Allan Macedo de Novaes
Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo. Contato: allannovaes@yahoo.com.br
Felipe Silva Carmo
Mestre em Estudos Judaicos pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: flps.carmo@gmail.com
Resumo: O presente artigo consiste em uma análise de comparação discursiva e temática das intersecções entre Eclesiastes 9:13-18, na Bíblia Hebraica, e a graphic novel Parábola, da Marvel Comics. O artigo se divide em quatro partes: a primeira, um panorama da literatura e do discurso sapiencial na Bíblia Hebraica; a segunda, uma análise de Eclesiastes 9:13-18, com leitura atentiva do texto hebraico; a terceira, uma breve descrição do graphic novel Parábola juntamente com informações sobre seu protagonista, o super-herói Surfista Prateado; e a quarta, uma análise da graphic novel Parábola a partir do diálogo com Eclesiastes. Entre diversos paralelos narrativos, vê-se que a estrutura de conto sapiencial às avessas de Eclesiastes 9 se repete na graphic novel, já que em ambos os textos a sabedoria, mesmo (aparentemente) vitoriosa, é relegada à marginalidade e à invisibilidade. Em ambos os casos, ela é considerada como superior à força da guerra, configurando um conto sapiencial de louvor à sabedoria e, ao mesmo tempo, uma lamentação sobre a negligência atribuída a ela.
Palavras-chave: Literatura sapiencial; História em quadrinhos; Eclesiastes; Parábola; Surfista Prateado
Abstract: This article consists of a discursive and thematic comparison analysis of the intersections between Ecclesiastes 9: 13-18, in the Hebrew Bible, and the graphic novel Parable, by Marvel Comics. The article is divided into four parts: the first, an overview of the wisdom literature in the Hebrew Bible; the second, an analysis of Ecclesiastes 9: 13-18, with a close reading of the Hebrew text; the third, a brief description of the graphic novel Parable along with information about its protagonist, the superhero Silver Surfer; and the fourth, an analysis of the graphic novel Parable from the dialogue with Ecclesiastes. In addition to the number of narrative parallels, it became evident that the reverse wisdom structure of Ecclesiastes 9 is repeated in the graphic novel, since in both texts wisdom, even (apparently) victorious, is relegated to marginality and invisibility. In both cases, it is considered superior than the force of war, setting up a wisdom tale in praise of wisdom itself, and at the same time a lamentation over the negligence attributed to it.
Keywords: Wisdom literature; Comic books; Ecclesiastes; Parable; Silver Surfer
Através de trabalhos como os de Lewis e Kraemer (2010) e Braga Júnior e Reblin (2015) a intersecção entre estudos de arte sequencial e estudos de religião é um campo emergente com diversas possibilidades teórico-metodológicas. Para além da análise de produções eclesiásticas de finalidade proselitista em formato de histórias em quadrinhos (CARMO; NOVAES, 2017), uma das frentes de estudo são os diálogos literários e linguísticos entre os quadrinhos e os textos considerados sagrados por denominações religiosas.
A Bíblia Hebraica, também chamada de Antigo Testamento pela tradição cristã, é uma das obras literárias que se tornam objeto de estudos acadêmicos nas quais se podem estabelecer conexões narrativas e discursivas entre os textos sagrados e tirinhas, charges, romances gráficos e mesmo o gênero popular de histórias de super-herói ou de superaventura (LEWIS, 2014; NOVAES; CARMO; SILVA, 2021).
Diante desse cenário, o presente artigo se propõe a descrever e analisar as intersecções discursivas entre uma parábola da literatura sapiencial hebraica, presente no livro de Eclesiastes (capítulo 9, versos 13 a 18) e a graphic novel Parábola, escrito por Stan Lee e ilustrado por Moebius com uma história envolvendo dois personagens da Marvel Comics: o herói Surfista Prateado e o vilão Galactus.
Para tanto, o artigo se divide em quatro partes: a primeira, na qual se apresenta um panorama da literatura e do discurso sapiencial na Bíblia Hebraica, de maneira a conhecer suas ênfases, nuances e perspectivas; a segunda, na qual se faz uma análise de Eclesiastes 9:13-18, com uma leitura atentiva do texto hebraico; a terceira, que traz uma breve descrição da graphic novel Parábola juntamente com informações sobre o personagem Surfista Prateado; e a quarta, na qual se analisa a graphic novel Parábola a partir do diálogo com o trecho já citado de Eclesiastes.
A Bíblia Hebraica (BH) – ou o Antigo Testamento – compreende um corpus de textos de elevado nível literário, com histórias capazes de envolver, emocionar, espantar, consolar e levar à reflexão. Como qualquer obra literária de qualidade, ela possui beleza em sua forma e conteúdo, estética e profundidade (ALTER, 2007; FRYE, 2004). Dessa maneira, não se trata apenas de um “livro sagrado”, útil para sistematizar crenças, estabelecer credos e implantar religiões: ela oferece narrativas que desafiam o senso comum e, até hoje, tratam de questões fundamentais a respeito da existência humana; tudo isto através do “uso engenhoso da linguagem, das variações no jogo de ideias”, sendo um “exercício daquela mesma atenção disciplinada que, por diversas abordagens críticas, tem iluminado, por exemplo, a poesia de Dante, as peças de Shakespeare, os romances de Tolstói” (ALTER, 2007, p. 28-29).
Naturalmente, a BH, como uma “biblioteca” de textos, possui uma grande variedade interna em termos de temas, gêneros e estilos (BOER, 2007). Ela poderá, por exemplo, comunicar histórias por meio da prosa de narrativas, se utilizar de poesias e lamentações dos mais variados temas e formas e, inclusive, fazer bom uso de gêneros incomuns à atualidade, como a genealogia.
