Corpo na literatura sacro-erótica: um exemplo em Vita Nuova, de Dante Alighieri, e no testemunho da transverberação de Santa Teresa D’Ávila

Body in sacro-erotic literature: an example in Vita Nuova, by Dante Alighieri, and in the testimony of the transverberation of Santa Teresa D'Ávila

Doris Nátia Cavallari
Doutora em Letras (Área de Teroria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Contato: dorisn@usp.br

Anne Caroline do Nascimento Ribeiro
Mestra pelo programa de Pós- Graduação em Letras e artes da Universidade do Estado do Amazonas. Contato: annecaroline.ribeiro@usp.br


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Resumo: A literatura medieval desenvolvida entre 1200 e 1350 e sua evolução subsequente revelou um período de grande riqueza de produção literária mística, de acordo com estudiosos da história da mística ocidental, como Bernard McGinn (1998). O período é altamente propício para uma investigação preliminar na qual a mística seja protagonista e, por este motivo, propomo-nos a estudar o conceito de erotismo espiritual em trechos de Vita Nuova (1292-1293), de Dante Alighieri (1265-1321), poeta, filósofo, político e grande nome da literatura italiana, e nos escritos de Santa Teresa D’Ávila (1515-1582), beata, autora de tratados, poemas e uma das mais importantes esposas místicas da Igreja Católica. Partimos da hipótese de que a carga erótica presente na experiência mística ultrapassa apenas um ideal de prazer corpóreo, mas apresenta, através do corpo, o início e os indícios da magnitude da experimentação espiritual. Para tanto, em Dante observaremos os efeitos dessa experiência mística no corpo, embasando-nos nos estudos de Agamben (2007), como conceito de amor como fantasma, Sturges (2012) e Santagata (2017), bem como exploraremos a temática mística e erótica de Santa Teresa através de seus próprios escritos a respeito do episódio de sua transverberação e dos tratados de Câmara (2020) e Alves (2019). 

Palavras-chave: Misticismo; Transverberação; Santa Teresa D’Ávila; Dante Alighieri.

Abstract: Medieval literature developed between 1200 and 1350 and its subsequent evolution revealed a period of great wealth of mystical literary production, according to scholars of the history of Western mystics, such as Bernard McGinn (1998). The period is highly propitious for a preliminary investigation in which the mystique is the protagonist and, for this reason, we propose to study the concept of spiritual eroticism in excerpts from Vita Nuova (1292-1293), by Dante Alighieri (1265-1321), poet, philosopher, politician and great name in Italian literature, and in the writings of Teresa D'Ávila (1515-1582), blessed, author of treatises, poems and one of the most important mystical wives of the Catholic Church. We start from the hypothesis that the erotic charge present in the mystical experience goes beyond just an ideal of corporeal pleasure, but presents, through the body, the beginning and the indications of the magnitude of spiritual experimentation. To this end, in Dante we will observe the effects of this mystical experience on the body, basing ourselves on the studies of Agamben (2007), Sturges (2012) and Santagata (2017), as well as exploring the mystical and erotic theme of Santa Teresa through her own writings about the episode of his transverberation and the treatises by Câmara (2020) and Alves (2019).

Keywords: Mysticism; Transverberation; St Teresa of Ávila; Dante Alighieri.

Introdução

Através dos estudos da filosofia do erotismo no fenômeno místico e no processo de criação poética, o presente artigo objetiva tecer uma investigação preliminar da reverberação do papel do erotismo espiritual e suas intersecções com a experiência mística na literatura de dois autores específicos, colocando em paralelo como essa manifestação ocorre em Vita Nuova (1292-1293), por meio da relação entre musa e o autor-poeta, Dante Alighieri (1265-1321), e  também na obra de uma das mais reconhecidas esposas místicas da Igreja Católica, Santa Teresa D’Avila (1515-1582), segundo os relatos da beata em sua magna opus, O livro da Vida (1562-1565).  Estabeleceremos um prisma que revela duas formas de expressão da manifestação sacroerotica e o papel de relevo do corpo em ambas as leituras.

A filosofia do erotismo tradicionalmente repousou em um terreno ambíguo: de um lado a premissa cristã que contrapôs corpo e espírito como dois elementos de valores diferentes; do outro, a própria descrição da experiência espiritual por santos, mártires e pela Bíblia, onde corpo não se traduz como parte fundamental e reflexo da potência experiência sagrada. Encontrar e descrever o papel do corpo na experiência espiritual e, ainda mais, explanar seu valor também como experiência erótica, encontrou em autores como Souza Nunes (2019), Eliade (1992), Bataille (1987) e Zolla (2018) um campo fértil de análises e estudos com grande potencial a ainda ser explorado. 

Em um primeiro momento, podemos delimitar as esferas que compõem a teoria do sacro-erotismo, sua matriz como filosofia recém emergente dos estudos literários e teológicos. A partir de então, ao traçar o paralelo entre o corpo com as gêneses dos cultos religiosos, do pagão ao cristão, estabelecemos o fio de Ariadne que conduz o elemento corpo nesse processo, passando pela escrita poética de Dante, homem religioso do baixo medievo, e repousando no Livro da Vida, de Teresa D’Ávila.  

Santa Teresa D’Ávila, como responsável pelos relatos de suas experiências, tanto em O livro da Vida quanto em seus poemas, fornece-nos um relato em primeira mão de seu entendimento sobre sua própria vida santa e sua espiritualidade. Para além de seus escritos, dispomos também de uma ampla gama de estudos a serem aferidos, dentre os quais grande parte, como Câmara (2020), Costa Alves (2019) e Gutiérrez (2003), dedicaram-se a investigar a vida da santa frente às suas experiências místicas e eróticas. No que diz respeito à obra de Dante, Agamben (2007), Sturges (2012) e Santagata (2017) complementam a nossa abordagem no que se refere aos efeitos da filosofia do erotismo na visão sobre o Amor segundo o poeta em um contexto medieval. 

