Douglas Ferreira Barros
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Filosofia da Faculdade de Filosofia e do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: douglasfbarros@gmail.com; dfbarros@puc-campinas.edu.br
Sorel Celeste Tavarnez
Mestra em Ciências da Religião pela PUC-Campinas. Licenciada em Filosofia pela PUC-Campinas. E-mail: sorelct@gmail.com
Resumo: O presente artigo propõe analisar a categoria de amor como dever com base no pensamento de Søren Kierkegaard, e as considerações do filósofo acerca do amor cristão em comparação ao amor humano. Com o intuito de entender-se o conceito de dever como elemento condicionado à prática do amor cristão para Kierkegaard, e compreender de que forma esse princípio se expressa através do maior mandamento do cristianismo, examinaremos algumas passagens contidas no livro As Obras do Amor (1847), considerado um dos maiores manifestos de amor já escritos e publicados, cuja reflexão acerca do amor revolucionou a abordagem sobre o tema tanto na filosofia, quanto na literatura, e analisaremos de que forma a pré-determinação do amor por Deus seria o fator que tornaria possível a realização do amor ao próximo pelo ser humano em sua existência. Em nossa pesquisa, encontramos que, segundo o filósofo, o amor cristão se realiza unicamente enquanto dever, enquanto o próximo revelaria-se em todo e qualquer indivíduo que se apresente à existência daquele que deseja amar ao seu semelhante. Dessa forma, o propósito maior do cristão para Kierkegaard seria o de transformar-se no próximo de seu próximo, pois onde há um próximo, o amor sempre se fará necessário.
Palavras-chave: Kierkegaard; Amor Cristão; Amar ao próximo; Dever. Mandamento
Abstract: This article aims to analyze the category of love as duty based on the thinking of Søren Kierkegaard and the philosopher's considerations regarding Christian love in comparison to human love. In order to understand the concept of duty as an essential element conditioned to the practice of Christian love according to Kierkegaard, and to comprehend how this principle is expressed through Christianity's greatest commandment, we will examine passages from the book Works of Love (1847), considered one of the greatest manifestos of love ever written and published, its reflection on love has revolutionized the approach to the subject in both philosophy and literature, and analyze how the pre-determination of love by God would enable the human being to fulfill the love for their neighbor in their existence. In our research, we found that, according to the philosopher, Christian love is solely realized as duty, while the neighbor reveals itself in any and every individual who presents themselves into existence for the one seeking to love their fellow being. Thus, the Christian's ultimate purpose for Kierkegaard is to become a neighbor to their neighbor, as wherever there is a neighbor, love will always be necessary.
Keywords: Kierkegaard; Christian Love; Loving One's Neighbor; Duty. Commandment
Há quem considere que um sentimento tão superior quanto o amor não deva ser imposto e que sua capacidade de brotar espontaneamente em um coração humano e a possibilidade de um indivíduo voluntariamente amar ao outro seriam o que o tornaria tão nobre. Um dos princípios da filosofia de Kierkegaard, no entanto, é exatamente o oposto dessa concepção.
De acordo com o autor de As Obras do Amor – algumas considerações em forma de discursos (1847), considerado um dos maiores manifestos de amor já escritos e publicados, cuja reflexão acerca do amor revolucionou a abordagem sobre o tema tanto na filosofia, quanto na literatura, se posto de lado o significado poético que se costuma dar ao amor que nasce espontaneamente, o que restaria, para Kierkegaard, seria somente a liberdade de escolha, decisão e seleção do homem.
Considerando esse raciocínio, o filósofo reflete sobre a possibilidade de um amor espontâneo vir a se tornar um amor abnegado e incondicional. Para o autor (2013, p. 73), seria impossível a um ser humano deliberadamente escolher a humanidade inteira para amar, e amar a todos sem distinções, dada a limitação da capacidade de escolha humana. Dessa forma, segundo o filósofo, amar incondicionalmente apenas se tornaria possível, se amar fosse um ato pré-determinado por Deus. O ato de amar ao próximo, nesse caso, não seria puramente humano, e dessa forma sua origem divina estaria evidenciada, como ilustra Kierkegaard a seguir:
E se um homem tiver de sair pelo mundo, sim, aí talvez ele possa ir longe e andar em vão, dar a volta ao mundo – e em vão, para procurar a pessoa amada ou o amigo. Mas o Cristianismo jamais incorre na falta de mandar uma pessoa andar, nem que seja um único passo, inutilmente; pois quando abrires aquela porta […], e saíres, então a primeira pessoa que encontrares é o próximo, que tu deves amar. (KIERKEGAARD, 2013, p. 71)
Kierkegaard explica, no trecho acima, que o amor como mandamento seria um ato divino e que a prova de sua origem superior estaria na sua pré-determinação. Segundo o filósofo, apesar de determinar-se a si próprio, o homem, por possuir a centelha divina, seria pré-determinado por Deus em tudo o que se assemelha a Ele. Kierkegaard (2013, p. 70) pondera que todo sentimento, pensamento, palavra e ação contidos na bem-aventurança só poderiam ter como fonte tudo aquilo que é mais sagrado. Na concepção do filósofo, portanto, a fonte de todo o amor e boa-venturança se encontraria em Deus.
Com o argumento de que o amor cristão possui origem divina e seria pré-determinado por Deus, o filósofo questiona-se em relação à natureza desse fenômeno: seria possível, então, amar verdadeiramente a alguém, sendo o amor uma mera obrigação? O amor perderia seu encanto ao tornar-se pré-determinado? Para Kierkegaard (2013, p. 71), seria justamente ao contrário: de acordo com o filósofo, o cristianismo, na realidade, facilitou o trabalho que o ser humano teria em escolher a quem amar. Mais do que isso, Kierkegaard (2013, p. 72) alega que o cristianismo permitiu ao homem amar ao seu próximo, por ter sido a primeira doutrina a conseguir definir o significado de próximo.
Pois é o amor cristão que descobre e sabe que o próximo existe e – o que dá no mesmo – que cada um é o próximo. Se amar não fosse um dever, também não haveria o conceito do próximo; mas só se extirpa o egoístico da predileção e só se preserva a igualdade do eterno quando se ama o próximo. (KIERKEGAARD, 2013, p. 63)
O filósofo argumenta que, se o amor incondicional fosse essencialmente uma escolha, sendo ela puramente humana, o indivíduo ficaria tão sobrecarregado com múltiplas escolhas e infinitas possibilidades que a angústia o dominaria, e ele nunca seria capaz de escolher a quem amar. Escolher o próximo a ser amado, portanto, seria uma atitude tão sobre-humana e extraordinária, que, por esse motivo, Kierkegaard (2013, p. 45) defende que este fenômeno só seria possível se essa escolha fosse pré-determinada por Deus.
Comecemos discutido a natureza pré-determinada do amor cristão, apresentando ao leitor a interpretação de Søren Kierkegaard em relação ao amor humano, também chamado pelo autor de amor de predileção. Compreenderemos neste tópico porque o autor considera o mandamento “tu deves amar” como um fator elementar para a existência do amor cristão, e porque o amor de predileção, de acordo com a filosofia de Kierkegaard, não poderia ser considerado sinônimo de amor ao próximo, sendo esta uma categoria exclusiva do amor como mandamento. A fim de assimilarmos a concepção de amor ao próximo segundo a filosofia kierkegaardiana, primeiramente necessitamos entender como se dá a relação de amor que o indivíduo já possui com seus próprios entes queridos.