Dentre os variados gêneros encontrados na BH, há um em especial classificado como “sapiencial”, isto é, um gênero de “sabedoria”. Ele usualmente é representado por livros como Jó, Provérbios e Eclesiastes, Sabedoria de Salomão e Eclesiástico (CRENSHAW, 1981; MUCK; MURPHY; 1986). Uma de suas características principais é o seu caráter universal e atemporal. Quando um texto é classificado como “sabedoria”, espera-se que o seu conteúdo tenha alguma finalidade prática imediata, útil para o cotidiano e instrutivo para a vida, em geral. Em termos mais simplificados, o discurso sapiencial, entre os povos e culturas, é “uma maneira específica de encarar a vida e a natureza” (MURPHY, 1981, p. 25).
Entende-se, em primeiro lugar, que os textos sapienciais possuem características universais porque compartilham conceitos em comum, independentemente da cultura envolvida (GAMMIE; PERDUE, 1990; MCKANE, 2009). Em outras palavras, um texto sapiencial chinês do século 15 a.C. pode estar muito próximo de um texto sapiencial africano do século 21. Isso ocorre, evidentemente, porque o discurso sapiencial trata de questões morais e pragmáticas que transcendem as diferenças culturais, pois encontram-se enraizados na experiência da vida humana e na sua necessidade de sobreviver às contingências do cotidiano. Da mesma forma, a sabedoria encontrada na BH produzirá conteúdo paralelo às culturas de sabedoria já existentes, refletindo e revisitando reflexões de sua época (SMEND, 1995, p. 264).
Quando o assunto é a sabedoria bíblica, contudo, embora seja possível contextualizá-la e compará-la às manifestações mais atuais, o seu caráter universal estará mais evidente no contexto cultural que ela foi elaborada: o Antigo Oriente Médio (AOM), isto é, em contextos como o Egito e a Mesopotâmia (HEIM, 2015; STORY, 1945). A BH não apenas repercutiu o pensamento sapiencial de seu contexto, mas é possível que tenha compartilhado ipsis litteris o discurso de sábios contemporâneos à sua época no texto bíblico, como é o caso de “Agur, filho de Jaque, de Massá” ou o “rei Lemuel, de Massá”, que possuem suas próprias seções no livro de Provérbios (30:1-33; 31:1-9), muito embora não fossem hebreus. Além disso, há estudiosos que discutem a possibilidade de que Provérbios 22:17–24:22 seja uma espécie de “releitura” de um texto egípcio intitulado Ensinamentos de Amenemope devido à semelhança temática e argumentativa de ambos os textos (CARMO, 2017).
Em segundo lugar, os textos sapienciais são considerados atemporais porque versam sobre temáticas comuns ao ser humano independentemente de sua época. Esse discurso, por exemplo, procura tratar de assuntos como relacionamento, etiqueta, trabalho, honestidade, felicidade, sofrimento, justiça social, entre muitos outros relativos à vida cotidiana. Durante muito tempo nos estudos bíblicos, os textos sapienciais eram considerados por acadêmicos como “filosóficos” ou mesmo “antirreligiosos” justamente porque não era possível encontrar nesse corpus os principais temas da fé judaico-cristã, como a justificação pela fé, a chegada do Messias, a terra prometida etc. (SNEED, 2015). Por esse motivo a “religião” apresentada nesses textos possui características mais sincréticas e populares.
No caso do texto bíblico, entende-se que o discurso sapiencial costumava se manifestar a partir de uma forma literária específica, identificada pelos especialistas no מָשָׁל (māšāl, ver Pv 1:6), como explicam Perdue (1994) e Ceresko (1999). Embora o termo seja comumente associado à forma proverbial, devido aos variados contextos em que o termo ocorre na Bíblia Hebraica, o מָשָׁל também poderá ser entendido como termo que representa outros tipos de discursos sapienciais, como a parábola, enigmas e fábulas, como consta em 1 Samuel 10:12, 24:14 e Provérbios 1:6; 26:7, 9 (SCOTT, 1971; MURPHY, 1990). Em virtude da abrangência de formas que o מָשָׁל pode contemplar como gênero literário, entre alguns estudiosos é preferível entendê-lo como um princípio estilístico que contemple, em essência, os enunciados de sabedoria, a saber, a comparação ou a semelhança (CRENSHAW, 1981; SCOTT, 1971). Isso significa que o מָשָׁל, como gênero literário, tem como objetivo argumentar por meio de símiles e metáforas. O sábio, em todo caso, é aquele que consegue instruir didaticamente seus ouvintes por meio de aforismos criativos e provocativos, construídos de maneira comparativa.
Em suma, a “sabedoria” é, nas palavras de O’Connor (1990, p. 13), um “mercado”, em que os comerciantes compartilham recursos em comum para sobreviver aos desafios do cotidiano, independentemente de sua religião, gênero ou classe social. Nesse sentido, o discurso sapiencial é o ponto de encontro da cultura popular universal, e, dessa forma, fala acerca do que há de essencial no ser humano, transcendendo qualquer religião.
Próximo ao desfecho do livro de Eclesiastes na BH, o autor faz questão de oferecer um exemplo daquilo que considera como “grande sabedoria”. Trata-se da breve narrativa que se encontra em 9:13-18. Em termos simplificados, o texto narra uma história em que um rei cercou uma pequena cidade com o intuito de atacá-la. O fato de a cidade ser descrita como “pequena” sugere que ela talvez não possuísse condições para responder à altura da violência que a ameaçava. Felizmente, a salvação da cidade, segundo o texto, surgiu por meio da ação de um “homem pobre, porém sábio”, que “a livrou pela sua sabedoria” (v. 15b) – muito embora não seja explicitada a perspicácia de seu empreendimento. No fim, ao observar o caso, o autor conclui que a sabedoria é mais eficiente do que as armas de guerra, visto que por meio da ação de um homem entendido o exército inimigo foi afugentado.