1. O corpo na literatura sacra medieval

Nos alicerces do Cristianismo Ocidental, encontramos corpo e alma como duas instâncias ligadas, mas tratadas sob perspectivas diferentes. O corpo seria, para o cristianismo, uma limitação para o que há de realmente glorioso no homem: a alma (PAZ, 1994, p. 22). Entretanto, muitas religiões, como a judaica, atribuíram ao corpo um lugar de celebração, o que denota uma carga de contradição a ser considerada, uma vez que o Cristianismo é a reconhecida religião da divindade encarnada, onde Deus fez-se carne na vida, e esta carne perpetua-se no ritual da hóstia e na crença da ressurreição (PAZ, 1994, p. 22).

O ser humano, em sua busca por vincular-se ao sagrado, empenhou-se fielmente em construir espaços nos quais a conexão com o divino pudesse ser estabelecida. É o caso de catedrais, obras de arte e até dos próprios sacramentos, como a eucaristia (alimentar-se do corpo de Cristo). Também é o caso da língua e, subsequentemente, da poesia, que se faz corpo textual, pois estas duas esferas encontram-se tão intimamente relacionadas quanto o erotismo e a sexualidade (PAZ, 1994, p. 12).

No espaço literário, o desejo do homem em fundir-se, ou de ao menos aproximar-se, do que se considera sagrado, existe com grande força naquilo que nasceu antes de tudo: o verbo (João 1:1-4), desse modo a Bíblia assume uma forma da encarnação da palavra de Deus. Esta proposta pode ser melhor compreendida sob a luz da revelação de que a palavra, por seu próprio ser, é representável, de acordo com Barthes (1994, p. 64), segundo um princípio de alteridade e da compreensão da importância do outro como elemento substancial da experiência textual.

A alteridade também caracteriza fortemente as relações estabelecidas através do amor Eros. Mas o início do amor Ágape, tido como amor sacro de princípio espiritual, seria realmente o fim do Eros, que se manifesta no comportamento e, portanto, entra em conflito com o cristianismo? Por que o encontro prazeroso é descartado quando o amor Eros é, além do desejo pelo objeto amado, um desejo ascensional (Quatrocchi, 1997, p. 988)? Este mesmo desejo também é recuperado pela filosofia do erotismo quando se compreende a própria experiência erótica como uma sede da compreensão da condição humana, uma tópica tão comum a todas as religiões pois “o erotismo é, na consciência do homem, o que o leva a colocar o seu ser em questão” (BATAILLE, 1988, p. 33). 

A mesma noção de Erotismo defendida por Bataille (1988, p. 21), a perda do ser e o encontrar-se no outro, subdivide-se entre o erotismo do corpo, erotismo do coração e erotismo do espírito, explanadas como esferas relativamente diversas. Todavia, o autor não deixa de recuperar o erotismo do corpo quando define o do espírito, ainda que para contrapor o caso de D’Ávila ao que seria, de fato, um erotismo espiritual. Pulsões eróticas, como a própria pulsão de morte, antes de adentrarem a alma passam por aquilo que, neste caso, não é tido como uma jaula, mas como uma porta: a própria dimensão física. O erotismo pertence ao campo da alteridade, pela busca por um outro nunca totalmente suprida, tal qual a religião cristã, por exemplo, onde esse outro está presente na imagem da Alteridade absoluta, Deus, nunca alcançado em sua totalidade. Ademais, a alma, como Souza Nunes (2019) recorda, também expressa seus desejos através da carne e da necessidade do outro. Segundo Paz (1994, p. 20), não poderia ser de outra forma, sendo o erotismo, antes de tudo sede de outridade “e o sobrenatural é a radical e suprema outridade.”

Mas como esse erotismo espírito-corpo exprime-se na literatura? Poderíamos iniciar falando sobre as admoestações de São Francisco, elemento principal de análise de Souza Nunes, percursos do termo “espiritualismo erótico”. Até mesmo a própria Bíblia nos fornece o que seria um dos livros mais eróticos da Antiguidade: o Cântico dos Cânticos, onde o corpo é usado, segundo Soares[1], como pura metáfora e que, ainda assim, não deve ser lido fora do campo sagrado. Há de fato, uma tradição a se considerar quando nos dispomos a investigar esse fenômeno na literatura.

2. Corpo, erotismo e Dante

Agamben, em Estâncias: a palavra e o fantasma na Literatura Ocidental (2012), traz à tona a teoria do sacro erotismo no medievo ao estudar esse fenômeno à luz da fantasmologia, burlando uma análise tendenciosa que apenas dividia corpo e espírito sem levar em consideração uma contribuição orgânica entre ambos. Para o autor, o homem medieval é acometido pela acídia, um estado de tristeza profundo associado aos bens espirituais do homem. Nesse estado de acídia, o indivíduo encontra-se preso na contemplação de uma meta que lhe é presentada ao mesmo passo em que lhe é impossibilitada. Mas a acídia se vale de uma polaridade positiva, a tristitia salutifira, uma virtude por apresentar-se como um estímulo para a alma. O intenso furor provocado pela melancolia parece seguir conceitos associados à mania divina platônica, na qual o sentimento não é considerado de todo nocivo, mas é capaz de possibilitar um meio de ascensão rumo à contemplação divina. Este eros melancólico apresenta uma falta presente no luto, a diferença é que no luto o objeto perdido é um fato, enquanto para a melancolia ele é muitas vezes uma incógnita, uma realidade fantasmagórica, inapreensível. Uma fantasia.

