Isaac Malheiros
Doutor em Teologia (EST / São Leopoldo). Professor da Faculdade Adventista (UNASP). Contato: saacmeira@gmail.com
Vanessa Meira
Mestra em Teologia (EST - São Leopoldo). Contato: vanessarmeira@gmail.com
Resumo: Este artigo tem como objetivo estabelecer, através de uma leitura atentiva e uma revisão de literatura, o diálogo entre a literatura nonsense e a teologia cristã a partir da obra de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas. Na obra de Carroll destacam-se temas com grande potencial para a discussão teológica, dentre os quais destacaremos a questão do tempo, um tema altamente discutido nos dias de Carroll e com o qual ele estava familiarizado. A leitura do texto de Carroll à luz da teologia cristã levanta ricas reflexões teológicas a respeito de chronos e kairós, bem como suscita discussões a respeito da tensão entre a efemeridade da vida e o aproveitamento do tempo. O artigo compara duas concepções de tempo, mostrando como o Coelho Branco representa o tempo implacável e urgente, enquanto o Chapeleiro Maluco simboliza um tempo subjetivo e pausado. Carroll convida os leitores a explorar curiosas reflexões sobre o tempo enquanto caem na realidade absurda do País das Maravilhas.
Palavras-chave: Teologia e literatura; Tempo; Alice no País das Maravilhas; Lewis Carroll.
Abstract: This article seeks to establish a dialogue between nonsense literature and Christian theology, focusing on Lewis Carroll's work "Alice in Wonderland." By closely examining the text and conducting a literature review, the article highlights themes with significant potential for theological discussion, notably the theme of time, an extensively debated subject during Carroll's era and one that he was well acquainted with. Exploring Carroll's narrative through the lens of Christian theology generates profound reflections on concepts like chronos and kairós, prompting discussions about the interplay between life's fleeting nature and the utilization of time. The article juxtaposes two concepts of time: the White Rabbit embodies relentless and urgent time, while the Mad Hatter embodies a subjective and pleasant time. Carroll's narrative encourages readers to engage in thought-provoking contemplations about time as they tumble into the surreal world of Wonderland.
Keywords: Theology and literature; Time; Alice in Wonderland; Lewis Carroll.
Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, é uma obra que não perdeu seu encanto mesmo após tantos anos (foi publicado em 1865). Para Virginia Woolf (1947), Lewis Carroll primeiramente nos faz dormir, e então nos transforma em crianças. A escritora diz isso porque a aventura de Alice começa com aqueles sonhos em que a criança está caindo, caindo, e, antes de sentir o impacto, ela acorda. Mas, diferentemente desse sonho tão recorrente na infância, Alice não acorda antes do impacto, e a queda demora muito a terminar. Carroll dá continuidade ao sonho, e convida o leitor a imaginar o que aconteceria se, ao final da queda, não viesse um despertar repentino e assustado.
Este artigo fará uma reflexão teológica (numa perspectiva cristã), através de uma pesquisa bibliográfica, na obra de Carroll. Pesquisas anteriores sugeriram que a literatura nonsense não tinha nenhum sentido teológico ou religioso (LECERCLE, 1994; POLHEMUS, 1982), e que, na verdade, fornecia um meio de escapar da religião. Porém, em A Theology of Nonsense, Gabelman (2016) refutou tais ideias, e explorou as conexões entre a literatura nonsense e a teologia, desafiando as alegadas dificuldades de interação entre as duas disciplinas, e reavaliando o papel da teologia como um componente essencial na compreensão da literatura nonsense. Este artigo parte dessa pressuposição de Gabelman de que é possível fazer pontes entre a teologia e a literatura nonsense. Nesta análise, será tomado o cuidado de não transformar o texto de Lewis Carroll em algo sem vida e com sentidos estanques. O objetivo deste artigo é encontrar pistas filosóficas que possam ter uma correspondência teológica na questão do tempo, assunto de grande importância na obra de Carroll.