Embora a narrativa possua um significado instrutivo evidente, ainda é possível aplicar ao texto uma abordagem mais rigorosa a fim de identificar peculiaridades literárias que possam enriquecer o entendimento da história. Para tanto, é necessário recorrer ao texto final, em hebraico, por meio de uma leitura atentiva e sincrônica[1] de seu conteúdo. Para fins comparativos, o texto hebraico de 9:13-18 e sua tradução[2] à língua portuguesa podem ser apresentados respectivamente da seguinte forma:
גַּם־זֺ֛ה רָאִ֥יתִי חָכְמָ֖ה תַּ֣חַת הַשָּׁ֑מֶשׁ וּגְדוֹלָ֥ה הׅ֖יא אֵלָֽי׃
עִ֣יר קְטַנָּ֔ה וַאֲנָשִׁ֥ים בָּ֖הּ מְעָ֑ט וּבָֽא־אֵלֶ֜יהָ מֶ֤לֶךְ גָּדוֹל֙
וְסָבַ֣ב אֹתָ֔הּ וּבָנָ֥ה עָלֶ֖יהָ מְצוֹדׅ֥ים גּדֹלִֽים
וּמָ֣צָא בָ֗הּ אִ֤ישׁ מׅסְכֵּן֙ חָכָ֔ם וּמׅלַּט־ה֥וּא אֶת־הָעִ֖יר בְּחָכְמָת֑וֹ
וְאָדָם֙ לֹ֣א זָכַ֔ר אֶת־הָאִ֥ישׁ הַמִּסְכֵּ֖ן הַהּֽוּא׃
וְאָמַ֣רְתּׅי אָ֔נׅי טוֹבָ֥ה חָָכְמָ֖ה מׅגְּבוּרָ֑ה וְחָכְמַ֤ת הַמּׅסְכֵּן֙
בְּזוּיָ֔ה וּדְבָרָ֖יו אֵינָ֥ם נׅשְׁמָעִֽים׃
דּׅבְרֵ֣י חֲכָמׅ֔ים בְּנַחַ֭ת נׅשְׁמָעׅ֑ים מׅזַּעֲק֥ת מוֹשֵׁ֖ל בַּכְּסִילֽׅים׃
טוֹבָ֥ה חָכְמָ֖ה מׅכְּלֵ֣י קְרָ֑ב וְחוֹטֶ֣א אֶחָ֔ד יְאַבֵּ֥ד טוֹבָ֥ה הַרְבֵּֽה׃
13Também vi este exemplo de sabedoria debaixo do sol, que foi para mim grande. 14Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens; veio contra ela um grande rei, sitiou-a e levantou contra ela grandes baluartes. 15Encontrou-se nela um homem pobre, porém sábio, que a livrou pela sua sabedoria; contudo, ninguém se lembrou mais daquele pobre. 16Então, disse eu: melhor é a sabedoria do que a força, ainda que a sabedoria do pobre é desprezada, e as suas palavras não são ouvidas. 17As palavras dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos de quem governa entre tolos. 18Melhor é a sabedoria do que as armas de guerra, mas um só pecador destrói muitas coisas boas.
A princípio, embora a narrativa aparente integridade entre os v. 13-18, há debates acerca de sua verdadeira extensão. Alguns estudiosos preferem enxergá-la a partir de unidades menores, como 9:13-18 (FOX, 1999; LONGMAN III, 1999) e outros que abordam o texto de uma perspectiva mais ampla, a saber, 9:11–10:15 (SEOW, 1997). Em detrimento de tais discussões, a estrutura escolhida para esta leitura procura privilegiar os v. 13-18 do capítulo 9 que, diferentemente do que ocorre no Eclesiastes como um todo, oferece um argumento com base em uma parábola, que é reforçada com a utilização de pelo menos dois provérbios (BROWN, 2000; KAISER JR., 2015).[3] Embora seja inevitável a existência de alguma relação desta porção com o texto que a rodeia, foi preferível limitar sua leitura a 9:13-18 por conta da pungência de conteúdo imediato e da possibilidade, já atestada, de lê-lo como uma unidade textual, sem muitas discussões preliminares que possam ocupar o espaço deste trabalho.
A afirmação introdutória, no v. 13, segundo alguns autores, já deve conduzir o leitor à desconfiança do que o Eclesiastes pretende argumentar. Embora afirme ter observado uma “grande sabedoria”, o autor, na verdade, relata um conto sapiencial às avessas. Segundo Bartholomew (2009, p. 315, tradução livre), “Eclesiastes conta uma história do que observou como um exemplo de ‘sabedoria’, mas que acaba sendo um exemplo do porquê a ‘sabedoria’ não tem valor”. Embora salve a cidade, a sabedoria é, no final, esquecida; em vez de receber o louvor, ela é condenada ao anonimato. Assim, existe a possibilidade de que o Eclesiastes esteja introduzindo a parábola de maneira irônica, quando alega que “também vi este exemplo de sabedoria debaixo do sol, que foi para mim grande”, pois caçoa do que, de fato, não é digno de um comportamento sensato: “A história, na verdade, demonstra as limitações da sabedoria [...] ela não é apreciada ou recompensada no final, e é esse fato que causa uma grande impressão no Eclesiastes” (LONGMAN III, 1997, p. 234, tradução livre; MURPHY, 1992, v. 23a, p. 100).