Nesse sentido, a imagem age como elemento crucial na psicologia amorosa no medievo, o amor por uma imagem viva, no caso dos stilnovistas, uma mulher, não apenas uma escultura ou uma pintura, mas uma visão real “pintada no próprio coração do amado” (AGAMBEN, 2012, p. 128). Dessa forma, o tema amoroso vincula-se a imagem, não apenas física, mas sua memória[2], seu fantasma, sob o qual situa-se o signo do desejo.

A função desse fantasma é um fundamental no processo cognitivo através do olhar, “o fantasma penetra através dos sentidos externos e internos, até tornar-se fantasma ou ‘intenção’ na cela fantástica e na memoria” (AGAMBEN, 2012, p. 145). Corpo e espírito não podem ser desassociados nesse seguimento, 

a alma que é verdadeiro espírito, e a carne que é verdadeiro corpo, fácil e convenientemente se unem em seu ponto extremo, a saber, no fantástico da alma, que não é um corpo, mas é semelhante ao corpo, e na sensualidade da carne, que é quase espírito.” (CLARAVAL, 40, 789 apud AGAMBEN, 2012, p. 169). 

Esse processo de assimilação fantasmagórico responsável por elevar o grau de subjetivação de produção e recepção do objeto externo, no entendimento de Silva (2009), imprimiu-se diretamente na organização do discurso, como percebido com considerável efeito na literatura fantástica e, em nosso caso, na poesia religiosa. Enquanto figuração simbólica, o fantasma opera como elemento propulsor para a potencialização estética em máxima funcionalidade do poeta.

Para os poetas stilnovistas, o processo de escrita tem sua gênese através do desejo erótico de ascensão estabelecido em sua mente através da imagem fantasmagórica de suas musas e em como esse desejo transforma-se em potência. Mas, para isso ocorrer, os sentidos são ferramentas fundamentais, tal como a visão, o tato e o paladar. É através da visão do objeto do corpo amado que nasce o cuore gentile, nobile; é a perturbação física em algum nível que leva o poeta do dolce stil novo[3] a escrever. Tudo se traduz em perturbação espiritual refletida no corpo[4]. Os elementos sensoriais aproximam muito mais os efeitos do amor de uma patologia, mas é “justamente através do fantasma que se torna possível a contemplação das substâncias separadas (virtude do céu fica elevada).” (JUNGBLUT, 2012, p. 1242). Essa perturbação em níveis patológicos e esse desejo infrene por um objeto de contemplação pode proceder pela melancolia que excita os poetas a escrever sobre o fantasma ao invés de esquecê-lo.

2.1 O exemplo em Dante

A afeição religiosa de Dante ecoa por gerações procedentes pela sua já reconhecida épica aventura em A Divina Comédia (1304 – 1321), onde os caminhos que compõem a narrativa são planos espirituais: Inferno, Purgatório e Paraíso. Ainda assim, compreender toda a dimensão religiosa da criação de Dante é um trabalho no qual um fim ainda não pode ser vislumbrado, dado o material substancial intenso. Anterior à escrita da Comédia, os primeiros passos de Dante na poesia espiritual são explorados em Vita Nuova, onde narra o amor por Beatriz, a qual de antemão podemos anunciar como o elemento crucial no processo de ascensão espiritual. [5]

Para Dante, o desejo por Beatriz é corporal, mas atinge um alto nível espiritual em Vita nuova, pois, no que tange a alteridade, ambos os campos estão vinculados: Dante anseia também a transcendência. 

Em Vita Nuova, o capítulo III nos traz, além do episódio do reencontro e da saudação, o momento em que o próprio Dante é agraciado por uma visão que oscila entre onírica e profética, onde o Amor surge como ditador — como profere em sua famosa fala: ego dominus tuuos — com a figura de Beatriz em seus braços, nua, ligeiramente envolta de um tecido vermelho. Nas mãos porta o coração ardente do poeta, o qual ela devora, receosa, enquanto aparenta estar em torpor de sono. Nesta visão, através da fala do Amor como ditador e da forte cena de Beatriz a devorar o coração de seu devoto, denota-se o poder a ser exercido pelo sentimento amoroso em sua totalidade telúrica sobre Dante. O coração é carne, pertencente, agora, àquela que mais próxima de Deus do que o poeta se encontra. 

E parecia-me que o homem sustentava numa das mãos algo que ardia intensamente, e, ainda, que me dizia estas palavras: Vide cor tuum. Ao cabo de alguns momentos pareceu-me que despertava a adormecida; e tanto se esforçava engenhosamente que lhe fazia comer o que lhe ardia na mão, coisa que ela executava com escrúpulo. [6] (VN. III, p. 9)

O próprio ato de comer exprime o sacro erótico, como a eucaristia, que também pode enquadrar-se no mecanismo pneumático, e manifesta o corpo sacro sendo alimento, entrando em uma cavidade dentro de um corpo humano, servindo de alimento para a alma. Um ato sacramentário resgatado por Dante na onírica visão do momento em que Beatriz ingere o coração do poeta. Para Souza Nunes (2019), a eucaristia é uma das expressões da necessidade da alma através da carne, sendo assim uma noção de como o espiritual sempre irá encontrar lugar no homem através do corpo por meio dos mais diversos orifícios e passagens e, se ainda levarmos o termo “orifícios” mais literalmente, a própria derme não está isenta: os poros se manifestam por toda pele, por ela expurga o suor, externalizando em alguns momentos o efeito da visão do ser amado diante do amante.