O que justificou essa empreitada? Carroll era cristão, da Igreja da Inglaterra, e foi ordenado diácono em 1861. Apesar de não expressar uma credulidade tão pujante quanto a da Rainha Branca (“Ora, algumas vezes cheguei a acreditar em até seis coisas impossíveis antes do café da manhã!” [CARROLL, 2019, p. 227-228), Carroll evitou controvérsias religiosas e, de maneira geral, permaneceu sendo religioso e teologicamente ortodoxo (PRIOR, 2015; LANE, 2015). Embora ele não tenha escrito explicitamente sobre suas crenças cristãs, “sussurros da glória de Deus ecoam por toda a sua obra” (PRIOR, 2015). Assim, este artigo não intentou fazer uma leitura forçada em busca de criar artificialmente alguma teologia na obra de Carroll, mas buscou lançar luz sobre o que possivelmente está lá. Como a Duquesa declara em Alice no País das Maravilhas: “Tudo tem uma moral, é questão de saber encontrá-la” (CARROLL, 2019, p. 105). Este artigo é uma tentativa de seguir essa sugestão.
A obra de Carroll é classificada como “literatura nonsense”. O nonsense brinca com a lógica e com as palavras, consistindo no “mais puro ludismo” (BASTOS, 2001, p. 17). Ao contrário do que sugere o nome, o nonsense não é algo sem sentido, mas é a negação de um não sentido: “negação remete a uma afirmação e é assim que o ‘nonsense’ prova a existência do sentido: paradoxalmente” (BASTOS, 2001, p. 3). O nonsense não consiste em palavras jogadas aleatoriamente, sem nenhuma norma. Pelo contrário, o nonsense exige muita criatividade e habilidade linguística (HAUGHTON, 1988).
Na literatura nonsense de Carroll, existe uma polifonia de sentidos, e a realidade surreal do País das Maravilhas tem sua lógica própria. Chesterton (2008, p. 83) fala sobre a singularidade da realidade do mundo da fantasia:
Mas quando ergui a cabeça acima da cerca dos elfos e comecei a notar o mundo natural, observei um fato extraordinário. Observei que homens eruditos de óculos estavam conversando das coisas reais que aconteciam — nascimento e morte e coisas assim — como se ELAS fossem racionais e inevitáveis. Falavam como se o fato de as árvores darem frutos fosse tão NECESSÁRIO quanto o fato de que uma mais duas árvores são três. Mas não é. Há uma enorme diferença pelo teste do país das fadas, que é o teste da imaginação. Não podemos IMAGINAR dois mais um não somando três. Mas pode-se facilmente imaginar árvores que não produzem frutos; pode-se imaginá-las produzindo candelabros ou tigres pendurados pelo rabo.
A lógica do reino da fantasia e da imaginação é completamente outra, não que seja oposta a lógica do mundo natural, pois não há como colocar em oposição mundos que se alinham, que fluem lado a lado como rios vizinhos. É apenas a lógica singular de um lugar que Chesterton (2008, p. 82) chama de “país ensolarado do bom senso”. O que podemos fazer é tomar os atalhos que a história nos oferece, passar pelas portas que a narrativa nos abre, e ir imaginando o que poderia vir a seguir. Ou imaginar o que havia ali antes, sem aprisionar o sentido da história, e sem fechar as portas pelas quais passamos - como faziam as crianças de C. S. Lewis ao entrarem no guarda-roupas que levava a Nárnia (LEWIS, 2005). Mantendo as portas abertas, mantemos a possibilidade de outros sentidos para nossa narrativa.
Martin Gardner (2009, p. vii), comentarista da edição comentada de Alice no País das Maravilhas da editora Zahar, alerta-nos quanto a esse cuidado, ao introduzir delicadamente a obra de Carroll:
Convém dizer de saída que há algo de insensato numa Alice comentada. Escrevendo em 1932, no centésimo aniversário do nascimento de Lewis Carroll, Gilbert K. Chesterton expressou seu “medo terrível” de que a história de Alice já tivesse caído sob as mãos pesadas dos acadêmicos e estivesse se tornando “fria e monumental como um túmulo clássico”.
É importante, então, manter a vitalidade nonsense da obra de Lewis Carroll, entendendo que a ordem natural das coisas poderia ser outra, e que o País das Maravilhas, onde a ordem natural reinante é totalmente diferente da ordem natural que conhecemos, é um mundo construído no avesso do espelho, do outro lado, e que ali provavelmente algumas coisas estarão invertidas. Ou que, talvez, a realidade em que vivemos é justamente o avesso do espelho. A excursão de Alice no País das Maravilhas é, de qualquer forma, o encontro de dois mundos.