Em todo caso, a história é introduzida a partir de uma comparação evidente no v. 14: a cidade é apresentada ao leitor literalmente como uma “pequena cidade” (ִ֣יר קְטַנָּ֔ה); e, ainda assim, o texto enfatiza que um “grande rei” (מֶ֤לֶךְ גָּדוֹל֙) atentou contra ela. A disparidade entre as grandezas no embate comunica a noção de que a condenação da cidade é inevitável em virtude de sua fragilidade. “Em outras palavras, o Eclesiastes imagina uma batalha tremendamente desigual. Da perspectiva dos recursos humanos, a cidade não teria chance” (LONGMAN III, 1997, p. 234, tradução livre). Dessa maneira, não por acaso, a parábola já comunica desde a introdução que as “armas de guerra” ou os “recursos humanos” são falhos e, muitas vezes, ineficazes diante de situações extremas. Naturalmente, uma alternativa precisa ser viabilizada e, de preferência, alguma que não dependa de forma exclusiva da violência humana.
Além disso, parece existir uma aparente associação temática entre dois versos (v. 12 e 14) a partir da utilização de um jogo de palavras (BARTHOLOMEW, 2009). Na porção anterior, o v. 12 fala a respeito da imprevisibilidade da vida, utilizando-se de um símile: “como os peixes que se apanham com a rede [מְצוּדָה, meṣûdāh] traiçoeira [...] assim se enredam também os filhos dos homens no tempo da calamidade, quando cai de repente sobre eles.” O v. 14, curiosamente, alega que o grande rei sitiou a cidade “e levantou contra ela grandes baluartes [מְצוֹדִים, meṣôdîm].” Embora sejam termos semelhantes, o significado do v. 14 ainda permanece incerto, e depende de outras referências textuais para ser traduzido dessa maneira (ver Ec 7:26; MURPHY, 1992, v. 23a). Ao passo que a primeira expressão, מְצוּדָה, “rede”, ocorre no sentido ofensivo no v. 12, isto é, a caça, o termo מְצוֹדִים, “baluarte”, costuma ocorrer no sentido defensivo no contexto da guerra (BARTHOLOMEW, 2009; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 2006). Assim, de certa maneira, o termo utilizado no v. 12 (מְצוּדָה) parece complementar o significado do segundo no v. 14 (מְצוֹדִים), conferindo à investida militar do grande rei um aspecto de artimanha, ou armadilha, além de suas óbvias implicações e significados no contexto de guerra.
Em face ao perigo eminente, a parábola conta que “foi encontrado um homem” (וּמָ֣צָא בָ֗הּ אִ֤ישׁ, na voz passiva) entre os residentes na cidade (MURPHY, 1992, v. 23a; ALTER, 2019). Em outras palavras, ele não se ofereceu voluntariamente a auxiliar os cidadãos na ocasião da ameaça, mas foi impelido por eles a tomar alguma iniciativa. Trata-se, portanto, de um pedido de socorro. Além do mais, muito embora em diversas traduções a expressão אִישׁ מׅסְכֵּן (’îš miskēn) seja vertida como “homem pobre”, parece mais provável que ela ofereça um contraste com a elite da sociedade: o sábio encontrado poderia estar meramente associado à plebe, isto é, ao cidadão comum (SEOW, 1997; BARTHOLOEW, 2009). Ou seja, é possível que o texto não esteja preocupado com os recursos financeiros do protagonista, mas que pretenda comunicar a ideia de que ele era um sujeito como qualquer outro.
Ainda que alguns estudiosos possam rejeitar a possibilidade de uma leitura ambígua de וּמׅלַּט־ה֥וּא (BARTHOLOMEW, 2009; ALTER, 2019, v. 3; FOX, 1999), e atribuam ao evento um aspecto de concretude, talvez seja possível entender ambos os sentidos, já que nas duas situações a sabedoria é desprezada – e o sábio permanece como uma persona non grata na cidade em que reside[4]. Isso reforça a ideia central de que “se a sabedoria não provém de uma fonte de prestígio, ela está susceptível a ser ignorada e esquecida” (ALTER, 2019, p. 11.161, tradução livre). É possível que o autor esteja criando um cenário para comunicar um sentimento de tensão: uma cidade frágil é assolada por uma força esmagadora e não possui recursos humanos para combatê-la; e, mesmo assim, despreza a única ferramenta que poderia livrá-la do ataque, a sabedoria. O leitor é abandonado no campo de batalha, e a parábola exige dele um desfecho que não é solucionável, já que a cidade ignora o único artifício que poderia salvá-la (BROWN, 2000, p. 97).
O verso seguinte (v. 16) parece construir uma assonância que pode servir como recurso sonoro para fixar a lição de moral desejada como centro instrutivo da narrativa, devido ao seu aspecto rítmico: טוֹבָ֥ה חָָכְמָ֖ה מׅגְּבוּרָ֑ה (ṭôvāh ḥoḵmāh miggḇûrāh), literalmente: “melhor a sabedoria do que a força.” Esse provérbio carrega a fórmula “melhor que”, utilizado no discurso sapiencial bíblico com o intuito de comparar duas ideias ou situações por meio da expressão técnica comparativa ...טוֹבָ֥ה... מׅ (tôḇā... mi...). Devido à sua brevidade e fluidez sonora, o provérbio encontra-se alocado de forma estratégica como conclusão do argumento central da parábola, em torno dos v. 13-18, e pode ser considerado a “lição de moral” da narrativa – essa instrução sapiencial, inclusive, não está limitada a esta situação e encontra paralelos na BH[5].
