Paulo Nogueira
Doutor em Teologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Professor da Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Campinas.
A obra do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) é repleta de religião. Ainda que não fosse particularmente religioso e muito menos defendesse alguma confissão religiosa, Borges transitava em seus textos por temas, mitos, referências histórias, personagens, doutrinas e debates teológicos relacionados com as mais diferentes tradições religiosas. Em seus textos encontramos, santos, heresiarcas, cabalistas, releituras da Escritura, apócrifos, textos gnósticos, comentários ao budismo, à sabedoria islâmica e ao Corão, entre outros. Isso seria o suficiente para dizer que religião é um dos eixos centrais de sua obra? Poderíamos percorrer sua vasta produção elencando enciclopedicamente (um procedimento borgeano) suas referências a tantas tradições, personagens, escrituras, ritos etc. Isso seria o suficiente? Provavelmente sim, ainda que religião teria que dividir lugar com outros eixos igualmente ou talvez mais importantes, como a Argentina (e a argentinidade), a literatura e a criação ficcional, a memória, os enigmas da linguagem, o destino humano e sua indeterminação, seus autores preferidos, a biblioteca de infância e a imaginária, para listar apenas estes. Enumerar o tema religião entre estes não a desmereceria de forma alguma. Ela ainda seria importante para entendê-lo e seria uma porta de entrada para o seu rico universo ficcional e simbólico. Nossa intuição, no entanto, é que não se trata apenas disso.
A obra de Borges não versa apenas sobre temas religiosos, como se estes temas devessem ocupar um lugar especial em seu acervo. Religião em Borges é mais do que isso. Ela tem um lugar como um modo especial de versar sobre a realidade ou, pelo menos, como a base que potencializa essa forma de versar. Na religião e em suas formas poéticas e narrativas, provenientes do pensamento mitopoético, a realidade pode ser efetivamente ficcionalizada. Essa característica do pensamento mitopoético, segundo a qual a realidade pode ser suspensa, invertida, transfigurada, distorcida e recriada ecoa na literatura. Isso acontece de várias formas na obra de Borges, ao menos analogamente. Por exemplo, quando ele suspende as referências de tempo e de espaço em relatos como La ruinas circulares ou El milagro secreto. Ou quando Borges submete toda a realidade à decifração de signos herméticos, cujas chaves de decodificação são igualmente desconhecidas ou (aparentemente) aleatórias, como em La Escritura del Dios. Onde estaria escrita a mensagem que nos libertaria do cárcere? Em que língua está escrita? Estaria codificada nas manchas da pele de um jaguar? Devemos decompor essas imagens ou revisitá-las no mundo do sonho? Em Borges a ficção que nos dá acesso ao mundo não se encontra apenas nos livros – como se isso fosse pouco, dada a infinitude da Biblioteca de Babel -, mas em todo o mundo: o cosmo todo é um grande livro, cujo significado é infinito. Desta forma, Borges pode passear por textos, debates e interpretações reais ou imaginárias, como um grande cabalista (que contempla o Aleph), um heresiarca, um evangelista, um escritor de apócrifos, um intérprete de Escrituras, um habitante de uma biblioteca labiríntica.
Se a obra de Borges não é apenas tematicamente relacionada à religião, mas também pode ser lida em analogia ao modo mitopoético (quase) religioso de narrar o mundo, nos chama a atenção a relativa atenção que é dedicada à sua obra nos estudos de religião no Brasil, mesmo quando se trata de estudos de literatura e religião. Borges parece exigir de nós como leitores e como intérpretes uma rendição frente ao poder de criação da ficção literária. A literatura não é apenas meio de acesso à realidade, ou uma forma relevante de falar sobre as coisas, ela é um espaço de criação (poiesis) de mundo. Este dossiê é um convite para que mais estudiosos de religião e pesquisadores da área literatura e teologia se debrucem sobre a obra do mestre argentino, saboreando suas páginas e revigorando nelas nosso olhar sobre o poder da ficção na literatura e na religião.