Lewis Carroll era o pseudônimo do inglês Charles Ludwidge Dodgson, um dos dez filhos de um pastor anglicano e que cresceu em um ambiente cheio de crianças cercadas de histórias. O objetivo do pai de Carroll era que ele se dedicasse também à vida religiosa, porém, o interesse de Carroll por geometria, álgebra e lógica fez com que ele trilhasse outros caminhos e optasse pela docência. Carroll foi convidado para dar aulas na Universidade de Oxford e lá conheceu Henry Liddell, que veio a ser seu grande amigo. Liddell era pai de uma menina chamada Alice, fonte de inspiração para Alice no País das Maravilhas.[1]
Carroll também foi fotógrafo amador, e colecionava fotografias de meninas entre 8 e 12 anos de idade, dentre elas, fotos de Alice Liddell. Carroll era um homem solitário, nunca se casou e sua vida particular foi marcada por sua excêntrica amizade com crianças, em especial, Alice Liddell. Aparentemente, as aventuras de Alice no País das Maravilhas são fruto de uma história criada espontaneamente para entreter as filhas de Henry Liddell. No entanto, apesar dessa ideia inicial, Alice no País das Maravilhas, foi publicado sem mirar um público específico, não era exatamente direcionado ao público infantil e provavelmente essa tenha sido uma ideia muito acertada. Duas hipóteses foram construídas para a escolha do nome da personagem: Carroll teria dedicado a história à caçula de Liddell ou seria a pronúncia inglesa das iniciais de seu pseudônimo “L” e “C”.
Alice no País das Maravilhas não é tanto a história de uma menina confusa e indefesa. Alice é corajosa, audaciosa, curiosa e, sua história, definitivamente, não é para fazer crianças ou adultos dormirem e sim, para fazê-los despertarem. Woolf reitera que não importa quão velho seja o leitor, não importa quão importante ou quão insignificante o leitor seja (ou considere-se), certamente a leitura das aventuras de Alice o fará sentir-se criança novamente (WOOLF, 1947).
Corso e Corso (2011, p. 279-280) abordam a atemporalidade da narrativa de Carroll:
o que a faz ser tão tocante para tantos por tanto tempo? O começo da resposta também é direto e simples: o pensamento de Lewis Carroll era simpático à representação do mundo e aos sentimentos que são peculiares às crianças, gostava de exercitar-se na lógica infantil e soube descrevê-la de forma que adultos e crianças se sentissem implicados nela.
Contudo, é curioso perceber que uma obra atemporal contém discussões profundas sobre o tempo. Os próximos tópicos irão se debruçar sobre esse tema.
No País das Maravilhas, o conceito de tempo é turbulento. A maioria dos relógios na Grã-Bretanha já havia adotado o padrão de Greenwich em 1855, uma década antes da publicação do País das Maravilhas (DOLAN, [s.d.]). Com a uniformização dos relógios impulsionada pelos horários fixos das fábricas e ferrovias, a noção de tempo deixou de ser local para gradualmente se tornar universal (HUTCHEON, 2020). A pressão social resultante dessa mudança é evidenciada pela pressa do Coelho Branco, e a curiosidade de Alice em relação a esse personagem apressado ilustra a obsessão do livro com a temática do tempo.
As aventuras da menina começam com seu tédio diante de um livro que não tinha figuras e nem diálogos (CARROLL, 2009, p. 13), talvez ela tivesse entendido que a leitura não dialogava com ela e concluiu, portanto, que a leitura era entediante. Mas o fato é que um livro sem figura e diálogos pode libertar a imaginação de quem lê. Como não há a imagem do que se leu, é necessário portanto, imaginar o que está sendo descrito ali e assim, criar um diálogo entre o leitor e o texto.
Então, passa diante dela um coelho branco, vestido como um lorde e se dizendo atrasado. Alice não se espantou com o fato de um coelho falar, e: “quando pensou sobre isso mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter ficado espantada, mas na hora tudo pareceu muito natural” (CARROLL, 2009, p. 13). O Coelho Branco olhava a todo momento para o relógio, ansioso e preocupado pelo fato de estar atrasado.
O Coelho entra num país cercado de maravilhas e não se encanta com nada, pois o relógio não deixa, o tempo inteiro acusando-o de estar em descompasso com seus compromissos. O tempo não para, o relógio impiedosamente gira seus ponteiros, e o Coelho Branco, cercado por coisas extraordinárias, não consegue se conectar com nada, pois só tem olhos para o relógio.