Em seguida, o v. 17 apresenta outro provérbio utilizando-se de um paralelismo que contrasta as “palavras dos sábios” (דּׅבְרֵ֣י חֲכָמׅ֔ים) ao “clamor do governante de tolos” (זַּעֲק֥ת מוֹשֵׁ֖ל בַּכְּסִילֽׅים). A primeira é pronunciada “por meio da quietude” (בְּנַחַ֭ת), como se a alegação não precisasse de expressão sonora para persuadir devido à sutileza e perspicácia do argumento (BARTHOLOMEW, 2009; LONGMAN III, 1997). Já o segundo, na tentativa de fazer-se crível, precisa utilizar-se do artifício sonoro exagerado para chamar atenção a fim de maquiar a fragilidade de sua razão. A segunda forma de persuasão, segundo o Eclesiastes, é comum entre os que lideram os tolos, que parecem agir de forma irrazoável, impetuosa e barulhenta[6]. Essa atitude é atribuída ao “governante” (מוֹשֵׁ֖ל), ou seja, uma alusão provável ao rei que sitiou a cidade no v. 14.
Por fim, uma vez mais, o v. 18 se configura como um provérbio de fórmula “melhor que”, que normalmente apresenta ensinamentos com base em comparações por meio da expressão técnica ...טוֹבָ֥ה... מׅ. Em termos temáticos, ele repete o mesmo truísmo do provérbio expresso no v. 16, reorientando o leitor ao ensinamento principal da parábola e, finalmente, conferindo um sentido definitivo ao ensinamento proposto: melhor a sabedoria do que as armas de guerra.
Parábola é uma história em quadrinhos publicada em 1988 pela Marvel Comics e assinada pelo americano Stan Lee (1922-2018), responsável pelo roteiro,[7] e pelo quadrinista francês Moebius, pseudônimo de Jean Giraud (1938-2012), que fez a arte. A edição usada no presente artigo é comemorativa e apresenta textos de apoio e esboços originais, lançada pela Panini Books em português no ano de 2013 (LEE, 2013).
A história de Parábola é protagonizada pelo super-herói Surfista Prateado, criação de Stan Lee e Jack Kirby (1917-1994), que se interpõe em um conflito contra seu criador e nêmesis: a entidade cósmica Galactus, conhecida pela alcunha de “Devorador de mundos”, pois sobrevive às custas do consumo de núcleos de planetas em atividade. Antes de fazer uma sinopse da trama de Parábola, é necessário resgatar a origem do protagonista e sua relação conflituosa com Galactus.
O Surfista Prateado apareceu pela primeira vez como um arauto do vilão Galactus na revista Fantastic Four, número 48, de 1966. Seu nome faz menção à sua pele revestida de prata e à sua prancha voadora, que o permite viajar pelo espaço sideral à procura de planetas que possam ser consumidos por Galactus. É em uma dessas viagens de reconhecimento que ele encontra a Terra, sem, contudo, convencer o “Devorador de mundos” a não consumir o planeta. Comovido pela “nobreza” da humanidade, o Surfista Prateado alia-se ao Quarteto Fantástico, família de super-heróis da Terra, expulsando Galactus que, por sua vez, promete jamais destruir o planeta azul. Por sua traição, o Surfista Prateado é confinado na Terra, impedido de viajar novamente pelo espaço por conta de uma barreira cósmica na atmosfera, criada por Galactus (BIBLIOTECA HISTÓRICA MARVEL , 2008).
É importante ressaltar as principais influências na construção do personagem Surfista Prateado que, no presente artigo, são vistas como necessárias para uma compreensão mais plena de Parábola e, consequentemente, de suas intersecções discursivas e temáticas com Eclesiastes. Os traços e ênfases mais importantes do personagem para o objetivo do presente artigo e que foram descritas por estudiosos de quadrinhos, biógrafos de Stan Lee ou do próprio criador do personagem podem ser resumidas em dois tópicos:
Levando as influências literário-teológicas do personagem em conta, é preciso esclarecer que a trama de Parábola é uma história cujo pano de fundo é apocalíptico, com forte crítica ao messianismo e ao extremismo religioso. A trama se inicia em um futuro com elementos distópicos quando o Surfista Prateado parece ser o único super-herói vivo, mas que se mantém em anonimato junto à sociedade até que a chegada de Galactus põe em risco a existência humana. O vilão retorna à Terra anunciando paz e fazendo com que a população o adore – e se destrua ao mesmo tempo. Galactus, em sua aparição com ares de teofania, demanda adoração e fé, e uma ordem religiosa aproveita o evento e se fortalece a partir de reinterpretações de seus discursos, gerando adesão em massa e ações fanáticas.
O único ser capaz de ler as intenções de Galactus e lutar para expor o plano maquiavélico do vilão é o Surfista Prateado que, indignado com a facilidade com que a humanidade se rende à fé cega, consegue mais uma vez expulsar a entidade cósmica da Terra. Contudo, ao final do embate, a população elege o Surfista Prateado como uma figura divino-messiânica com a mesma rapidez que havia feito com Galactus, não deixando outra opção ao herói a não ser fingir-se um déspota para evitar que a humanidade cometa o mesmo erro mais uma vez.
A relação discursiva entre o texto bíblico e a graphic novel Parábola é notável, a começar pela utilização do título da história em quadrinhos, como se pode ver na Figura 1. O termo imediatamente remete ao imaginário judaico-cristão, isto é, ao método de ensino utilizado por Jesus Cristo nos evangelhos para anunciar ao povo a chegada do Reino de Deus (ver Mt 13:34-36; Mc 12:1-12; Lc 15–16:13; 18:1-8). Além disso, como foi analisado anteriormente, ele também corresponde ao discurso sapiencial na BH; ou seja, ao gênero instrutivo de Jó, Provérbios e Eclesiastes – e, não obstante, à cultura de ensinamentos sapienciais compartilhada entre diversas culturas, a exemplo do AOM, como já desenvolvido.