Em As Obras do Amor, vemos que o filósofo dinamarquês descarta a ideia de que o amor cristão deva ser interpretado como antagônico ao amor romântico ou à amizade. O autor (2013, p. 63) defende que o cristianismo em nenhum momento refuta ou reprime essas formas de amor. Segundo o pensamento do filósofo, o cristianismo apenas retira do pedestal o amor nascido da inclinação ao apresentar à humanidade o amor ao próximo, sendo o amor cristão a máxima representação que o amor poderia alcançar em sua condição terrena. Para Kierkegaard, o amor cristão consistiria em “um amor espiritual, um amor que em seriedade e verdade é mais carinhoso, mais delicado na intimidade do que o amor sensual – na sua união, e mais fiel na sinceridade do que a mais famosa amizade – em sua solidariedade” (KIERKEGAARD, 2013, p. 63).
Kierkegaard explica que, apesar das diferenças encontradas entre o amor cristão e o amor humano, o cristianismo não reprime nenhuma forma de amor. O intuito do autor ao comparar o amor humano ao amor cristão é o de demonstrar, por meio de exemplos, que o amor por inclinação não seria a maior expressão de amor possível ao ser humano, visto que a predileção costuma andar de mãos dadas com a exclusividade, a possessividade e o ciúme. O filósofo orienta que o egoísmo do amor de predileção pode não se encontrar aparente à primeira vista, mas sempre estará à espreita da primeira oportunidade para emergir à superfície (2013, p. 71-72). O individualismo que o amor por inclinação revela seria um grande obstáculo ao amor pelo próximo, visto que o amor cristão nunca deveria ser guardado para si, ou compartilhado com uma só pessoa.
Ao mesmo tempo em que o filósofo afirma não ser demérito algum ter um apreço por uma pessoa em especial, ele também aponta que ser benevolente apenas com essa pessoa, ignorando os necessitados a sua volta, não é uma atitude considerada cristã. Em outras palavras, não se deve haver distinções na hora de se praticar o bem. Como exemplifica Kierkegaard em As Obras do Amor: “Se teu amigo se queixa de que tu, como ele acha, por um erro fazes ao próximo o que na sua opinião só deverias fazer para ele, é o teu amigo quem está errado” (KIERKEGAARD, 2013, p. 71).
Nesse trecho, o filósofo se utiliza de um exemplo cotidiano para explicar a diferença entre o amor cristão, universal, e o amor de inclinação, aquele direcionado a uma pessoa em específico; baseado no exemplo dado pelo filósofo no excerto acima, questionamos: se um indivíduo pratica o bem para o seu amigo, pois ele o ama, assim como também pratica o bem em relação ao próximo, pois também ama ao próximo, por um acaso o bem que ele fez inicialmente ao seu amigo perderia o seu valor? Qualquer resposta afirmativa em relação a essa questão, segundo Kierkegaard, seria invariavelmente ditada pelo ciúme, visto que, para o autor, o amor apaixonado clama por exclusividade, o que vai de encontro ao amor cristão, pois este último se aparta do egoísmo ao abranger para si toda a humanidade.
Kierkegaard (2013, p. 73-74) acredita que o amor apaixonado, assim como a amizade, se inflama por si só, e que não há amor apaixonado que não venha acompanhado do ciúme, pois é justamente a presença do ciúme que tornaria esse amor tão ardente, mesmo que sua presença esteja momentaneamente oculta. O filósofo propõe ao leitor um exercício a fim de provar seu raciocínio: “Coloca entre o amante e a pessoa amada, entre o amigo e o seu melhor amigo, o próximo, coloca entre os dois o próximo a que se deve amar, e tu instantaneamente verás o ciúme aflorar” (KIERKEGAARD, 2013, p. 74).
Dado esse exemplo, o autor conclui que amor romântico e a amizade podem e devem coexistir com o amor cristão, desde que se compreenda que os primeiros, se analisados isoladamente, refletem somente uma predileção, enquanto o último é sobretudo doação e abnegação. Nas palavras do filósofo: “A extrema imensidão apaixonada da predileção no excluir, significa amar apenas a um único; e o extremo ilimitado da abnegação na dedicação, significa não excluir nem um único” (KIERKEGAARD, 2013, p. 72).
Em suma, para Kierkegaard, o cristianismo, em sua acepção mais pura, não se opõe ao amor de inclinação, este inerentemente humano. Outras interpretações em relação ao tema, de acordo com o autor, estariam afastadas do que o cristianismo ensinou em suas origens. Assim, o amor divino, não se oporia, apenas se sobreporia, ao amor humano.
Em outras épocas, quando as pessoas se esforçavam seriamente por compreender o especificamente cristão no contexto da vida, acreditou-se que o Cristianismo tivesse algo contra o amor natural, porque este se baseava num instinto, e acreditava-se que o Cristianismo, enquanto espírito, estabeleceu a discórdia entre a carne e o espírito, odiava o amor natural como sensualidade. […] (o Cristianismo) tampouco pretendeu proibir ao homem de comer e de beber, tampouco escandalizou-se com um instinto que o homem não deu a si mesmo. Pelo sensual, pelo carnal, o Cristianismo entende o egoístico. (KIERKEGAARD, 2013, p. 72)
Embora esclarecidas as diferenças entre o amor de predileção e o amor cristão abnegado, uma dúvida ainda pode pairar na mente dos leitores: se ao amar, seja de forma romântica ou cristã, o ser humano estará, em ambos os casos, invariavelmente amando ao seu próximo, por que então essas duas formas de amar seriam tão distintas entre si? Como poderia um amor tão apaixonado, que demanda uma afeição e uma entrega tão ilimitadas a um outro ser, ser chamado de amor de si?
Para responder essa pergunta, explicaremos o conceito de “segundo eu” elaborado pelo filósofo em As Obras do Amor. Ao elucidar essa dúvida, Kierkegaard (2013, p. 74) toma como exemplo uma conhecida expressão muito utilizada para se descrever um amor apaixonado: o filósofo recorda que é costume afirmar que, quando duas pessoas se amam muito intensamente, elas se tornariam uma só. Segundo Kierkegaard (2013, p. 73), quando se trata de uma afeição apaixonada, o amante que se encontra enamorado do outro, extasiado e fascinado pela presença do outro, considera-o como uma extensão de si mesmo, já que ambos, segundo a própria expressão, tornaram-se um só. Logo, a afeição e entrega do amado a esse outro ser seriam, na realidade, direcionadas a um “outro eu”, ou seja, a um “outro si mesmo” habitando um corpo externo.
De acordo com o autor, o amor de predileção seria de fato um reflexo do amor de si mesmo, visto que, quando o amor apaixonado se fecha sobre aquele único amado, ou sobre aquele único amigo, acaba por refletir seu próprio “eu”, transformando o seu objeto de amor em uma extensão de si próprio. Desse modo, Kierkegaard (2013, p. 73) arremata seu raciocínio com a seguinte reflexão: se o amor de predileção permite que a pessoa amada ou o amigo sejam chamados de um “segundo eu”, no amor cristão esta definição não seria possível, pois, para o amor cristão, o próximo seria sempre um “primeiro tu”, ou seja, um outro indivíduo dotado de sua própria singularidade.