Não obstante, o canibalismo como conexão sagrada também faz parte de uma tradição milenar que Eliade (1992, p. 56) recupera como mecanismos de rememoração de um tempo eterno da mística “comendo as primícias da colheita dos tubérculos, come-se o corpo divino tal como durante as refeições canibais”. Na maneira que os homens paleocultivadores usam, os ritos traduzem-se como uma eterna rememoração. Assim o fazemos na Santa Eucaristia, rememorando o momento em que bebemos do sangue e do corpo de Cristo como na Santa Ceia. Para Battaile, o canibalismo em sua dimensão simbólica vincula-se ao erótico quando nele se encontra a transgressão plena. Ao devorar o outro, há uma aniquilação dos limites individuais e uma experiência de comunhão extrema. 

 A esta prosa da visão onírica de Dante, segue os versos de A ciascunalma presa, e gentil core.

A toda a alma prisioneira, a todo o coração gentil, 

até aos quais correndo vá o meu lamento 

(e que diga cada um aquilo que sente) 

saúde em seu Senhor, ou seja o Amor.

[...] 

Alegre me parecia, tendo

numa das mãos meu coração, e nos braços,

envolta num cendal, minha dama, adormecida

Despertou-a; e desse coração, que ardia,[7] (VN. III, p. 10)

Não foge ao senso da interpretação moral-teológica a compreensão de que, ao mesmo tempo em que se eleva a musa ao estado divino, traz-se o divino para mais perto da dimensão telúrica. A divindade faz-se carne, tal como a própria encarnação de Deus como homem. 

Retornando ao papel dos sentidos neste processo, o olhar, o mais espiritual dos sentidos segundo Sturges (2012), ganha destaque por ser o primeiro nível para o stilnovista neste cruzamento corpo-alma. Como bem recorda Santagata (2017), é “nel vederla” que desenvolve-se o primeiro nível de paixão de Dante por Beatriz. No “reencontrar-la”, temos o segundo e determinante nível: a tão desiderata saudação, cujos efeitos são perfeitamente sintetizados pelo autor:

A saudação de Beatriz - não por acaso chamada de "donna della cortesia" (“dama da cortesia”) e também de "donna della salute"(“dama da saúde”) e, diretamente, "saúde”" “esta saúde saudava) - é salvífico, do gesto cortês sublima-se em um sinal de graça. Aquele que o recebe experimenta o "extremo da bem-aventurança" “todos os termos a beatitude”), enche-se de tanta "doçura" que fica "embriagado". Essa plenitude de felicidade ou "excesso de doçura" produz em Dante tanto efeitos físicos (ele fica com a visão ofuscada e o corpo quase paralisado) quanto impulsos morais benéficos: ele queima com uma "chama tão ardente de caridade" que perdoa qualquer um que o tenha ofendido. O cumprimento como motor de aperfeiçoamento ético se entrelaça inextricavelmente ao cumprimento como prefiguração da bem-aventurança paradisíaca.[8] (SANTAGATA, 2017, p. 12, tradução nossa)

O ato de saudação, equiparado pelo autor ao termo “salvação”, não foi uma tópica introduzida originalmente pelos stilnovistas como um ato sacro entre a bem-aventurança e o bem-aventurado. Algumas passagens da Bíblia, como a saudação de Gabriel e Maria (Lucas 1:26-38) e de Maria a Isabel (Lucas 1:39-80), ostentam o efeito místico e espiritual que a saudação provoca no corpo que a recebe. Isso traduz-se não em sofrimento para Dante, ao contrário: potencializa-se em desejo erótico de ascensão através da imagem, do fantasma. O ato da saudação é divino ao mesmo tempo em que este divino está o mais próximo possível da esfera humana. A vertente franciscana adota a dialética erótica da teologia da encarnação para sanar a problemática do mundo corporal-material versus a realidade espiritual. O coração a ser devorado também expressa uma alteridade por meio da qual se denota faceta erótica. Deus passa a ser desejado e consumido através do corpo humano.

No capítulo XI, o ato da saudação é revisitado nos efeitos que exerce sobre o poeta quando este afirma que, quando lhe saudava a gentilíssima mulher, o espírito do amor exteriorizava-se sobre os demais e toda sua beatitude sobrepujava a capacidade do poeta, cujo corpo estava sob o império da musa. Já nos versos de Donne ch'avete intelletto d'amore, novamente o sentimento amoroso retoma o sensorial que põe em relação codependente o sentimento amoroso puro e a perturbação dos sentidos físicos causados pelo ato de admirar a sua donna, demonstrando como através dessa adoração física age o amor divino através de spirti damore inflammati que partem do olhar de Beatriz e penetram o coração de quem a mira. 

Dos olhos seus, como quer que os mova, 

saem inflamados os espíritos de amor, 

que cegarão a quem então a fite,

e ao mais fundo vão dos corações: 

vede onde ninguém, fixamente, a pode olhar.[9](VN, XIX, p. 44)

Derradeiramente, a própria morte de Beatriz constitui um componente da filosofia do Erotismo, ao se deparar com a questão da descontinuidade: a morte confronta-se com o desejo de continuidade do homem, com o seu desejo de transgredir a própria natureza ínfima e a incontinuidade do seu ser. Paradoxalmente, é um desejo  que depende da existência da morte para existir. O fantasma de Beatriz, sua imagem tão intensamente radicada na mente do poeta é um dos mecanismos do qual o trasumanare[10] de Dante, que ainda está por suceder-se, ocorrerá. O desespero latente do poeta ao recordar a finitude do ser humano em corpo é suprimido apenas pela perspectiva da continuidade espiritual onde o ser humano poderá, enfim, estar em total paridade com o divino. 

3. O exemplo de Santa Teresa D’Ávila 

A partir daqui, podemos analisar o fenômeno do impulso erótico do corpo associado ao sacro através de dois prismas. O primeiro revelou o fenômeno fantasmagórico que Agamben resgata a partir do poeta, o criador, aquele em que a potência erótica se transforma em potencial de ascensão espiritual. Mas a segunda vertente, abordada a partir de agora, traz-nos mais uma forma de contemplar os efeitos do erotismo espiritual: a união com o amante místico e o êxtase do prazer da alma através do corpo – a exemplo, o episódio do êxtase de Santa Teresa D’Ávila. 