Figura 1 - Capa da graphic novel Parábola
Como foi averiguado anteriormente, a expressão hebraica מָשָׁל é considerada por muitos biblistas como termo técnico para designar um “discurso de sabedoria” ou o “gênero literário sapiencial”, que poderá ocorrer por meio de provérbios, enigmas, parábolas ou outra forma literária que se utilize de comparações para cumprir com seus objetivos didáticos. Em outros termos, se interpretado à luz do discurso sapiencial bíblico, o título da graphic novel sugere a apresentação de um conteúdo de instrução, e não apenas a narração de uma superaventura. Disto, implica-se a necessidade de ler a obra de Moebius e Stan Lee de uma perspectiva moralizante, como se o enredo da história não fosse um fim em si mesmo, mas a lição metafórica que poderá ser retirada da narrativa. Segundo biblistas, a “essência” do מָשָׁל está no seu propósito didático, mas também no seu método comparativo; o מָשָׁל não é um fim em si mesmo, mas se utilizará de critérios variados para cumprir com seu objetivo educativo e moralizante.
Em uma cena da HQ, por exemplo, essa ideia pode ser evidenciada de maneira mais prática. No desfecho, Colton, o ex-líder de uma religião fundamentalista criada para endeusar Galactus, é o único que percebe as intenções didáticas do Surfista Prateado após salvar o mundo da invasão do devorador de planetas. Embora tenha fundado uma seita para manipular a população e, assim, conseguir algum favor do vilão, no fim, Colton se une à turba, reconhece seus erros e roga para que o Surfista lidere a humanidade com a sua sabedoria. O Surfista, no entanto, percebe que a humanidade não precisa de um líder, mas de autonomia e bom senso; por isso, finge aceitar o cargo e dramatiza um discurso autoritário, com o objetivo de que seus ouvintes compreendam o absurdo e recusem por si mesmos qualquer liderança extraterrestre. Nesse contexto, Colton é o primeiro a perceber que o discurso e o protagonismo do Surfista Prateado querem dizer, em suas palavras, “outra coisa”; ou seja, que a lição de moral comunicada pelo herói deve ser interpretada de maneira figurativa, como se ele estivesse tentando comunicar um ensinamento (ver Figura 2).
Figura 2 - O insight de Colton
Ambas as narrativas possuem uma característica introdutória marcante na ocasião em que descrevem ao leitor as condições iniciais para que a história seja desenvolvida. Tanto na narrativa bíblica de Eclesiastes 9:13-18 quanto na HQ Parábola entende-se o embate de duas grandezas desproporcionais: em ambos os casos uma cidade pequena é atacada por um grande inimigo; e nas duas ocasiões essa situação é descrita como um acontecimento fatal: a introdução de uma calamidade impossível de ser detida pela força humana.
Conforme analisado acima, por um lado, em Eclesiastes 9:13-18 existe o contraste entre a “pequena cidade” e o “grande rei” para introduzir uma situação irreversível; um prelúdio ao ensinamento central da narrativa, a saber: existem ocasiões em que as armas de guerra, ou a força humana, são ineficientes. Paralelamente, no roteiro da graphic novel existe a contínua ênfase, tanto na narração quanto na fala dos personagens, de que a nave e o inimigo que assolam o planeta são gigantescos comparados aos terráqueos. Do decorrer da introdução, são comuns comentários como: “a grande nave” (p. 13), “colosso que paira” (p. 14), “raça de gigantes” (p. 10), “gigantesca nave” (p. 10), “é imensa” (p. 10) ou “é maior que uma montanha” (p. 15).[8] Dessa forma, essas afirmações introdutórias parecem comunicar na graphic novel o mesmo sentimento de fatalidade de Eclesiastes 9:13-18, quando encena uma situação em que a disparidade das grandezas que se confrontam, resultando na previsão de um desfecho fatal e a inutilidade dos esforços e recursos humanos diante do inevitável.
A mesma ideia é apresentada em Parábola de uma perspectiva gráfica, em que o vilão e a nave são apresentados ao lado da cidade, que é visualizada em miniatura – quase como uma “maquete” em questão de grandeza (ver p. 13, 14 e 16). Nas palavras de Moebius: “[eu] queria devolver a Galactus o aspecto monumental que eu achava inerente ao personagem. Quando digo monumental, não falo apenas em tamanho; Galactus podia ser desenhado em escala muito pequena e, mesmo assim, de modo a parecer um verdadeiro gigante” (LEE, 2013, p. 43). A ilustração contrastante parece comunicar a disparidade entre as forças alienígenas e humanas, quando colocadas em embate. Em uma das páginas em que essa perspectiva é apresenta de forma gráfica, a reação da humanidade é descrita pelo narrador em tons de desespero: “Nunca antes olhos humanos contemplaram uma vista assim. O único pensamento que cruza as mentes é correr, fugir, buscar abrigo... Qualquer coisa para evitar a estonteante aparição de pesadelo que lentamente desce e desce...” (p. 14, grifo nosso). A nave não é apenas grande: como em Eclesiastes 9:13-18, ela desafia a força humana e introduz um episódio de caos (ver Figura 3 e 4).
Figura 3 - A nave de Galactus entra na órbita da Terra
Figura 4 - A nave de Galactus pousa na Terra
Um aspecto marginal, porém, curioso em ambos os materiais em comparação foi o discurso cínico do vilão que agride a cidade. Em Eclesiastes 9:13-18, o texto hebraico parece fazer um jogo de palavras entre dois termos מְצוּדָה, meṣûdāh (v. 12) e מְצוֹדִים, meṣôdîm (v. 14), respectivamente “rede” e “baluarte”. Esse recurso é utilizado no texto de maneira a conectar ambas as palavras de uma perspectiva temática, unindo, assim os seus significados. Quando o segundo termo é utilizado no v.14, a sua semelhança com o termo anterior no v. 12 torna inevitável a associação de ambos os termos, conferindo a ideia de que o “baluarte” atua como a “rede”; isto é, que a investida do grande rei possui um aspecto de artimanha ou armadilha velada.