Prosseguindo com o raciocínio apresentado, explicaremos de que maneira o amante devoto e apaixonado veria a si próprio na pessoa amada, e por que, segundo Kierkegaard, não haveria exceção a essa particularidade em relação à amizade ou ao amor apaixonado. Para o autor, não há amor de predileção que não envolva um certo grau de egoísmo, visto que, de acordo com o filósofo, o fundamento do amor de predileção, ou a base que possibilita o nascimento desse amor, seria sempre a admiração. Para o amor romântico existir, portanto, a admiração também deveria existir; assim, segundo o teólogo, para apaixonar-se, o indivíduo deve, antes de mais nada, admirar a pessoa amada.
Kierkegaard (2013, p. 75) justifica que a admiração como pré-requisito para o amor de predileção também seria uma forma de amor de si, já que não há maior elogio a si mesmo do que ser amado pelo maior objeto de sua admiração, uma vez que o amado se sente lisonjeado e enaltecido por tamanha honra, por ser amado por alguém tão especial e admirável. O filósofo questiona essa dinâmica de relacionamento da seguinte maneira: “Será que essa relação não retorna de modo egoístico ao ‘eu’ que ama seu outro ‘eu’?” (KIERKEGAARD, 2013, p. 75).
Dessa forma, no amor romântico, uma mútua afeição seria decorrente de uma mútua admiração. Neste conceito moraria o maior perigo do amor de si, segundo o autor, o de o indivíduo fechar-se em um único objeto de sua admiração, esquecendo-se do próximo. O filósofo pontua: “quanto mais firmemente o ‘eu’ inebria-se no segundo ‘eu’, quanto mais firmemente os dois ‘eus’ se abraçam para se tornarem um só ‘eu’, tanto mais este si mesmo unificado se exclui egoisticamente de todos os outros, e se torna uma só identidade” (KIERKEGAARD, 2013, p. 76).
Logo, a maior diferença distinguida pelo filósofo entre o amor de si e o amor cristão se encontraria neste conceito: o amor cristão, ao contrário do amor de predileção, afasta toda determinação natural e todo egoísmo, apartando-se, por conseguinte, da necessidade de identificar o outro como reflexo de sua própria identidade. O amor cristão, assim, não tem a necessidade de tornar aquele que ama uno com seu próximo, pois o crístico teria como atributo a capacidade de abranger, e não a de restringir. Para Kierkegaard (2013, p. 77), o amor crístico seria um amor entre seres independentes e, portanto, não excludente.
Já o próximo, ao contrário do que o amor apaixonado preconiza, não necessita ser representado como um objeto de admiração. Kierkegaard (2013, p. 78) explica que o cristianismo jamais ensinou ao homem ser necessário admirar o próximo para amá-lo. Como bem recorda o autor, o maior mandamento de Cristo não compreende a frase “tu deves admirar ao próximo”, mas sim “tu deves amá-lo”, independente se aquele que deve amar ao seu próximo o admira ou não.
Após relacionar a paixão ao amor de si, Kierkegaard reflete sobre como os apaixonados receberiam o mandamento de amarem ao seu próximo. Para aquela pessoa que deseja seguir o caminho cristão e amar ao próximo, porém encontra-se apaixonada, não há com o que se preocupar. O autor tranquiliza o seu leitor, esclarecendo que o cristianismo teria a capacidade de falar de amor para todos os homens, até mesmo aos mais apaixonados. “O mandamento do amor para um apaixonado pode simplesmente dizer a ele ‘ama ao teu próximo assim como tu amas a tua pessoa amada’, ou em outras palavras: ama ao ‘primeiro tu’ da mesma forma que amas o teu ‘segundo eu’” (KIERKEGAARD, 2013, p. 78).
E qual seria, para Kierkegaard, a principal diferença entre amar um “segundo eu” e amar “um primeiro tu”? De acordo com o pensador dinamarquês, a definição de amor ao próximo é a de um amor sem idolatria. Enquanto a admiração excessiva escora o amado em um pedestal, o amor cristão vê o próximo como o seu igual, independentemente de sua admiração por ele, sem buscar por afinidades. Kierkegaard (2013, p. 81) define, por conseguinte, o próximo como aquele que é seu semelhante, sendo, porém, dotado de sua própria unicidade.
É fascinante o amor ser tão espantosamente perfeito: é impossível equivocar-se em relação ao próximo, é impossível que uma pessoa se engane e tenha amado alguém que não deveria ser amado. O próximo sempre será a pessoa certa, em qualquer cenário ou ocasião, apenas por um motivo: porque essa pessoa deve ser amada, pois assim determina o próprio Deus. Não há no mundo todo um único ser humano tão certo e tão fácil de reconhecer quanto o próximo. (KIERKEGAARD, 2013, p. 78)
Após tratarmos do amor como mandamento, analisaremos a seguir o conteúdo dessa máxima, ou seja, qual ação seria esperada do indivíduo ao cumprir o mandamento cristão. Em As Obras do Amor, Kierkegaard propõe que o percurso mais lógico para se compreender o mandamento de amor ao próximo seria o de procurar entender, em primeiro lugar, o conceito de próximo para o cristianismo, para, em seguida, averiguar de que forma a prática desse amor deveria ser realizada. Exploraremos, então, no próximo tópico, qual a compreensão de “próximo” para o cristianismo autêntico, e porque, de acordo com as ideias do autor, assimilar este conceito seria de fundamental importância para que o indivíduo possa vivenciar o amor em sua dimensão prática.
No segundo tópico deste artigo, retomaremos a análise do mandamento cristão “amar ao próximo como a ti mesmo” sob a ótica de Kierkegaard, desta vez com enfoque no conceito de “próximo”, retratado no livro As Obras do Amor. Ao analisar separadamente o conceito de “próximo” para o cristianismo, o filósofo tem como intuito o de fundamentar a hipótese de que uma das particularidades do amor cristão, além de sua pré-determinação divina, seria representada pelo objeto pelo qual esse amor seria direcionado; em outras palavras, ao definir-se o próximo, naturalmente determina-se como amá-lo. Para o filósofo, portanto, aquele que aprende quem é o seu próximo, por conseguinte também compreende a natureza o amor cristão. Outrossim, aprender a amar ao próximo seria a maior missão do cristão em sua existência, e ela se iniciaria no exato momento do reconhecimento do próximo a ser amado.
Como previamente discutido, em As Obras do Amor, ao dissertar sobre o conceito de amor como dever, Kierkegaard (2013, p. 40) afirma que o amor como mandamento possui origem inquestionavelmente divina, pois jamais uma ordem de tamanha magnitude poderia advir espontaneamente de um coração humano. Para o filósofo, por mais que a frase “tu deves amar” seja de fácil compreensão ao homem, justamente para ser prontamente colocada em prática assim que compreendida, ela carrega dentro de si “uma autoridade divina que nenhum ser humano ousaria questionar” (KIERKEGAARD, 2013, p. 41).
Kierkegaard (2013, p. 41) crê ser impossível a um ser humano ordenar a outro que se ame ao próximo, pois, embora o homem possa utilizar de sua autoridade para determinar que seu semelhante não prejudique o próximo, que respeite ao próximo, e até mesmo que faça uma boa ação ao próximo, decretar que uma pessoa ame a outra seria uma ordem que ultrapassaria os limites da alçada da condição humana. Para o filósofo, amar ao próximo seria uma ação tão absolutamente íntima, que nem mesmo o mais sábio dos homens possuiria autoridade para ordená-la ou influí-la a qualquer pessoa. Um mandamento de sentido tão elevado, portanto, só poderia originar-se de Deus, que, de acordo com o autor, seria a fonte de todo o amor existente no mundo.