Essa cena desperta a temática temporal em Alice no País das Maravilhas. Os relógios expõem o indivíduo imerso na sociedade regulada pelo fluxo do tempo. Os relógios, tornados símbolos de respeitabilidade humana, juntamente com os relógios de fábrica, eram os instrumentos que orquestravam o ritmo do trabalho industrializado. Carroll, entusiasta das ferrovias, lançou os livros de Alice numa época em que os horários das ferrovias impunham a uniformização do tempo em toda a Grã-Bretanha, nas fábricas e nas linhas ferroviárias.
Dada sua formação matemática e sua posição como professor universitário, Carroll estava ciente das discussões do século XIX sobre tempo e espaço, bem como das sugestões inovadoras que desafiavam os paradigmas euclidianos. O que ele, como Dodgson, acreditava profissionalmente sobre o tempo transcendeu na ficção de Carroll, abrindo espaço para ideias não-euclidianas sobre o tempo e o espaço (BEER, 2011).
O texto de Carroll apresenta Alice insistindo em abordar os eventos de maneira sequencial e histórica, uma sucessão de acontecimentos - um conceito temporal que os gregos chamavam de chronos. As figuras mitológicas do titã Kronos (pai de Zeus) e do deus órfico Chronos frequentemente são confundidas como entidades associadas ao tempo.[2] Apesar das discrepâncias na grafia dos nomes nas narrativas mitológicas, ambos são reconhecidos como divindades que governam o tempo.
Na Teogonia de Hesíodo, na tradução de Jaa Torrano (1995, p. 3), o tradutor comenta que um dos aspectos do pensamento religioso grego é “a noção mítica do tempo como temporalidade da Presença divina”, toda ocorrência na Terra é intervenção divina. Hesíodo narra a “segunda fase cósmica”, que é o reinado de Kronos (ou Saturno, na versão romana da narrativa). Após castrar seu próprio pai, Kronos criou um espaço entre a Terra e o céu, onde tudo o que nascia e brotava era temporário. Kronos, com medo de uma traição por parte de seus filhos, devorava todos eles, assim como o tempo, que traz um fim a tudo que um dia teve um começo. Kronos, portanto, é o deus que representa e personifica o tempo, impiedoso e voraz.
Enquanto isso, na adaptação órfica, Chronos distingue entre dia e noite, conferindo estabilidade e uma duração definida, com começo e fim. No entanto, a discussão sobre Kronos e Chronos não é central para os objetivos desta pesquisa. Neste artigo, a grafia chronos foi adotada, pois é a palavra grega que se refere ao tempo sequencial, fornecendo a base para a cronologia linear que os seres humanos acreditam ser mensurável.
A distinção conceitual que importa para a análise proposta neste artigo é entre chronos e kairós - palavras gregas que denominam divindades gregas do tempo e que são traduzidas como “tempo” no Novo Testamento. Há diferentes narrativas sobre a origem do deus Kairós, filho de Zeus, na mitologia grega. Contudo, ele ficou associado à manifestação de um tempo específico, não uniforme nem estático, mas sempre em movimento e refletindo o melhor instante presente. Assim, kairós seria o tempo oportuno, o tempo certo.
No Novo Testamento, por vezes, chronos e kairós podem ser sinônimos (por exemplo, Mt 11:25 e Lc 8:13) e suas nuances conceituais não devem ser forçadas contra o contexto natural dos textos em que aparecem, a fim de criar distinções teológicas. No entanto, há funções distintas para chronos e kairós no texto bíblico.
Seguindo a moldura conceitual que acompanha a origem dessas palavras, no Novo Testamento, em geral, o termo kairós é qualitativo, referindo-se a um momento específico (por exemplo, Mt 26:18) ou a uma oportunidade (por exemplo, Gl 6:10). Por outro lado, chronos tende a ser utilizado de maneira mais quantitativa, indicando uma duração mensurável (por exemplo, Mt 25:19 e Mr 9:21) ou um ponto no tempo (por exemplo, Mt 2:7 e Hb 5:12). Além disso, mesmo quando esses termos gregos não são utilizados, é possível encontrar em alguns textos bíblicos o conceito que eles carregam.