Denominada como uma Esposa mística[11] do catolicismo, Santa Teresa de Jesus, ou D’Ávila, encontra-se entre as figuras femininas de maior relevo do período contrarreformista, reconhecida já em vida pelo seu papel desempenhado nas ideias de reforma e de uma nova mística espiritual.[12] Dentre as reformas influenciadas por D’Ávila, encontra-se a forte presença de uma vida espiritual voltada às missões e à contemplação. A melancolia e problemas de saúde a acompanharam durante toda a vida, o que resultou em uma relação de rejeição de D’Ávila para com este mundo e de extrema ânsia pelo outro, por deus, e pela promessa de viver sem dor. Ela deseja sua morte e seu amado põe fim a qualquer receio de descontinuidade. 

Alves (2019, p. 10) coteja essa busca à dinâmica do eromeno e erasta, na qual deus assume papel de erasta e D’Ávila de eromeno. A inclinação de D’Ávila a episódios de melancolia podem ser considerados à luz de seu espírito contemplativo e das incertezas com as quais a santa se deparava temendo o próprio corpo por um lado, e, por outro, fazendo dele parte elementar de sua vida apostólica, como descrito em seus relatos.

Em A filosofia mística de Santa Teresa D’Avila, Gutiérrez (2003) enfatiza parte desta reconhecida filosofia da mística de Santa Teresa através dos próprios estudos por ela tecidos a respeito do Cântico dos Cânticos, associando a leitura da beata como indicativos dos seus próprios pensamentos a respeito do amor, misticismo, fé e vida, o que revela a originalidade com que a própria via a relação com Cristo e as implicações eróticas desse desejo. 

Ela queria Cristo: queria o Cristo-Deus, porém também queria o Cristo-Homem. Esperava dele o beijo divino, prometido no Cântico dos Cânticos. Esperava estar deitada com ele sob a sombra da macieira com sua cabeça no peito de Cristo. Para não ter dúvidas casou duas vezes. Duas bodas místicas: ela era a noiva de Cristo. Teresa, doente e angustiada pelas tentações deste mundo, ousou imaginar e pensar sobre Deus de uma maneira diferente: se Calcedônia tinha afirmado que Cristo era Homem e Deus simultaneamente, então ela queria o homem e queria o Deus. (GUTIÉRREZ, 2003, p. 129)

Em seu tratado mais reconhecido, O livro da Vida, Santa Teresa narra sua própria história, em meio às doenças que a assolaram desde tenra idade, até o conflito da sensualidade do próprio corpo e as reverberações disso em sua experiência de vida religiosa. Segundo Bataille, a santa afasta-se com receio daquilo que lhe causa terror, como o sensual, pois os próprios movimentos do corpo a assustam, “entretanto, é possível procurar a coesão do espírito humano, cujas possibilidades vão da santa ao sensual. A posição em que me coloco permite perceber a coordenação dessas possibilidades opostas” (BATAILLE, 1987, p. 7), uma espécie de batalha em que Teresa encontrou-se e refletiu em nível interior – em relação íntima com o Amado, Deus – e o movimento exterior, em relação à sua posição feminina frente a imposições patriarcais da Igreja (ALVES, 2019, p. 8). Mesmo D’Ávila, vez ou outra, encontrou-se em dúvida se suas experiências lhes eram brindadas por Deus ou por forças contrárias à santidade.

O testemunho mais famoso de Teresa D’Ávila no Livro da Vida, o episódio da transverberação, revela-nos a força de uma experiência espiritual que inicia e termina no próprio corpo, trazendo o erotismo espiritual à tona de uma forma diferente da anteriormente apresentada. Ela vivencia uma experiência que vagueia entre a descrição do prazer e da dor de maneira a internalizar o amor de Cristo através das visões nela incutidas: 

Quis o senhor que eu tivesse algumas vezes esta visão: eu via um anjo perto de mim, do lado esquerdo, em forma corporal...não era grande, mas pequeno e muito formoso, com um rosto tão resplandecente que parecia um dos anjos muito elevados...deve ser um dos que chamam querubins. Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo. Eu tinha a impressão de que ele me perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o retirava parecia que as entranhas me eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso amor de Deus. A dor era tão grande que eu soltava gemidos e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa que a alma desejava que não tivesse fim nem se contentava senão com a presença de Deus. Não se trata de dor corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participe, às vezes muito. É um contato tão suave entre a alma e Deus que suplico à Sua bondade que dê essa experiência a quem pensar que minto (D’ÁVILA, 2010, p. 154)

Estes detalhes sensoriais, como a perturbação que faz o corpo suar frio, o coração incendiar-se por esse espírito de amor, além da mudança de temperatura corporal e até a dor, aproximam a descrição do “efeito do amor”, descritos por Dante, das descrições epifânicas ou de êxtase espiritual de quem experimenta a graça divina em contato com o corpo humano, geralmente delatada por santos e mártires, como pode-se observar na transverberação de Santa Teresa D’Ávila. 