Ao analisar-se conceito kierkegaardiano de amor como dever, percebe-se a ênfase dada pelo autor na interpretação semântica de cada vocábulo da oração “amar ao próximo como a ti mesmo”, e de como cada termo se interrelaciona com o restante da frase. Para Kierkegaard (2013, p. 36), “amar ao próximo como a ti mesmo” seria um mandamento tão completo, que nele pode ser encontrado todos os fundamentos do amor crístico e sua prática. Desse modo, o filósofo infere que, assim como o conceito de “amor como dever” e o conceito de “próximo”, o referido mandamento também ensina ao indivíduo o conceito de “amor-próprio”. De acordo com Kierkegaard (2013, p. 38), portanto, saber amar a si próprio da maneira correta seria um ensinamento tão importante quanto saber amar ao próximo.
O autor exemplifica que aquele que não sabe a forma correta de se amar, pode até ligar-se a outras pessoas, manter relações de afeto, mas não será apto a amar verdadeiramente ao próximo, já que o amor ao próximo, por comparação, estaria sempre relacionado ao conceito de amor-próprio. Nas palavras do filósofo, “Quando o ‘como a ti mesmo’ da lei te libertou do amor de si, […], é então que aprendeste a te amar a ti mesmo. A lei é, portanto: Tu deves amar a ti mesmo da maneira como tu amas ao próximo, quanto tu o amas como a ti mesmo” (KIERKEGAARD, 2013, p. 38).
Há inúmeras formas de não se amar, segundo o autor (2013, p. 39): quem prejudica a si mesmo, seja em forma de negligência, descuidando da sua saúde e mantendo maus hábitos, ou mesmo quem vive de forma leviana, buscando apenas o prazer instantâneo em contrapartida de seu aprimoramento pessoal, todos não sabem amar a si próprios. O desespero, para o autor, também seria uma forma de desamor: Kierkegaard (2013, p. 39) cita o exemplo de que a maior demonstração de aversão a si próprio que existe é aquela em que o indivíduo deseja pôr um fim ao seu sofrimento, atentando à própria vida – sintoma máximo que o desespero pode acarretar.
Mas, segundo o filósofo, não seriam apenas pessoas de comportamento errático que não sabem se amar. Kierkegaard opina que o indivíduo religioso que se impõe autoflagelações, torturando-se a si mesmo, acreditando agradar a Deus com seu sacrifício, apenas prova que também não sabe se amar: “O traidor mais perigoso de todos é aquele que cada homem traz dentro de si, [...] quer se trate de se amar de maneira egoísta, quer se trate de egoisticamente não se amar da maneira certa” (KIERKEGAARD, 2013, p. 39). Assim, o filósofo finaliza seu raciocínio: amar a si próprio, para Kierkegaard, da mesma forma que se ama ao próximo, é também um mandamento cristão.
Como abordado no início do artigo, Kierkegaard pondera que a passagem bíblica a qual contém o ensinamento “ame a teu próximo como a ti mesmo” vincula o amor ao próximo e o amor a si mesmo de tal forma que eles se tornariam indissociáveis. E o ponto de união entre os dois conceitos, para o filósofo, seria a forma imperativa do verbo “dever”: “tu deves amar ao próximo da mesma forma como tu deves amar a si mesmo”, em suma: “tu deves amar”. (KIERKEGAARD, 2013, p. 39)
Em sua análise das categorias do amor cristão, Kierkegaard escolhe como ponto de partida a passagem evangélica contida em Mateus (22:34-40)[2], iniciando sua reflexão a partir do pressuposto “amar ao próximo como a ti mesmo”. Em As Obras do Amor, o filósofo afirma que, apesar de a parábola pressupor que todo ser humano ama a si mesmo, constatar o amor de si mesmo, não seria o mesmo que exaltá-lo. Como escreve o autor: “Que o mais próximo de cada um é ele mesmo; será que alguém poderia compreender isso tão mal, como se o intuito do Cristianismo fosse consagrar o amor de si?” (KIERKEGAARD, 2013, p. 32). Kierkegaard esclarece, portanto, que o intuito da passagem em destacar o amor-próprio seria exatamente o de dissociá-lo do egoísmo habitualmente ligado ao amor de si.
Kierkegaard (2013, p. 33) considera que a frase “como a ti mesmo”, por colocar o interlocutor em foco, traria um maior impacto a essa recomendação, não dando margem a nenhum pretexto ou justificativa por parte do ouvinte. Parafraseando o autor, trata-se de uma frase curta e objetiva, de fácil compreensão, mas com um peso muito maior do que o mais longo dos discursos, pois não haveria nada mais abrangente a ser comparado do que “como a ti mesmo”. O filósofo (2013, p. 35) afirma, portanto, que, ao deparar com essa expressão, o egoísmo tenta de todas as formas combatê-la, porém, por mais que se tente, constata ser impossível refutá-la. Para todas as dúvidas que surgirem sobre como o homem deveria amar ao seu próximo, só haveria uma resposta possível: “como a ti mesmo”.
O egoísta pode perguntar infinitas vezes: “Mas de que forma devo amar o meu próximo?”, e ouviria sempre a mesma breve resposta: “como a ti mesmo”. Que é impossível esquivar-se daí, o próprio amor de si o percebe. A única escapatória que resta para se justificar é aquela que aliás o Fariseu também tentou, em seu tempo: levantar dúvidas sobre quem seria o seu próximo, para se livrar dele para bem longe. (KIERKEGAARD, 2013, p. 36)
A frase “como a ti mesmo” conteria mais um pressuposto na visão do autor – o pressuposto da igualdade. Em sua obra, Kierkegaard (2013, p. 33) propõe o seguinte questionamento: seria possível amar a alguém mais do que a si mesmo? Segundo o filósofo, a resposta seria negativa, pois Cristo orienta amar o próximo de forma igualitária, enxergando-o exatamente como aquilo que ele é, seu semelhante. O filósofo responde a esse questionamento, mais uma vez comparando o amor cristão ao amor cantado pelos poetas: enquanto o amor romântico exalta a figura do amante que ama seu amado mais do que a si, o amor cristão ama ao próximo como a si mesmo. Kierkegaard (2013, p. 34) afirma, contudo, que apesar da aparente coragem, romantismo e altruísmo de se amar alguém mais do que a si mesmo, pensar que seria possível amar outra pessoa mais do que a si próprio não passaria de uma ilusão.
De acordo com Kierkegaard (2013, p. 34), portanto, o amor romântico seria uma miragem, uma reminiscência do amor crístico, sendo este o único com capacidade de ser incondicional e eterno. Segundo o filósofo, “O homem apenas pode amar mais a Deus do que a si mesmo; por isso que não está dito: Tu deves amar a Deus como a ti mesmo, mas antes: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento” (KIERKEGAARD, 2013, p. 35). Conforme esclarece nesse trecho, Kierkegaard (2013, p. 35) acredita que o amor a Deus não seria de natureza semelhante ao amor ao próximo, sendo impossível, dessa forma, amar a alguém mais do que se ama a Deus. Por considerar Deus inteligência infinita, infinitamente superior e inalcançável ao homem, o filósofo afirma, portanto, que só seria possível amá-lo com obediência e resignação infinita, adorando-o incontestavelmente, pois a sabedoria e a providência divinas não seriam de completo entendimento à capacidade limitada da inteligência humana.
