Marcio Cappelli
Professor no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas.
Sebastião Lindoberg da Silva Campos
Professor no Departamento de Letras da UFOP.
Em A palavra acolhimento, texto coligido no livro Adeus a Emmanuel Lévinas, Jaqcues Derrida relembra o risco que o gesto de dar as boas-vindas comporta. Para o filósofo franco-argelino, a acolhida pode se dar a partir da apropriação indevida de um lugar, algo que esconderia uma pretensa superioridade em relação ao outro. No entanto, Derrida ressalta também que o hospedeiro, segundo Lévinas, é, igualmente, hóspede. Trata-se da aceitação da recepção. Acolher o outro é aceitar que a aceitação da recepção precede a própria recepção. É ser recebido, escutado, interpelado. Pois bem, é com esse espírito de hospitalidade ressignificado pela alteridade que gostaríamos de dar as boas-vindas aos leitores e leitoras desta edição de final de ano da Teoliterária, que, por sinal, vem a público enquanto estamos nos preparando para novos tempos que se avizinham.
Assim como a expectativa de renovação dos ciclos da vida – que na linguagem cristã se traduz como advento – oportuniza uma reflexão em que o indivíduo se interroga diante do mistério da existência e o transmuta numa experiência própria, a publicação desta edição, situando-se num momento muito particular para as Ciências Humanas no Brasil e no mundo, interroga-se num panorama em que revisita o passado, atualizando-se no presente e descortinando-se no porvir. O término de um ano oferece, naturalmente, o cenário em que tempos e espaços se entrelaçam num jogo narrativo que reconstrói e reconfigura a experiência de presente, passado e futuro. Não à toa, a tradição literária como canal do conhecimento mítico, traduziu esse processo na imagem do deus com duas faces, uma que mira os gestos e ações que se borram pouco a pouco no tempo passado, outra que aponta para o ainda borrado porvir, tendo sua materialidade no presente que se realiza no instante da percepção.
O caráter que Derrida dá à figura levinasiana da porta, no já referido texto, como signo de abertura do em-si, se soma ao dito anteriormente e parece configurar-se numa interessante imagem para nos guiar num jogo de reconstrução da experiência que se realiza na presença do outro, no contato com o outro, na partilha, no encontro. Sendo a escrita um exercício de outrar-se a si, uma oportunidade para a memória se reconfigurar, o seu processo de formação aponta para um universo de possibilidades. Sendo o presente um conjunto de resultados do passado que se projetam no futuro, cumpre, pois, essa tarefa de revisitar e se reelaborar por meio de novos caminhos e da palavra mobilizadora que insinua vidas outras.
No que toca as relações de diálogo no campo das Humanidades, com especial enfoque à Literatura, Teologia e Ciências da Religião, o ano de 2022 é marcado, entre outras coisas, pelo Centenário da semana de Arte Moderna de 1922. Momento da trajetória intelectual e artística do Brasil que se converteu ao longo do tempo no episódio em que as relações entre pensamento, produção intelectual, literatura, artes e religião se entrecruzaram num debate profícuo de assimilações, tensões, rupturas e continuísmos.
A conferência de abertura da Semana proferida por Graça Aranha tecia uma percepção de modernidade que se apresentava como entre- -lugar. Como resto-que-fermenta, como reelaboração e deslocamentos. A arte nasce no presente que se projeta no porvir carregando sua herança à tira-colo. A imagem da Sankofa, proveniente do universo de simbologia africana, traduz esse “retorno” que se realiza para adquirir saber e conhecimento no passado. O retorno é necessário para construir um futuro melhor e poder traduzir os desafios que surgem diante das novas perspectivas religiosa, linguística e cultural de um país híbrido, multiétnico e plural. Em conjunto com o Bicentenário da Independência política do país, o ano de 2022 ofereceu uma janela do tempo histórico em que o país, em toda sua complexidade, pode pensar a si mesmo, a partir de dentro, do retorno àquilo que o constitui nas suas entranhas, seu povo, sua língua, seu pensamento; ver a si próprio necessita de deslocamentos, transposições, cruzar espaços e tempos como no jogo autofágico do tempo que devora a si mesmo. Causar o estranhamento de quem se vê pela primeira vez ainda a tatear o mundo.
Para a Teoliterária, o ano de 2022 é especialmente um ano que evidencia a força e o vigor das publicações ao longo do tempo, fortalecendo-se como plataforma de referência na temática. A edição de número 28 atesta o profundo campo de diálogo que se abriu entre teologia e literatura. Diversos autores de distintas instituições acadêmicas; inúmeras pesquisas de diferentes latitudes geográficas e abordagens conceituais oferecem um certo panorama das possibilidades de debate e reflexão que se assentaram ao longo do tempo. A Teoliterária, mantendo seu caráter de fomentar o debate e divulgar a produção do tema alcançou divisas internacionais; o aprofundamento da relação do Periódico com a Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia (ALALITE) também resultou num fortalecimento dos laços institucionais e na ampliação da rede de pesquisadores e colaboradores.
Em sintonia com a diretiva internacional, o Brasil, graças ao número de pesquisadores em expansão, amadureceu uma linha institucional e vê agora a ALALITE Seção Brasil ganhar capilaridade. A nova diretoria, ora composta por Marcio Cappelli (presidente), Sebastião Lindoberg (vice-presidente), Letícia Alves (primeira secretária), Marcos Lopes (segundo secretário), Cleide Oliveira (tesoureira), Antonio Manzatto (vogal 1), Paulo Augusto de Souza Nogueira (vogal 2), assume a gestão com o desafio de manter as conquistas realizadas, sobretudo o trabalho colaborativo em rede, marca característica da ALALITE.
No horizonte que se avizinha está o desejo e a mobilização de esforços para ampliação e fortalecimento da rede de pesquisadores e instituições participantes; a busca por novos canais de diálogo e divulgação da produção dos membros; uma maior aproximação e conhecimento dos membros e grupos de pesquisa do tema nas universidades das regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil, de modo a fortalecer a rede de cooperação e pesquisa.
Os artigos que compõem esta última edição oferecem um retrato da multiplicidade de pesquisas no campo das relações da literatura luso-brasileira e teologia e podem apontar para a abertura a novas e dinâmicas abordagens, sobretudo no que toca à valorização das narrativas de matriz africana e indígena como constituintes de nossa formação coletiva.
Em tempo, como já feito anteriormente, lançamos mão do texto escrito por Derrida por ocasião da despedida a Lévinas, especialmente porque, nele, é explorada a ambiguidade do vocábulo “adeus”. Se o gesto de dar boas-vindas mantém um risco, o da despedida contém uma tensão, ou uma abertura, que anuncia, na partida, a possibilidade de outro encontro. Portanto, com esse número que encerra o ciclo de publicações de 2022, enseja-se também a prospecção de um futuro promissor de relações democráticas e dialogais, de campos de discussão, debate e conhecimento. Que a Teoliterária possa seguir sendo uma plataforma de referência para os interessados na interface da Teologia/ Religião com a Literatura, e que a palavra que dá vida e que renova se articule com os desejos e os votos das melhores e maiores conquistas, tanto quanto possa alcançar o nosso parco conhecimento.
Boa leitura!