O espírito sutil que penetra através dos olhos é o espírito visivo que, conforme sabemos, é altior et subtilius; “ferindo” através dos olhos, ele desperta o espírito que se encontra nas celas do cérebro e o informa com a imagem da dama. E é por meio deste espírito que nasce o amor (o “spirito d’amare”), que enobrece e faz tremer todo outro espírito (isto é, aquele vital e aquele natural). (AGAMBEN, 2012, p. 177)

A visão sagrada do Anjo é o primeiro nível em que ocorre a entrada do ser espiritual no corpo de Teresa; olhando diretamente para o que lhe é sagrado, ela é arrebatada pela fascinação. Ela não teme o dardo direcionado ao seu coração, que lhe fere repetidas vezes e que causa um sentimento de prazer extremo em meio aos ressonantes gemidos. Neste ponto, não se sabe onde o prazer espiritual e a dor começam ou terminam, e mesmo sendo uma sensação espiritual “o corpo também participa, às vezes muito”. Neste processo, o amor e a repulsa por este mundo contrapõem-se de maneira orgânica, isso por ser o erótico o elemento central que une sexualidade e mística “que se traduz em desejo de morte, e que consequentemente se transforma em aspiração à vida divina” (BATAILLE, 1987, p. 10 apud ALVES, 2019, p. 14). Para Largier e Brett, a prática imaginativa de oração e meditação é um elemento mobilizador da dimensão afetiva e da imaginação. O resultado é que a vivência em dimensão corpórea ultrapassa a divisão da imagem e personificação para que a contemplação dê lugar ao amor puro.

A excitação pela imagem está de um lado, o prazer do amor como sua personificação está do outro. Como Pedro escreve, tudo discursivo é ultrapassado em favor de um amor e um affectus nos quais a alma se eleva, abandonando as imagens (Pedro fala de "todas as imaginações") através das quais estimulou seu próprio desejo apaixonado e através das quais a própria possibilidade dessa interação com imagens se tornou possível. (LARGIER E BRETT, 2003, p. 8)[13]

A representação visual assume lugar de primazia, mas não basta, inicialmente compensando a inteligibilidade de compreensão do divino para a razão humana. Ela é propulsora de uma vivência performática, que não seria plena sem a tríplice de corpo-espírito-deus porque para compreender a imagem é preciso apreendê-la fisicamente. A transverberação, para além do relato na narrativa no Livro da Vida, logo é transformada por Teresa D’Avila em um poema, Dilectus meus mihi. 

Quando o doce 

Caçador Me atingiu com sua seta, 

Nos meigos braços do Amor

Minh'alma aninhou-se, quieta.

E a vida em outra, seleta, 

Totalmente se há trocado: 

Meu Amado ê para mim, 

E eu sou para meu Amado. 

Era aquela seta eleita 

Ervada em sucos de amor, 

E minha alma ficou feita

Uma com o seu Criador. 

Já não quero eu outro amor, 

Que a Deus me tenho entregado: 

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

(D’ÁVILA, 1951, p. 170.)

eresa descreve o evento como o momento em que sua alma e a do seu criador tornaram-se únicas. A paridade tão ansiada pelo ser humano na aspiração pela unidade com o deífico, iniciada e perpassada pelo corpo para atingir o espírito e retornar às sensações carnais, resulta no arrebatamento espiritual, no momento pleno e orgástico do ápice de sua transverberação.

Sobre a união dos amantes, Bataille (1987, p. 15) considera que: 

A posse do ser amado não significa a morte; ao contrário, a sua busca implica a morte. Se o amante não pode possuir o ser amado, algumas vezes pensa em matá-lo: muitas vezes ele preferiria matar a perdê-lo. Ele deseja em outros casos sua própria morte. O que está em jogo nessa fúria é o sentimento de uma continuidade possível percebida no ser amado. Ao amante parece que só o ser amado — isto tem por causa correspondências difíceis de definir, acrescentando à possibilidade de união sensual a união dos corações — pode neste mundo realizar o que nossos limites não permitem, a plena fusão de dois seres, a continuidade de dois seres descontínuo.

Agamben (1992) reitera como a pneumatologia, extenso estudo sob a qual a teologia debruça-se ao tratar do ser espiritual e de Deus, funde-se ao processo fantasmagórico. Compreende-se que o amante de Teresa é o amado que lhe promete romper com o mundo terreno e sua dor e entrar adentrar ao outro mundo. Para Zolla (2018), ao tratar de religião, já não falamos apenas de memória, mas de profunda idealização, resultado de uma falta e uma busca original. A mecânica da idealização também parte de um eu, de um desejo pela personificação de um objeto, sentimento, sujeito e de tudo que internalizado por esse “eu”. Quando nos referimos a esse outro puramente espiritual, a poesia stilnovista, embora profundamente espiritualista, ainda concede uma corporeidade à mulher, que se rompe violentamente com a morte da musa. No cristianismo também se fez necessário atribuir uma certa corporeidade idealizada à figura de deus como homem, já que o homem é feito a sua imagem e semelhança, embora exista no extenso universo da impossibilidade de ser tocado por qualquer sentido natural, gerando um eterno sentimento de melancolia. A própria poesia erótica cristã também age como alegoria através do corpo. 

No poema Buscando a Deus, D’Àvila contempla a constituição imagética do amado como a imagem pintada no coração do amante que muito se assemelha ao processo pneumofantasmológico stilnovista.

De tal sorte pôde o amor,
 Alma, em mim te retratar,
 Que nenhum sábio pintor
 Soubera com tal primor
 Tua imagem estampar.

Foste por amor criada,
 Bonita e formosa, e assim
 Em meu coração pintada,
 Se te perderes, amada,
 Alma, buscar-te-ás em Mim.

Porque sei que te acharás
 Em meu peito retratada,
 Tão ao vivo esboçada,
 Que, em te olhando, folgarás
 Vendo-te tão bem pintada. 