Já um ser humano, por ser semelhante ao seu próximo, deve ser amado sempre de forma igualitária. O filósofo defende, assim, que seria impossível amar verdadeiramente a um ser humano através da obediência e da adoração. Em seu livro, Kierkegaard (2013, p. 35-36) exemplifica esse conceito da seguinte forma: se o indivíduo ama a alguém, e essa pessoa lhe pede algo que ele sabe que será prejudicial a ela, é seu o dever de lhe negar o pedido, visto que o amoroso assumiu uma responsabilidade com a pessoa que ama, a de zelar pela sua segurança e bem-estar; além disso, o ser humano deveria ter a capacidade de discernir o que é melhor para si e o que, consequentemente, não se deve fazer ao próximo. Logo, como a pessoa amada não é um ser supremo instituído de sabedoria infinita, não haveria como adorá-la, na concepção divina do verbo. Kierkegaard conclui, então, que adorar a um semelhante como se ele fosse divino, ou permitir ser adorado da mesma maneira, não é uma expressão de amor, e, para o filósofo, pode ser considerado inclusive antiético, devido às repercussões que uma ação dessas poderia acarretar. Dessa maneira, o filósofo complementa que o ensinamento de Cristo não pede para que o ser humano venere ao seu próximo, mas orienta apenas para que um ser humano ame ao outro de forma igualitária.
Tendo elucidado o trecho “como a ti mesmo”, passemos em seguida para o próximo questionamento em relação ao “maior mandamento” do cristianismo, não menos importante que o primeiro: se já sabemos do nosso dever de amar ao próximo como a nós mesmos, quem seria, então, o nosso próximo a ser amado? Com esta reflexão, podemos inferir que um dos pontos mais importantes do pensamento kierkegaardiano estaria contido na resposta à essa pergunta, e que a parábola do Samaritano agiria como um complemento ao mandamento “amar ao próximo como a ti mesmo”, ao determinar ao seu ouvinte o conceito de próximo no cristianismo.
Prosseguindo com sua análise, Kierkegaard considera que, dentro da concepção cristã, o próximo simbolizaria todo o gênero humano, não se restringindo apenas à família, ao amor romântico e à amizade, ou ao chamado amor de predileção, aquele definido por “amar a esta única pessoa, antes de qualquer outra, e em oposição a todas as outras” (KIERKEGAARD, 2013, p. 34). O amor ao próximo não seria reduzido também apenas a atos de caridade, por mais importantes que eles sejam. Amar ao próximo como a si mesmo vai além, e inclui até mesmo os desafetos daquele indivíduo. O autor considera este ponto em específico um dos elementos mais revolucionários trazidos pelo cristianismo. Nas palavras do filósofo: “O conceito de “próximo” é propriamente a reduplicação da tua própria identidade; o “próximo”, é o que os pensadores chamariam de o outro, aquele no qual o egoístico do amor de si é posto à prova.” (KIERKEGAARD, 2013, p. 36)
Kierkegaard (2013, p. 37) escreve que, no exercício de amar ao próximo, assim como o cristão não deve se ater apenas às suas predileções, tampouco ele deve se guiar pelas suas aversões. O filósofo também destaca que, apesar de o “próximo” simbolizar a humanidade como um todo, bastaria apenas um indivíduo para que essa lei consiga ser imediatamente colocada em prática. Ao amar a um indivíduo abnegadamente, o cristão estará cumprindo a lei, e após este indivíduo surgirá um outro, e depois mais outro, que também deverão ser amados. Enquanto, em teoria, o cristão sabe que seu compromisso de amar ao próximo se estende à toda a humanidade, na prática ele deverá compreender que a aplicação desse mandamento demanda do indivíduo aproveitar cada oportunidade de amar ao próximo que se apresente a ele naquele determinado instante.
[...] se há um único outro ser humano que tu no sentido cristão amas “como a ti mesmo”, ou em quem tu amas “o próximo”, então tu amas a todos os homens. [...] “O próximo” ameaça assim o amor de si tanto quanto é possível; se há apenas dois homens, o segundo homem é o próximo; se há milhões, cada um deles é o próximo, que por sua vez está mais próximo do primeiro do que “o amigo” ou que “a pessoa amada”. (KIERKEGAARD, 2013, p. 37)
Se o “próximo” a ser amado representaria a humanidade, mas seria preciso apenas “um único próximo” para que a lei do amor seja colocada em prática, o passo seguinte para o cumprimento do mandamento do amor ao próximo seria, portanto, o de reconhecê-lo como próximo. Para Kierkegaard (2013, p. 36), identificar o seu próximo é simples: o filósofo recorda, em sua obra, que Jesus já havia ensinado aos seus ouvintes de quem o próximo se tratava, reproduzindo o diálogo com o fariseu na parábola do bom Samaritano (Lc, 10:36), transcrito a seguir: “Qual dos três, em sua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos bandidos?, e o fariseu responde ‘corretamente’: aquele que usou de misericórdia para com ele” (KIERKEGAARD, 2013, p. 37).
Tendo como base a parábola do Samaritano, Kierkegaard defende ser extremamente fácil ao indivíduo que deseja se tornar cristão identificar o seu próximo. Quem reconhece o seu dever de amar o próximo, descobre facilmente de quem ele se trata: o próximo, para o filósofo, é aquele para quem o indivíduo possui uma obrigação, e ao cumprir o seu dever para com o próximo, é ele quem se tornará o próximo de seu irmão. O cerne da questão, portanto, não seria o indivíduo buscar aquele que viria a ser o seu próximo, mas ele próprio reconhecer-se e tornar-se “o próximo”, através da prática do amor.
Logo, para Kierkegaard (2013, p. 38), o ensinamento mais importante para o indivíduo que deseja seguir o caminho do amor prático não seria o de procurar quem é o seu próximo na multidão, já que o próximo pode vir a ser qualquer um, mas sim descobrir que, na realidade, ele é o próximo de seu próximo. O cristão, portanto, tem como responsabilidade esforçar-se ao máximo para tornar-se o “próximo” de seus semelhantes sempre que possível, assim como fez, na parábola, o samaritano, que se converteu no próximo daquele necessitado na primeira oportunidade em que reconheceu o seu dever de ajudar.
Concluindo o raciocínio exposto por Kierkegaard (2013, p. 54) em As Obras do Amor, se escolher um amigo ou amado pode tornar-se uma tarefa exaustiva, reconhecer o próximo, porém, é uma tarefa simples, já que ele nunca será de fato “escolhido”, pois o próximo se encontrará exatamente onde está o dever, a responsabilidade e o comprometimento. Onde houver uma necessidade de amor, o próximo estará lá, invariavelmente, e essa constatação, para o filósofo, seria imutável. A este fenômeno, Kierkegaard (2013, p. 170) o denomina de conceito da universalidade do amor.
Possuiria o amor cristão categorias próprias, ou estas seriam apenas qualidades já pertencentes ao amor humano? Com a finalidade de debatermos essa questão e assimilarmos a concepção de amor como mandamento pela filosofia de Kierkegaard, compararemos, então, a definição de “cristão” ou “crístico” estabelecida filósofo, à crítica realizada por Adorno sobre o seu conceito de amor cristão.
Um dos maiores estudiosos, e também críticos, da filosofia kierkegaardiana, foi o filósofo Theodor Adorno (1903-1969). Seus principais escritos sobre Kierkegaard foram redigidos em dois momentos de sua vida: nos anos 30, quando publicada sua crítica mais famosa do autor, denominada A Doutrina Kierkegaardiana do Amor, e, posteriormente, em 1963, na conferência proferida na Universidade de Frankfurt, em homenagem ao sesquicentenário de nascimento de Kierkegaard. No livro Entre Sócrates e Cristo (2000), Álvaro Valls analisa as diferenças entre ambas as interpretações de Adorno sobre o pensamento kierkegaardiano.