Não é o propósito deste artigo explorar minuciosamente as potencialidades teológicas da literatura de Carroll a respeito do tempo, mas apenas apontar possibilidades. A questão do tempo sempre foi conteúdo importante das religiões, mesmo no “antigo paganismo [...] o homem procurava governar o tempo por meio de ritos cujo propósito era controlar o tempo e a natureza. Nos cultos de fertilidade e caos, os homens acreditavam poder [...] reverter o tempo e a ordem”, dentre outras coisas (KAISER JR., 2015).
Em O homem e o tempo, livro XI das Confissões, Agostinho (1964) apresenta Deus como criador do tempo e independente do tempo. Ele atribui a eternidade a Deus, e estabelece que a eternidade é maior que o tempo e não pode ser medida cronologicamente pelo tempo como a soma de vários momentos. Na eternidade, tudo é presente, enquanto o tempo nunca é todo presente. Para Agostinho, a categoria temporal só cabe às criaturas, não ao Criador. A finitude humana é implacavelmente descrita em termos cronológicos: “Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos” (Sl 90:10).
Contudo, na teologia cristã, a Divindade entra no tempo das criaturas por meio da encarnação de Cristo. A opressão temporal a que o Coelho Branco se submete pode ser comparada (e contrastada) com a postura autônoma com que Jesus Cristo por vezes parece lidar com o tempo nos evangelhos. Avisado da doença de seu amigo Lázaro, Jesus não foi visitá-lo imediatamente, mas “ainda se demorou dois dias no lugar onde estava” (Jo 11,6). Ao longo de seu ministério, ele repetiu algumas vezes: “não chegou a hora” (por exemplo, Jo 7,6-8). E em outros momentos, ele afirmou: “chegou a hora” (por exemplo, Mc 14,41). A expectativa escatológica cristã também envolve esperar o tempo passar até à chegada de um tempo determinado: “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (2Pe 3,13). Portanto, chronos e kairós aparecem debaixo da soberania divina.
O Coelho Branco toca num assunto extremamente discutido pela teologia e pela filosofia: como lidar com o tempo? Aprender a lidar com o presente, sem a ansiedade com o futuro, porque afinal, pensar no futuro é presente, pois se pensa nele hoje. Agostinho explica a primazia do presente:
Mas o que agora parece claro e manifesto é que nem o futuro, nem o passado existem, e nem se pode dizer com propriedade, que há três tempos: o passado, o presente e o futuro. Talvez fosse mais certo dizer-se: há três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro, porque essas três espécies de tempos existem em nosso espírito e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança (AGOSTINHO, 1964, p. 20).
A atitude do Coelho contrasta com as palavras de Jesus Cristo a respeito da ansiedade: “Não andeis, pois, ansiosos pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã a si mesmo trará seu cuidado; ao dia bastam os seus próprios males” (Mt 6,34). A grande preocupação humana deveria ser com o presente, vivê-lo com intensidade e intencionalidade para que as atitudes do presente influenciem o presente do futuro com atos e com esperança. A evocação das lembranças se dá no presente. O tempo como duração não é matematicamente circunscritível, confina com o passado e o futuro imediato. O passado imediato é a sensação, o futuro imediato é a ação (NICOLA, 2005, p. 433).
Inegavelmente, Alice chega ao País das Maravilhas percebendo o tempo como chronos, uma sucessão contínua de momentos. No entanto, por meio do Chapeleiro, Carroll introduz uma nova abordagem do tempo. De acordo com o Chapeleiro, é possível (e crucial) envolver-se diretamente com o próprio tempo, visto que ele não é apenas o pano de fundo para as interações. O episódio que ilustra isso de forma mais clara é o do "chá maluco", encontrado no sétimo capítulo (CARROLL, 2009, p. 80-91). Nesse diálogo, o tempo, é tratado como uma pessoa. O Chapeleiro havia feito uma pergunta para Alice, em forma de enigma: qual a diferença entre um corvo e uma escrivaninha? A menina pensou por um tempo e o diálogo é o que se segue:
“Já decifrou o enigma?”, indagou o Chapeleiro, voltando-se de novo para Alice.
“Não, desisto”, Alice respondeu. “Qual é a resposta?”
“Não tenho a menor ideia”, disse o Chapeleiro.
“Nem eu”, disse a Lebre de Março.
Alice suspirou, entediada. “Acho que vocês poderiam fazer alguma coisa melhor com o tempo”, disse, “do que gastá-lo com adivinhações que não têm resposta”.
“Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu”, disse o Chapeleiro, “falaria dele com mais respeito” (CARROLL, 2009, p. 85).