(D’Ávila, 1951, p. 174)

A figura da esposa celeste, do amante invisível da filosofia zolliana, exemplifica uma extensa herança cultural do arquétipo da musa sobrenatural. Matrimônios e uniões entre humanos e seres divinos em algumas ocasiões são relacionados por Zolla (2018) à plena devoção religiosa, e não raramente se expressam em sonhos recorrentes de grande significância para essa união e para a expressão mística dos indivíduos envolvidos. Do ponto de vista metafísico, esse sonho é uma ponte comunicativa entre dois planos, terrestre e divino, mas também pode ser lido sob a ótica da psicologia e da antropologia. Na literatura stilnovista, os sonhos seriam produtos do processo fantasmagórico como postulado por Agamben.  Na matriz religiosa e para a escrita poética cristã, sonho e realidade se vinculam, os sonhos se tornam a realidade e oferecem uma visão profunda e sensível da natureza espiritual[14], eles são condutores na relação entre amante místico e humano, como ocorre entre os xamãs e seus maridos e esposas espirituais.  

Ao evocar um universo de significados que ultrapassa a dimensão objetiva da realidade, o fantasma viabiliza o acesso do autor a uma esfera de imaginação e criatividade que permite a elaboração de uma linguagem própria que se revela como um meio de assimilação e exteriorização da realidade vigente que o rodeia, possibilitando-lheuma forma singular de expressar e interpretar o meio em que está inserido e a experiência a qual está submetido. Dessa forma, este fantasma assume um papel fundamental na criação, como elemento catalisador da subjetividade artística. Em síntese, as palavras orquestram respostas sensoriais imaginárias, por meio de imagens do desejo, “essa provocação usa o meio verbal para simular conexão visceral, transformando conteúdo intelectual em conotação física” (HUNT, 2008, p. 21).

 Não são poucos os autores que tentaram desvendar a profundidade da relação de D’Ávila através das descrições de uma experiência orgástica:

segundo Pires (2007), suas descrições desses momentos envolviam desfalecimentos, levitações, descompasso de respiração e de pulso, rigidez muscular, além de imagens de liquefação e penetração (trespassamento ou transverberação, considerado pela Teologia Espiritual como o mais alto grau de união mística que o ser humano pode alcançar). De acordo com Tesone (2008), o êxtase a que Teresa se referia pode ser compreendido como uma busca pela completude narcísica por meio de uma ligação fusional com o Divino, desligando-se de si. (CÂMERA, 2021, p. 1134)

À luz do autor supracitado, podemos também observar que ainda que as vivências místicas de D’Ávila remetam a uma semântica extremamente sensual, isso é feito sem malícia, sem a carga sexual que teria por si mesma se não se tratasse de um evento religioso. A experimentação a qual a beata foi submetida pode ser explanada sob a luz de uma canalização de todos os impulsos sexuais que eram negados em sua vida religiosa, portanto, a repressão dos impulsos transferiu-se ao ato da união mística, pela própria penetração do corpo – a transverberação –   fenômeno que reflete um alto grau dessa ligação fusional com o que é considerado divino. 

Considerações finais

No primeiro momento, vimos em Dante a expressão do valor da experiência mística e religiosa, por meio da musa. Através do corpo e da visão do corpo que o desejo impulsiona, a escrita é o resultado da potência, mas não possui o fim da experiência espiritual, que está em interdito pela própria natureza inalcançável pela união com Deus. O unir-se a Beatriz é uma instância que pertence ao impossível, mas a contemplação torna possível a ascensão e o enobrecimento, adicionando ao processo a dimensão física de tudo aquilo que é sentido por Dante, em todos os momentos, até tornar-se digno de encontrar sua musa no Paraíso. 

É de nosso extremo interesse verificar como o arrebatamento espiritual reverbera no homem através da condição de perturbação física e mental que o leva a ser o ator da “potência de ser”. Já a mulher, como no caso de Teresa D’Ávila, é representada, primeiro segundo ela mesma, e depois por diversos outros artistas, como a que exprime o arrebatamento através das instâncias do prazer carnal, onde a dor e o gozo encontram-se no limiar um do outro, podendo-se dizer, fundidos, e posteriormente transformados de experiência mística em corpo textual, em poesia. 

Ademais, os estudos sobre as intersecções flagrantes entre erotismo, religião e arte não se limitam a poesia e contribuem para sanar alguns questionamentos sobre as interrelações de experiências limítrofes e a exploração desses recursos na arte e na literatura, em um ciclo de tensões sensíveis à experimentação humana com sua realidade e com a realidade deífica desejada. Ao final, ambas as experiências podem ser traduzidas pelos nossos autores em arte, fazendo da palavra um ato de amor humano que se irmana ao divino.

Referências 

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ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. Edição bilíngue Italiano/Português. São Paulo: Editora Lamark, 2005. 

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BARBER, Joseph A. The Role of the Other in Dante's “Vita Nuova”. In: Studies in Philology, v. 78, n. 2, 1981: 128-137.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

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CÂMARA. Yls Rabelo. Entre o Sacro e o Profano, entre o Gozo e o Interdito: a polêmica, prolífica e profícua Santa Teresa de Ávila. In: Revista Caracol, São Paulo, N. 21, 2021: 1120-1147

D’ÁVILA, Santa Teresa. O livro da vida. Tradução Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Companhia, 2010.

D’ÁVILA, Santa Teresa. Obras de Santa Teresa de Jesus. Tomo V. Opúsculos. São Paulo: Editora Vozes, 1951.

GUTIÉRREZ, Jorge Luis Rodríguez. A Filosofia Mística de Teresa de Ávila. In: Revista Caminhando, vol. 8, n. 1 [11], 2003: 127-157

JUNGBLUT, Ana Carolina. Amor e melancolia: obras da fantasia. In: Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 1, 2012: 1239-1253

LARGIER, Niklaus; BRETT, Jeremy. The logic of arousal: Saint Francis of Assisi, Teresa of Avila, and Thérèse Philosophe. In: Qui Parle, University of Nebraska Press, V. 13, n. 2, 2003.

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ZOLLA, ELÉMIRE. L’Amante invisibile: l’erotica sciamanica nelle religioni, nella letterattura e nella legittimazione politica. A cura di Grazia Manchiano. Marsilio Editore, 2018.