Adorno (2010, p. 311) inicia sua análise de As Obras do Amor pela discordância com Kierkegaard em relação à definição kierkegaardiana do termo “cristão”[3] (christlichen), adjetivo muito utilizado pelo filósofo em toda a sua obra. O filósofo alemão argumenta que as qualidades que Kierkegaard associa como próprias do amor cristão, como a categoria da alteridade e do paradoxo, não seriam categorias especificamente cristãs (christlichen), mas sim humanas. Enquanto para Kierkegaard essas duas categorias seriam definidoras do conceito de amor ao próximo cristão, não sendo encontradas no amor natural, para o pensador alemão, tais categorias, principalmente “a do absolutamente outro, a do salto qualitativo e a do paradoxo, aparecem em contextos filosóficos dedutivos, e por assim dizer, só a posteriori vêm a ser revestidas com as insígnias da revelação cristã” (ADORNO, 2010, p. 312). O filósofo alemão, portanto, considera o emprego do conceito “crístico” às categorias supracitadas um tanto quanto artificial, pois essas seriam, a priori, qualidades humanas.
Assim, Adorno considera que Kierkegaard atribui qualidades não originárias do cristianismo como exclusivamente cristãs, concedendo uma vantagem ao cristianismo em relação a outras crenças. Já o escritor brasileiro Álvaro Valls (2000, p. 90), autor de Entre Sócrates e Cristo, discorda de Adorno: para o comentador, o termo “cristão” (traduzido do dinamarquês det Christelige), seria utilizado por Kierkegaard como um adjetivo substantivado, não correspondendo exatamente à representação de “cristão” e “cristianismo” como a conhecemos. O termo “cristão” não é utilizado por Kierkegaard como sinônimo do indivíduo adepto da religião cristã, e o termo “cristianismo” também não seria usado como sinônimo de religião cristã da forma como usamos habitualmente.
[O termo cristão] não é exatamente igual ao “cristão”, que bem pode ser verdadeiro ou falso, nem equivale ao Cristianismo, que pode ser entendido também como um fenômeno exterior, histórico positivo, e não é, muito menos, sinônimo de cristandade, conceito bastante pejorativo. (VALLS, 2000, p. 90)
“Cristão”, ou “crístico” (det Christelige), para Kierkegaard, seria, portanto, definido como todo e qualquer atributo diretamente derivado de Cristo e de seus ensinamentos.
Kierkegaard considera que, em função de sua pré-determinação divina, o amor cristão teria como maior pressuposto a sua universalidade. Já Adorno rejeita esta premissa, argumentando que um amor de caráter universal poderia produzir apenas uma relação meramente abstrata: “Ele parte do mandamento cristão do amor: ‘Tu deves amar’ e o interpreta colocando toda a ênfase na sua universalidade abstrata. O objeto do amor se torna, num certo sentido, indiferente” (ADORNO, 2010, p. 134). Segundo Adorno (2010, p. 320), a definição kierkegaardiana de amor cristão o transformaria em um amor passivo, e esta passividade o faria perder sua potência e profundidade, qualidades estas tão almejadas em um amor que se denomina incondicional:
Envolve também, [...] o reconhecimento passivo daquele estado de coisas que a cada vez proporciona à interioridade absoluta o seu objeto. Na doutrina kierkegaardiana do próximo está incluído desde o início que o indivíduo, por assim dizer, tome o próximo do jeito que o encontrar, como algo dado, ao qual nada mais se pode ou deve questionar. (ADORNO, 2010, p. 320)
Valls (2000, p. 93) explica que, além de Adorno, Freud também já havia refutado o conceito de universalidade do amor kierkegaardiano. Freud compartilha com Adorno a ideia de amor enquanto construção de vínculo espontânea, seletiva e particular, ou seja, para ambos os pensadores, a maior expressão humana do amor seria definida pelo amor de predileção. Nas palavras de Freud, “Um amor que não seleciona parece-nos perder uma parte de seu valor próprio, na medida em que comete uma injustiça com seu objeto” (FREUD, WW XII, p. 69).
Ao discordar do preceito de universalidade do amor, Adorno (2010, p. 314) também refuta o princípio de amor como mandamento, por considerá-lo ilógico. Vale ressaltar que até mesmo Kierkegaard considera, e apresenta esse princípio, como dotado de uma lógica paradoxal. Para o pensador do século XX, contudo, não seria possível amar a alguém por imposição, pois a principal característica do amor humano é a de que ele se comportaria como um sentimento voluntário. Com esse raciocínio, Adorno invalida, portanto, o conceito de amor cristão, elevando ao patamar de expressão máxima do afeto entre indivíduos o próprio amor humano. Como afirma Adorno, em sua crítica ao pensamento de Kierkegaard:
Para Kierkegaard, o amor só é cristão como ruptura com a natureza. [...] O conceito do próximo, tal como é tornado medida-padrão do amor, coincide com o do mais afastado, à medida que aquele que aqui e ali eventualmente cruza o nosso caminho é confrontado no caráter abstrato de tal encontro com a predileção pelo amigo ou pela amada. (ADORNO, 2010, p. 315)
A resistência do pensador alemão em atribuir o amor ao próximo exclusivamente ao cristianismo pode ocorrer, segundo Valls, porque Adorno utiliza de diversas vertentes filosóficas para definir seu sentido de amor. O amor cristão, contudo, “não é platônico, nem freudiano, nem idealizado, nem ‘natural’. É um amor paradoxal, pois é fruto de um mandamento.” (VALLS, 2000, p. 92) Dessa forma, seria impossível compreender o amor crístico sem integrá-lo ao princípio de amor como mandamento, o que o transformaria em um amor paradoxal por excelência. Assim sendo, qualquer consideração lógica sobre o amor acaba aparentando discordante da concepção paradoxal do amor ao próximo elaborada pelo autor dinamarquês.
Kierkegaard, porém, antevê esse argumento em seu próprio texto, explicando que o amor natural e voluntário não seria o suficiente para abarcar todas as expressões de amor existentes entre os seres humanos, visto que, para o teólogo, o amor humano, que se baseia em simpatias e inclinações, seria sempre dirigido a um “alter ego”, também chamado de “outro eu”. Ao recordar que o mandamento do amor cristão ordena o homem a amar a um “primeiro tu” (visto que tanto o amor de si quanto o amor de inclinação são tendências naturais do homem e não dependem de uma pré-determinação), Kierkegaard (2013, p. 84) argumenta que a forma de amor que abrange o amor pelo “primeiro tu”, não existiria no amor natural, sendo, portanto, imperativa, a existência de um amor “determinado por Deus”, chamado pelo autor de amor cristão. Valls (2000, p. 93) mais uma vez ressalta que o princípio kierkegaardiano de universalidade do amor não nega determinações naturais, mas apenas reforça a necessidade latente dos seres humanos de se amarem uns aos outros além das afinidades e inclinações pessoais.
Ao descrever o amor ao próximo e as características que o diferenciam do amor de predileção, o filósofo esclarece que o cristianismo autêntico não encoraja o indivíduo a ser indiferente ao mundo ou a não criar vínculos, pelo contrário, pois o indivíduo que ama a humanidade, nutre um amor puro e verdadeiro pelo todo, o qual inclui, invariavelmente, seus entes queridos, sua família e amigos. Valls explica que o amor cristão, para Kierkegaard, “precisa tratar a absolutamente todos os homens como filhos de Deus, salvos pelo mesmo Jesus Cristo, e que, portanto, neste sentido, todos os homens devem ser amados e todos são amáveis ou dignos de amor” (VALLS, 2000, p. 93).