De uma perspectiva muito semelhante, quando Parábola introduz a chegada de Galactus ao planeta Terra, ele passa a expressar um discurso fingido a fim de armar uma emboscada à humanidade: anteriormente, o vilão havia prometido ao Surfista Prateado que não devoraria a Terra. No entanto, quando retorna, ele incute nos terráqueos um discurso de ódio e libertinagem a fim de que os próprios seres humanos se aniquilem e, por fim, ele possa se alimentar do planeta. Com essa armadilha, Galactus estaria cumprindo sua promessa e, ao mesmo tempo, teria o direito de devorar a Terra; na prática os seres humanos foram os protagonistas de sua própria destruição, e não o recém-chegado vilão. Em suas palavras: “Vim em paz” (p. 26); “Em troca da sua adoração, trago-lhes uma nova era” (p. 16); “Não existe nada errado! Não existe pecado! Prazer é tudo” (p. 19); “Se quiserem ser salvos, façam o que quiserem! Tomem o que quiserem” (p. 19), como mostra a Figura 5. O Surfista Prateado, enfim, entende as verdadeiras intenções de Galactus, e observa: “Depois de jurar não acabar com a terra à força, o faz por meio da fraude” (p. 26), como a Figura 6 demonstra.
Figura 5 - O discurso cínico de Galactus
Figura 6 - O Surfista desmascara Galactus
Outra semelhança notável entre as obras comparadas é a função social cumprida por ambos os protagonistas. Em Eclesiastes 9:13-18, uma definição mais precisa ao termo אִישׁ מׅסְכֵּן pode ser vertida como “homem comum”, isto é, igualado ao nível do cidadão pacato, comunicando a ideia de que o sábio que salvou a cidade do grande rei poderia ser confundido com qualquer outra pessoa. Essa percepção pode, inclusive, sublinhar a noção de que a sabedoria não faz distinção de classes sociais, diferentemente do julgamento humano. É possível que o aspecto simples e pacato do sábio tenha sido o responsável pela marginalização e esquecimento do herói após a sua empreitada contra o grande rei. Quando não é proveniente de uma fonte prestigiosa, a sabedoria tende a ser esquecida.
De maneira análoga, na graphic novel a mesma ideia é repetida. Embora o Surfista Prateado represente uma personalidade superior em caráter e atributos físicos em comparação à humanidade, a sua atuação no anonimato sublinha a possibilidade de que a salvação da cidade poderia depender de um sujeito qualquer que possuísse sabedoria e bom senso. Quando encontrado pela liderança religiosa nas ruas, ele é identificado como um “sem-teto delirante” (p. 21), como mostra a Figura 7. A sua voz, diante das autoridades religiosas da narrativa, é representada como a de um sujeito simples e solitário: “Ele é só um homem, apenas uma voz” (p. 21). Não obstante, o herói esclarece a seus opositores que, embora possua superpoderes, a tarefa de derrotar Galactus não depende da força ou dos recursos humanos. Quando questionado a respeito da sua capacidade de realizar algo contra o inimigo, a sua resposta é categórica: “qualquer homem pode” (p. 22). O discurso do protagonista, dessa forma, parece enfatizar o aspecto popular da sabedoria, e a possibilidade do cidadão comum de alcançá-la (ver Figura 8).
Figura 7 - O Surfista Prateado confronta as autoridades religiosas
Figura 8 - O Surfista Prateado revela sua identidade
A sabedoria ainda é apresentada de outra maneira em Eclesiastes 9:13-18. Além de, muitas vezes, ser encontrada no anonimato e ser desprezada, ela também é observada em expressões sutis e convincentes. Segundo texto, mesmo “por meio da quietude”, o bom senso sapiencial pode persuadir o ouvinte; o contrário ocorre como o “clamor do governante de tolos”, que por implicação, é expresso com arrogância, violência e acúmulo de palavras irrefletidas. Na parábola bíblica, as “palavras dos sábios” são dignas de ser escutadas, no contexto literário sapiencial elas costumam ocorrer por meio de ensinamentos proverbiais, enigmas, admoestações e mesmo por meio de questionamentos retóricos que visam a reflexão. Quando escutadas, essas palavras podem conduzir à vida, “mas um só pecador destrói muitas coisas boas” (Ec 9:18), por meio de afirmações irrefletidas e extremas.
Em Parábola, grande parte do discurso do Surfista Prateado pode ser classificado como sapiencial justamente por seu caráter pedagógico, instrutivo, conselheiro e questionador. São comuns ensinamentos, como: “Fé sem bom senso apenas degrada o espírito divino” (p. 22), “Não existe desonra no fracasso” (p. 23) e “A pureza vem da alma, não do local de origem” (p. 24). Além disso, o herói também se coloca em uma posição questionadora: “Não enxergamos com o coração e a mente, além dos olhos?” (p. 24), “questionar é heresia?” (p. 33) ou “Quem pode saber onde termina a realidade e começa a lenda?” (p. 24). Dessa maneira, o Surfista Prateado incorpora o discurso sapiencial de maneira integral, não apenas por oferecer ensinamentos proverbiais, mas também por incutir a provocação filosófica (ver Figura 9).