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Notas

[1] Trata-se de um livro religioso, em que, jamais, um texto deveria ser lido fora do âmbito do sagrado. Nas notas que acompanham a publicação do texto O cântico dos cânticos de Salomão, várias observações são feitas quanto ao significado de certas palavras e expressões, de maneira que as partes anatômicas do corpo humano devem ser lidas como metáforas do amor divino, da própria igreja e de personagens do Cristianismo, como Jesus Cristo e Maria (SOARES, 2014, p. 105).

[2] Que Aristóteles define como “a posse de um fantasma como ícone daquilo de que é fantasma”. (ARISTÓTELES, De memoria et reminiscentia, 451a apud AGAMBEN, 2012, p. 136).

[3] Estilo poético que se desenvolveu em Florença, no final do século XIII, caracterizado por uma nova consciência do amor e seus efeitos, através da preocupação com a elevação espiritual e adoração da mulher como intermediaria entre o mundo sagrado e humano. Entre os nomes de maior relevo para o movimento, estão Dante Alighieri, Guido Cavalcanti, Lapo Gianni, Cino da Pistoia, Guido Guinizelli e Guianni Alfani.

[4] “O movimento amoroso dos espíritos se encontra a fórmula neoplatônica do pneuma fantástico na experiência amorosa, do processo que vai dos olhos à fantasia, da fantasia à memória e da memória a todo corpo.” (JUNGBLUT, 2012, p. 1242)

[5] Recupera-se a importância atribuída à Beatriz segundo Barber, para quem três elementos principais caracterizam a obra Vita Nuova: o amor, Dante e Beatriz, sendo o mais importante, dentre eles, a musa. (BARBER, 1981, p. 1)

[6] E ne l'una de le mani mi parea che questi tenesse una cosa, la quale ardesse tutto; e pareami che mi dicesse queste parole: «Vide cor tuuin». E quando elii era stato alquanto, pareami che disvegliasse questa che dormia, e tanto si sforzava per suo ingegno, che le facea mangiare questa cosa che in mano li ardea, la quale ella mangiava dubitosamente. (VN. III, p. 9)

[7] “A ciascun'alma presa, e gentil core,
nel cui cospetto ven lo dir presente,
in ciò che mi rescrivan suo parvente
salute in lor segnor, cioè Amore.
 [...]
Allegro mi sembrava Amor tenendo
meo core in mano, e ne le braccia avea
madonna involta in un drappo dormendo.
Poi la svegliava, e d'esto core ardendo

lei paventosa umilmente pascea:
appresso gir lo ne vedea piangendo.

(VN. III, p. 10)

[8] l saluto di Beatriz – non per caso definita sia «donna della cortesia» sia «donna della salute» e anche, direttamente, «salute» («questa salute salutava») – è salvifico, da gesto cortese si sublima in segno di grazia. Chi lo riceve prova ‘l’estremo della beatitudine’ («tutti li termini della beatitudine»), si riempie di tanta «dolcezza» da restare «inebriato».Tale pienezza di felicità o «soverchio di dolcezza» su Dante produce sia effetti fisici (resta con la vista offuscata e con il corpo quasi paralizzato) sia benefici impulsi morali: arde di una «tale fiamma di caritade» da perdonare chiunque l’abbia offeso. Il saluto come motore di perfezionamento etico si intreccia inestricabilmente con il saluto come prefigurazione della beatitudine paradisiaca. (SANTAGATA, 2017, p. 12)

[9]  “escono spirti d'amore inflammati, 

che feron li occhi a qual che allor la guati 

e passan sì che 'l cor ciascun retrova: 

voi le vedete Amor pinto nel viso, 

là 've non pote alcun mirarla fiso.”

(VN, XIX, p. 44)

[10] Ultrapassar o nível humano.

[11] Sobre o termo mística, Câmara retoma o sentido de relação de alteridade da semântica dessa palavra, que além de expressar o mergulho intenso na experiencia espiritual, também denota uma experiência de relação: “de um lado, surge-nos um ser humano, com características bem definidas como a humildade, a centralização no essencial, a incessante procura e desejo do Absoluto, a aniquilação, o esvaziamento de si, entre outras; de outro lado, a divindade [...].”. (MAGALHÃES, 2015, 44, apud CÂMARA, 2021, p. 1132)

[12] “Em vida, Teresa foi considerada a principal reformadora da Ordem religiosa dos Carmelitas, baseada nos princípios contrarreformistas da Igreja. A partir das iniciativas de Audet, Rossi e Caffardo, superiores dos Carmelitas, em reformar a Ordem, a monja espanhola, Teresa D’Ávila concretiza a ideia na Espanha” (ORAZEM, 2011, p. 1)

[13] The arousal by the image stands on one side, the pleasure of love as its embodiment on the other. As Peter writes, everything discursive is overstepped in favor of an amor and an affectus in which the soul arises, leaving behind it the images (Peter speaks of "todas las imag inaciones") through which it has stimulated its own passionate desire and through which the very possibility of such an intensity of experience was brought about in the first place. 

[14]“No sonho erótico, Proust conduziu uma cuidadosa meditação filosófica. Movido por uma paixão pela verdade, ele abriu caminho para os estados mais obscuros da consciência, compreendendo as diferenças entre o sonho erótico real e as fantasias oníricas. Nestas últimas, a experiência do tempo é a comum, de um presente que avança em linha reta como no espaço, com o passado atrás e o futuro à frente. No sonho erótico real, por outro lado, narrativas complexas se desenrolam em um instante, em uma única convergência de planos interpenetrados, e os significados são transmitidos como relâmpagos, pré-verbais, de tal forma que qualquer tradução deles em signos, em palavras, é uma falsificação.” (ZOLLA, 2018, p. 18, tradução nossa)