Sendo assim, o amor cristão serve de fundamento para todas as expressões de amor, e pode apresentar-se como quaisquer uma delas. Kierkegaard explica que as diversas formas de amor encontradas na humanidade, sejam elas apresentadas como amor conjugal, amor fraternal ou mesmo uma profunda admiração por um ídolo, podem parecer distintas ao primeiro olhar, mas se estiverem de mãos dadas com o amor cristão, na realidade elas seriam uma só. Kierkegaard (2013, p. 168) ensina, portanto, que o próximo a ser amado também estará refletido na figura dos pais, da esposa, do marido, dos filhos, e de todos aqueles caros ao coração, pois o próximo sempre estará onde o amor se fizer presente. Como se pode ver mais adiante no texto, quando o filósofo trata sobre o indivíduo que pretende amar a seu próximo, ele esclarece que não há mérito algum na ação daquele que ama apenas às pessoas desconhecidas, mas que destrata as pessoas mais próximas a si, pois o conceito de próximo por si só não permitiria nenhuma exceção.
Se a esposa ou o amigo deixam de ser para ele um próximo, com isso todos os outros seres humanos deixam de ser para ele o próximo. Se existisse um único homem que por sua diferenciação constituísse uma exceção ao ser homem, o conceito de "homem" ficaria embaralhado: esta exceção não seria um homem, e tampouco os outros homens o seriam. (KIERKEGAARD, 2013, p. 169)
Logo, para Kierkegaard, o amor romântico e o amor fraternal coexistem com o amor cristão. O indivíduo que ama profundamente a humanidade, não deixará de amar profundamente aos seus entes queridos, inclusive podendo amá-los ainda mais verdadeiramente, por já ter adquirido experiência na prática do amor abnegado. Deste modo, de acordo com a filosofia kierkegaardiana, o familiar, o cônjuge e o amigo não são considerados exceções para aquele que ama, pois seriam as pessoas mais próximas daquele indivíduo que dedica sua vida a amar e respeitar ao seu próximo. Assim, Kierkegaard conclui seu raciocínio da seguinte forma: “O amor, portanto, é mais do que um instinto, uma inclinação, um sentimento ou uma demonstração do intelecto. Cristo apenas conhece o amor espiritual, sem graus ou diferenciações” (KIERKEGAARD, 2013, p. 170).
Em As Obras do Amor, Kierkegaard tece diversas considerações a respeito do indivíduo que ama, e, que, de alguma forma, não é correspondido ou deixa de ser correspondido em seu amor. De acordo com o autor, o amor temporal tende ao desespero por saber-se frágil e finito, e por depender de validações externas e das atitudes do amado, não resistindo às provas do tempo. Mas em relação ao amor seguramente correspondido? Aquele que, de maneira louvável, sobreviveu às provas impostas pelo amor romântico, esse amor também necessitaria ser transformado em dever? Segundo o pensamento de Kierkegaard (2013, p. 45), sim, até mesmo o amor recíproco deveria ser pré-determinado, visto que, para o autor, apenas quando o amor transforma-se em dever, é que ele estaria assegurado contra o desespero. Pois mesmo quando se trata de um amor feliz e correspondido, em algum momento ele passará pela maior provação da temporalidade: a finitude.
O filósofo (2013, p. 58) explica que o desespero é sempre reflexo da impotência do indivíduo que se sente fraco em relação ao peso da eternidade. Ele disserta que o amor preso na temporalidade ama com as forças do desespero, mesmo quando se está feliz, pois sabe que, mesmo que esse amor perdure por toda a vida, um dia findará com a morte. Já o amor transformado em dever, conforme a filosofia do autor, não se abala, nunca se desespera, pois sabe que tem o poder de perdurar por toda eternidade, para além da existência humana.
Mesmo que uma pessoa tenha tido uma vida repleta de amor e felicidade, mas no momento da adversidade se desesperou, para Kierkegaard (2013, p. 59), esse desespero não é um estado novo, e sim a manifestação de uma angústia que sempre esteve presente de forma oculta. O filósofo assim define o desespero: como a carência do eterno. E para quem vive apenas na temporalidade, sem o vislumbre da infinitude, só restaria um único destino: desesperar-se. Recordamos que, para o autor (2013, p. 54), nas circunstâncias da temporalidade, e na ausência de ligação com o eterno, o desespero ao ser humano seria absolutamente inevitável.
O amor regido pelo mandamento, no entanto, se protege contra o desespero graças ao imperativo presente em “tu deves amar”. Nas palavras do filósofo, “quando na temporalidade se tornou impossível ter a posse da pessoa amada, aí diz a eternidade “tu deves amar”, isto é, aí a eternidade salva o amor do desespero, justamente tornando-o eterno” (KIERKEGAARD, 2013, p. 59). Parafraseando o autor, quando a eternidade, em sua autoridade, diz “tu deves amar”, na realidade ela quer dizer “teu amor tem validade eterna” (KIERKEGAARD, 2013, p. 60); dessa forma, o amor transformado em dever seria elevado, então, “à condição de sagrado” (KIERKEGAARD, 2013, p. 60).
Kierkegaard (2013, p. 61) defende, porém, que o mandamento “deves amar” não possui como função consolar a perda da pessoa amada, já que não há nada capaz de confortar a perda de um amor; a eternidade não diz “deves amar”, consolando, mas sim, ordenando. O filósofo argumenta que este seria mais um indício de que esse mandamento reside apenas na eternidade. Seria um completo escárnio, como Kierkegaard (2013, p. 60) explica, se uma pessoa se atrevesse a dizer a um desesperado “tu deves amar” como forma de consolo, sugerindo-o justamente a fazer o que ele mais quer e cuja impossibilidade o levou ao desespero. O amor como mandamento seria um conceito tão sublime, tão elevado, que chegaria a ser leviano da parte de um ser humano ousar ditá-lo a alguém, o que, para o filósofo, seria mais uma evidência de sua origem divina.
Kierkegaard (2013, p. 61) considera humanamente impossível consolar uma perda que ocorreu na temporalidade, pois ela parece irremediável, e por esse motivo, consolos humanos seriam vazios e repelentes. A consolação, portanto, não mora na temporalidade, sendo somente possível de ser almejada na eternidade. E a eternidade, por consequência, apenas consegue ser vislumbrada pelo indivíduo em sua existência terrena, quando ele transforma o seu amor em dever.
Não deves ter o direito de te endurecer frente a esse sentimento, pois “tu deves amar”; mas tu não deves de maneira nenhuma ter o direito de amar desesperadamente, pois “tu deves amar”; e tampouco tu deves ter o direito de desgastar este sentimento que há em ti, pois “tu deves amar” […] Lá onde o puramente humano quer precipitar-se para a frente, o mandamento o retém; lá onde o puramente humano quer perder a coragem, o mandamento reforça; e lá onde o puramente humano quer declarar-se cansado e experiente, o mandamento inflama e dá sabedoria. (KIERKEGAARD, 2013, p. 61)
O amor como prática: essa seria a categoria elementar do amor cristão, da qual derivariam todas as outras. Kierkegaard, então, constrói todo o seu pensamento a partir deste único conceito, relacionando todas as demais categorias definidoras do amor cristão com o seu princípio prático, estabelecido pelo autor como característica primordial do amor cristão. Partindo desse raciocínio, pretendeu-se identificar no presente artigo as particularidades e influências da práxis no amor cristão, relacionando-a com a definição de cristão e cristianismo propostas pelo filósofo.
