вам и не захотелось бы никогда из него выйти. Может быть, вы и в самом деле не вышли бы. Всё есть! ‹ От добра добра не ищут. › Но вдруг – безделица! Ваш дворец обнесут забором, а вам скажут: ‹ Всё твое! Наслаждайся! Да только отсюда ни на шаг! › И будьте уверены, что вам в то же мгновение захочется бросить ваш рай и перешагнуть за забор. Мало того! Вся эта роскошь, вся эта нега еще живит ваши страдания. Вам даже обидно станет, именно через эту роскошь... Да, одного только нет: волюшки! волюшки и свободушки! ». ДОСТОЕВСКИЙ, Фёдор. Полное собрание сочинений в тридцати томах. Том 4. [DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Obras completas reunidas em trinta volumes. Volume 4.], p. 250.
[14] Para Tchernichévski, a vontade é apenas uma impressão subjetiva, assim como bem e mal são definidos em termos utilitaristas. O homem busca no prazer a satisfação de seus interesses egoístas, mas por meio da racionalidade compreende que a utilidade mais permanente está em se identificar com a maioria. O indivíduo esclarecido atinge então o egoísmo racional que, para o autor, é o mais alto desenvolvimento humano. (FRANK, 2002, p. 64).
[15] СТРАХОВ, Николай. О вечных истинах. [STRÁKHOV, Nikolái. Sobre verdades eternas.], n.p.
[16] СТРАХОВ, Николай. О вечных истинах. [STRÁKHOV, Nikolái. Sobre verdades eternas.], n.p.