Editorial

Borges e a religião


Antonio Genivaldo Cordeiro de Oliveira
Equipe editorial 


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A obra do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) é repleta de religião. Ainda que não fosse particularmente religioso e muito menos defendesse alguma confissão religiosa, Borges transitava em seus textos por temas, mitos, referências histórias, personagens, doutrinas e debates teológicos relacionados com as mais diferentes tradições religiosas. Em seus textos encontramos, santos, heresiarcas, cabalistas, releituras da Escritura, apócrifos, textos gnósticos, comentários ao budismo, à sabedoria islâmica e ao Corão, entre outros. Isso seria o suficiente para dizer que religião é um dos eixos centrais de sua obra? Poderíamos percorrer sua vasta produção elencando enciclopedicamente (um procedimento borgeano) suas referências a tantas tradições, personagens, escrituras, ritos etc. Isso seria o suficiente? Provavelmente sim, ainda que religião teria que dividir lugar com outros eixos igualmente ou talvez mais importantes, como a Argentina (e a argentinidade), a literatura e a criação ficcional, a memória, os enigmas da linguagem, o destino humano e sua indeterminação, seus autores preferidos, a biblioteca de infância e a imaginária, para listar apenas estes. Enumerar o tema religião entre estes não a desmereceria de forma alguma. Ela ainda seria importante para entendê-lo e seria uma porta de entrada para o seu rico universo ficcional e simbólico. Nossa intuição, no entanto, é que não se trata apenas disso.

A obra de Borges não versa apenas sobre temas religiosos, como se estes temas devessem ocupar um lugar especial em seu acervo. Religião em Borges é mais do que isso. Ela tem um lugar como um modo especial de versar sobre a realidade ou, pelo menos, como a base que potencializa essa forma de versar. Na religião e em suas formas poéticas e narrativas, provenientes do pensamento mitopoético, a realidade pode ser efetivamente ficcionalizada. Essa característica do pensamento mitopoético, segundo a qual a realidade pode ser suspensa, invertida, transfigurada, distorcida e recriada ecoa na literatura. Isso acontece de várias formas na obra de Borges, ao menos analogamente. Por exemplo, quando ele suspende as referências de tempo e de espaço em relatos como La ruinas circulares ou El milagro secreto. Ou quando Borges submete toda a realidade à decifração de signos herméticos, cujas chaves de decodificação são igualmente desconhecidas ou (aparentemente) aleatórias, como em La Escritura del Dios. Onde estaria escrita a mensagem que nos libertaria do cárcere? Em que língua está escrita? Estaria codificada nas manchas da pele de um jaguar? Devemos decompor essas imagens ou revisitá-las no mundo do sonho? Em Borges a ficção que nos dá acesso ao mundo não se encontra apenas nos livros – como se isso fosse pouco, dada a infinitude da Biblioteca de Babel -, mas em todo o mundo: o cosmo todo é um grande livro, cujo significado é infinito. Desta forma, Borges pode passear por textos, debates e interpretações reais ou imaginárias, como um grande cabalista (que contempla o Aleph), um heresiarca, um evangelista, um escritor de apócrifos, um intérprete de Escrituras, um habitante de uma biblioteca labiríntica. 

Se a obra de Borges não é apenas tematicamente relacionada à religião, mas também pode ser lida em analogia ao modo mitopoético (quase) religioso de narrar o mundo, nos chama a atenção a relativa atenção que é dedicada à sua obra nos estudos de religião no Brasil, mesmo quando se trata de estudos de literatura e religião. Borges parece exigir de nós como leitores e como intérpretes uma rendição frente ao poder de criação da ficção literária. A literatura não é apenas meio de acesso à realidade, ou uma forma relevante de falar sobre as coisas, ela é um espaço de criação (poiesis) de mundo. 

O tema do dossiê é aprofundado pela análise do O Aleph de 1949, no qual Jorge Luis Borges trata Deus como personagem escrito por Antonio Carlos de Melo Magalhães e Fernanda Medeiros de Figueirêdo. Com base no universo bíblico/cabalístico, tecem discursos teológicos mostram as correlações entre o natural e o sobrenatural ora harmônicas, ora discordantes que vão se desenvolvendo por meio das construções linguísticas e literárias ao longo da história.

Outra mostra dessas interações que mostram o potencial do texto bíblico em alimentar as criações poéticas e a ficção tal como desenvolvido por Borges é apresentada por Paulo Augusto de Souza Nogueira e José Adriano Filho desenvolvem diferentes modelos de leitura de textos religiosos a partir da análise da obra O Livro de Areia, no qual relê os textos bíblicos de forma direta, paródica e irônica para enfatizar as inúmeras possiblidades de interação entre os textos religiosos e a literatura.

Os demais artigos versam temas diversos que apontam esta continua interação entre a literatura e a linguagem artística em suas diversas expressões como o romance, a poesia, o cinema, o mundo dos quadrinhos como meios expressivos para tratar questões centrais da teologia.

No artigo A sacralidade do inútil – uma leitura contra a mercantilização da vida, Danilo Mendes questiona a lógica mercadológica aplicada sobre o entendimento de utilidade da vida humana a partir das poesias de Paulo Leminski e do pensamento de Aílton Krenak. O autor defende a necessidade de se resgatar o entendimento de inutilidade da vida como algo necessário para escapar a dinâmica de exploração capitalista e para a sobrevivência de nosso planeta.

Arlene Fernandes busca uma compreensão da relação entre política, filosofia, religião e arte na obra de Dostoiévski ao analisar o Movimento em defesa do solo, no qual, Dostoiévski tece suas críticas à modernidade e às ocidentalistas e eslavófilas assumindo a defesa do cristianismo do povo camponês russo experienciado no cárcere e que marcou sua produção literária.

O filme “Chocolate” é analisado Ceci Maria Costa Baptista Mariani e Breno Martins Campos em seus aspectos que envolvem a espiritualidade e a ética a partir do desejo. A obra cinematográfica é apontada como meio privilegiada para tratar temas da revelação e da religião em geral como o tema da tradição e da necessidade de se renovar. Através da culinária, o filme questiona a negação dos desejos que marcou muitas vezes a tradição espiritual cristã. A abordagem antropológica dos autores reforça este questionamento com base na teopoética de Rubem Alves na tentativa de resgatar a necessidade de integração do desejo como parte das dimensões espiritual e ética da vida humana.

Em um paralelo entre um do Livro do Eclesiastes e o super-herói Surfista Prateado, protagonista Graphic Novel Parábola, Allan Macedo de Novaes e Felipe Silva Carmo, discorrem sobre o discurso sapiencial na Bíblia Hebraica retomado no mundo Marvel dos quadrinhos, exaltando a sabedoria como algo superior à guerra e que merece o reconhecimento e louvor, embora seja relegada à marginalidade e à invisibilidade.  

Luzia Bueno e Renato Adriano Pezenti apresentam um quadro teórico-metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo aplicando-o à análise das narrativas bíblicas. As bases conceituais deste método que destacam a linguagem como algo central para o desenvolvimento humano, são apontadas como potenciais para a análise das narrativas bíblicas como na aplicação de um trecho do Livro do Gênesis.

Este dossiê é um convite para que mais estudiosos de religião e pesquisadores da área literatura e teologia se debrucem sobre a obra do mestre argentino, saboreando suas páginas, bem como em vários autores e diferentes meios possam revigorar nelas nosso olhar sobre o poder da ficção na literatura e na religião ou inversamente da religião sobre a ficção e a literatura.