Como afirmado no fragmento acima, o amor cristão, definido pela sua prática, transcende sua condição de sentimento. A partir desse princípio, conseguimos distinguir o amor cristão do amor humano, visto que o último pode ser caracterizado puramente como um sentimento. Se o amor cristão pudesse ser definido da mesma forma, ele não necessitaria estar atrelado à prática para existir, pois um sentimento poderia existir espontaneamente, sem a necessidade de gerar uma ação concreta.
Segundo Kierkegaard (2013, p. 54), a maneira que o amor cristão encontra para superar sua condição humana, é a de ser elevado pelo cristianismo à categoria de dever. Dessa forma, a categoria de amor como dever é condição resultante da categoria de amor como prática, pois não há dever que não venha acompanhado da necessidade de seu cumprimento:
Lembrando a parábola do bom Samaritano: trata-se de auxiliar aquele que está aí, necessitado, ferido, humilhado, ultrajado, assaltado. Não se trata, evidentemente, de uma relação estética ou erótica, pois não há beleza no pobre coitado. Não adianta querer embelezar a relação: trata - se do dever puro e simples de auxiliar um irmão, filho de Deus como eu, e que se encontra numa situação de penúria, de necessidade. Nada a ver, portanto, com a doutrina da sacerdotisa Diotima, mencionada no Banquete platônico, com sua teoria do amor ascendente. Mas também poderíamos talvez dizer que num certo sentido aqui não encontramos o amor freudiano. Pois se trata de um amor que não seleciona por semelhança, e que nem se esforça por mostrar que, por trás das diferenças culturais ou sociais, está alguém igual a mim, um ‘alter ego’. Pois no cristianismo, conforme Kierkegaard, nós amamos por dever, porque estamos convencidos, na fé, paradoxal, de termos encontrado um irmão, ou simplesmente (para termos o máximo de precisão conceitual): ‘o próximo’ (VALLS, 2000, p. 122)
Para o cristão, portanto, o amor como dever é designado a ele como uma missão, a maior missão de sua existência: seu caráter pré-determinado, segundo Kierkegaard, de forma alguma o prejudica no cumprimento dessa missão, pelo contrário, pois ele simplifica o processo de escolha do indivíduo quanto à destinação de seu ato de amor. Por já ser determinado por Deus, o ato de amor possui seu destino programado antes mesmo de materializar-se, pois, de acordo com Kierkegaard (2013, p. 254), o amor é uma virtude que se origina exclusivamente para os outros; Dessa forma, para o filósofo, o propósito do amor se encontraria unicamente em sua capacidade de ser distribuído e compartilhado entre os seres humanos.
O ensinamento cristão é de amar o próximo, amar todo o gênero humano, todos os homens, até mesmo o inimigo, e não fazer exceção, nem a da predileção e nem a da aversão. E nosso autor mostra como a fórmula amar “como a si mesmo” é uma formulação extremamente sábia, que não admite enganos e astúcias. O próximo é o que os pensadores chamariam “o outro”, a alteridade. O conceito do próximo liquida as escapatórias do egoísmo. (VALLS, 2000, p. 123)
Se, para Kierkegaard, a existência do amor cristão demanda que ele exista tão somente para o próximo, é impreterível ao indivíduo que ele não se limite a dedicar seu amor apenas àquelas pessoas com as quais ele possua semelhanças e afinidades, pois, neste caso, esta forma de amor acoberta na realidade um “amor de si”, ao projetar no outro o amor pelas características que ele próprio considera amáveis em si mesmo. Para o filósofo, o amor cristão deve sempre buscar amar ao seu próximo em sua completude, de forma que o amor seja destinado inteiramente à outra pessoa – um “primeiro tu” – sendo um amor, portanto, desligado de qualquer forma de egocentrismo.
A ética cristã do amor ao próximo, em sua leitura kierkegaardiana, não pode satisfazer-se em querer bem ao semelhante, ao ‘alter ego’, expressão que tanto no latim quanto no dinamarquês pode significar igualmente ‘o segundo eu’. Pois não se trata de amar o meu segundo eu, mas sim de amar realmente, e querer o bem do meu ‘primeiro tu’, trata -se, rigorosamente, de amar o diferente, aquele que tem qualidade e defeitos diferentes das minhas (VALLS, 2000, p. 118).
Recapitulando o conceito de amor como dever para Søren Kierkegaard, o filósofo defende que seria justamente na sua pré-determinação, isto é, no imperativo “tu deves amar”, que reside a diferença entre o amor crístico e o amor humano, pois, de acordo com Kierkegaard (2013, p. 60), ao transformar-se em dever, o amor se eleva à condição de sagrado. Segundo o filósofo, o amor transformado em dever conduz o indivíduo à maior missão de sua existência, a de compartilhar seu amor, e prontamente direcioná-lo ao próximo a quem devemos amar. O próximo, como demonstrado pelo filósofo, revela-se em todo e qualquer indivíduo que se apresente à existência daquele que deseja seguir o caminho do cristianismo. Também observamos que, para Kierkegaard (2013, p 38), o propósito maior do cristão é o de transformar-se no próximo de seu próximo, pois onde há um próximo, o amor ali se fará necessário. Com esse encadeamento de ideias, Kierkegaard conclui que o maior mandamento cristão é formado por pequenos conceitos os quais se encaixam em uma sequência perfeita, e que, após se unirem, não conseguiriam mais serem lidos separadamente.
Neste momento, finalizamos nossa análise com a seguinte reflexão: que passemos, assim como Kierkegaard, a enxergar o amor não como substantivo, mas como verbo, e não apenas como um sentimento, mas como um compromisso a ser relembrado e honrado diariamente. A prática do cristianismo, portanto, nada mais seria do que a firmação constante desse compromisso de amor para com o próximo – e apenas essa singela ação bastaria para transformar a vida de alguém, pois amar ao próximo seria o ato mais revolucionário que um indivíduo poderia exercer em sua vida terrena.
ADORNO, Theodor W. Kierkegaard: Construção do Estético. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulus, 2002.
FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago, 1980.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. As Obras do Amor: Algumas Considerações Cristãs em Forma de Discursos. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. O Conceito de Angústia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Practice in Christianity: Kierkegaard's Writings, Vol 20. Princeton: Princeton University Press, 1991.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. The Sickness unto Death: a Christian Psychological Exposition for Edification and Awakening by Anti-Climacus. London: Penguin Books Limited, 2004.
VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios Sobre a Ironia e o Amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
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[1] O artigo é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, processo: 428541/2016-0. Agradecemos imensamente ao CNPq pelo financiamento e apoio.
[2] “O maior mandamento - Os fariseus, ouvindo que ele fechara a boca dos saduceus, reuniram-se em grupo e um deles – a fim de pô-lo à prova – perguntou-lhe: ‘Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’ Ele respondeu: ‘Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu espírito. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas’” Mt, (22:34-40)
[3] Para Kierkegaard, o termo cristão possui o mesmo sentido de ‘crístico’, sendo usado inclusive como sinônimo por Adorno no seguinte trecho: “De fato, o ‘crístico’, em Kierkegaard, se acomoda sem solução de continuidade como um ‘estádio’ à progressão de sua filosofia, contrariando sua tese” 89)