Figura 9 - Palavras de sabedoria do Surfista Prateado
O oposto também é evidenciado: do outro lado da narrativa, a liderança religiosa e a humanidade insensata expressam um discurso escandaloso, irrefletido e violento. Do início ao fim da narrativa os cidadãos refletem uma maneira incauta, guiada pelos ânimos igualmente inconsequentes de seu líder religioso, Colton: “Galactus nos salvará!” (p. 19), “Ele nos conduzirá ao nirvana!” (p. 19), “Matem o nojento inimigo de Deus!” (p. 19), “Cantem louvores a Lorde Galactus [...] Pois quebrou as amarras das leis feitas pelos homens” (p. 36). Ao contrário da sabedoria do Surfista, o fanatismo religioso possui um estilo categórico, imperativo e sem espaço para reflexão; ele ordena comportamentos irrefletidos e, não raro, violenta os que pensam o contrário (ver Figura 10).
Figura 10 - Clamor e violência da multidão religiosa
Como visto até aqui, os aspectos literários – como estrutura, tema e objetivo – que compõem o texto religioso no passado não estão distantes dos aspectos literários encontrados nas HQs atuais. Uma vez que a literatura sapiencial lida com problemas e demandas atemporais, universais e populares da humanidade, é possível também enxergá-los em produções populares contemporâneas da indústria do entretenimento, como o mercado de histórias em quadrinhos. De igual modo, o discurso sapiencial é capaz de comunicar lições moralizantes e reflexivas por meio de formas literárias variadas que, ainda assim, possuem como elemento básico o princípio da comparação.
A graphic novel Parábola, ao narrar a história da chegada de Galactus à Terra e as tentativas do Surfista Prateado de levar discernimento aos humanos, explora diversos elementos discursivos presentes na parábola milenar do sábio que salvou (ou não) a cidade cercada por um poderoso rei em Eclesiastes 9:13-18. As intersecções entre as duas obras – Eclesiastes e a graphic novel da Marvel Comics – começa a partir do próprio título da segunda, Parábola, que evoca o imaginário judaico-cristão do gênero sapiencial religioso da BH e Cristã e sugere mais do que a narração de uma superaventura, mas especialmente a apresentação de um conteúdo de instrução.
A figura do herói solitário, que aparece disfarçado de homem comum, é análoga à descrição do sábio em Eclesiastes. Dessa forma, na fala do Surfista Prateado percebe-se uma característica comum ao texto sapiencial, isto é, a ideia de que a sabedoria pode ser alcançada por pessoas comuns, do povo. Outros paralelos são igualmente evidenciados, como: a disparidade das grandezas em confronto; a impossibilidade de uma investida à força contra a ameaça externa; o caráter de cilada característico da ofensiva inimiga; o contraste entre o “discurso do sábio” e o “discurso dos tolos”; e a própria caracterização do surfista como um sábio, por conta de seus enunciados proverbiais e personalidade. Dessa forma, a estrutura de conto sapiencial às avessas de Eclesiastes 9 se repete na graphic novel Parábola, uma vez que em ambos os textos a sabedoria, mesmo (aparentemente) vitoriosa, é relegada à marginalidade e à invisibilidade, com uma ênfase contundente de que a sabedoria é, de fato, mais efetiva do que a força.
Naturalmente, em se tratando de duas obras distintas, há aspectos que se comparariam com dificuldade. Não há, por exemplo, em Eclesiastes, qualquer conotação messiânica ou de fanatismo religioso na atuação dos personagens. Carece também, em Eclesiastes, o protagonismo profético dramatizado pelo surfista, que nesta leitura se limita à caracterização do sábio – embora a distinção entre tais categorias possam ser discutida. Um aproveitamento e expansão deste estudo para leitura comparativa de Parábola poderiam ser realizados a partir, por exemplo, de sua relação com os evangelhos.
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[1] A análise do texto bíblico, nos estudos acadêmicos, utiliza-se de um conjunto variado de aproximações, dentre as quais estão a “leitura diacrônica”, que privilegia o estudo dos rastros do texto na sua história de construção, e a “leitura sincrônica”, que privilegia a análise do texto a partir de sua apresentação final, conforme apresentada na atualidade.
[2] O texto em português foi retirado da versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada em 1999 pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB); o texto em hebraico foi retirado, na íntegra, da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, também editada pela SBB.
[3] Resquícios de parábolas ocorrem brevemente em apenas duas ocasiões no decorrer do livro (4:13-16 e 5:13-15 [v. 12-14 em hebraico]).
[4] Essa perspectiva, inclusive, faz ecoar as palavras de Jesus, no Novo Testamento: “Não há profeta sem honra, senão na sua terra, entre os seus parentes e na sua casa” (Mc 6:4).
[5] Em outros contextos, essa ideia é encontrada como um truísmo sapiencial, a exemplo de Provérbios 24:5-6: “O homem sábio é forte, e o homem de conhecimento consolida a força. Com conselhos prudentes tu farás a guerra; e há vitória na multidão dos conselheiros.” Ou Provérbios 21:22: “O sábio escala a cidade do poderoso e derruba a força da sua confiança.” Além disso, É possível que a lição central desta parábola convide à narrativa a participação de alguns intertextos na Bíblia Hebraica que parecem comunicar a mesma ideia (ver 2Sm 20:16-22; Ec 4:13-16).
[6] O provérbio também faz soar um truísmo sapiencial comum à Bíblia Hebraica, como em Provérbios 17:27-28: “O que possui o conhecimento guarda as suas palavras, e o homem de entendimento é de precioso espírito. Até o tolo, quando se cala, é reputado por sábio; e o que cerra os seus lábios é tido por entendido.”
[7] Dado o fato de que Stan Lee tenha origem judaica, é possível que seu background cultural e religioso tenha influenciado no processo de escrita do roteiro.
[8] Talvez seja possível argumentar que a “grandeza” de Galactus se manifeste também nas ocasiões em que é enfatizado o seu poder: “o poder é meu” (p. 16), “ninguém ousa” (p. 17), “seu poder” (p. 17), “ele é o poder” (p. 21), “poderoso demais” (p. 24).