Alice considera essa conversa como uma perda de tempo, embora a realidade seja que o tempo se desenrola de maneira distinta da cronologia usual à qual ela está habituada. O Chapeleiro, por sua vez, percebe que Alice não compreende verdadeiramente o tempo e não mantém uma relação harmoniosa com essa entidade.
O Chapeleiro, cujo relógio só marca o dia do mês e não a hora (CARROLL, 2009, p. 83), pede cautela ao lidar com o tempo, antropomorfizado,[3] pois o tempo pode não ser tão benevolente com quem o trata desrespeitosamente. O tempo “não suporta apanhar” segundo o Chapeleiro, mas se o tratarmos bem e com o devido respeito “ele faria praticamente tudo o que você quisesse com o relógio” (CARROLL, 2009, p. 86), e não seria preciso viver escravizado pelo relógio, ansiosos e asfixiados pelos prazos vencendo como estava o Coelho Branco. O vilão, portanto, é mais que o relógio, é a forma como o sujeito usa o tempo. O tempo só é vilão de quem se deixou escravizar pelo relógio. O Chapeleiro e Alice num diálogo simples, convidam o leitor a uma análise do seu cotidiano, do seu relacionamento com o tempo.
No mundo de Carroll, vários dias podem vir de uma só vez.[4] Além disso, no País das Maravilhas o tempo pode parar para alguns e passar muito rápido para outros,[5] e a sequência dos eventos pode ser distorcida de tal forma que eventos futuros aconteçam no passado ou no presente.[6] A Rainha Branca relata sobre o tempo: “[...] há o Mensageiro do Rei. Está na prisão agora, sendo punido, e o julgamento não vai nem começar até quarta-feira que vem, e, é claro, o crime vem por último” (CARROLL, 2009, p. 224).
É essencial ressaltar a distinção entre duas manifestações do relógio na narrativa de Carroll. A primeira aparição do relógio, junto ao Coelho Branco, pode insinuar que, apesar do tempo fluir rapidamente no País das Maravilhas, ele ainda progride de maneira cronológica, sequencial. Entretanto, quando o relógio reaparece durante o encontro do “chá maluco”, a situação se inverte: o relógio do Chapeleiro, que marca apenas os dias do mês ao invés das horas, está atrasado dois dias (CARROLL, 2009, p. 83). A implicação aqui é que o tempo é incontrolável e não suscetível de definição precisa. O tempo, personificado na narrativa, exibe um comportamento caprichoso e impulsivo, sujeito a relativizações. Após um desentendimento com o Chapeleiro ("[...] tivemos uma briga no ano passado" [CARROLL, 2009, p. 85]), o tempo passa a rigidamente registrar seis horas no relógio do Chapeleiro.
A qualidade kairótica do tempo já surge no início da história, quando é relativizado durante a própria queda de Alice no poço: ela teve um tempo considerável enquanto descia para observar e contemplar o que estava ocorrendo (CARROLL, 2009, p. 14-16). O tempo kairótico nem sempre é intrigante ou divertido. Alice parece ficar impaciente e, posteriormente, sonolenta durante a longa queda no poço. Similarmente, no "chá maluco", a cerimônia de beber chá, um ritual de importância na Grã-Bretanha vitoriana e visto como um símbolo da sociedade civilizada, se transforma em um cenário com personagens sonolentos e adormecidos, uma caricatura da realidade monótona. No desfecho da história, quando a irmã de Alice a exorta: "agora, vá depressa tomar o seu chá; está ficando tarde" (CARROLL, 2009, p. 146), a rotina cronológica é restabelecida, encerrando o intrigante tempo kairótico do sonho.
Para o filósofo Kierkegaard (1979, p. 195), “o homem é uma síntese [...] de temporal e de eterno”. A temporalidade paradoxal do País das Maravilhas pode apontar para a coexistência dessa dualidade. Essa analogia também pode remeter ao texto bíblico: “para o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pe 3,8). C. S. Lewis (2002, p. 38) também explora a ideia de que o ser humano pode experimentar uma dimensão que transcende a cronologia linear, ao fazer com que o tempo em Nárnia passe maneira muito diferente: “Embora tenhamos passado muito tempo em Nárnia, quando retornamos pelo guarda-roupa parecia que não havia passado tempo algum”.
Isso aponta para uma realidade onde há duas dimensões temporais distintas existindo paralelamente. A conversa a respeito do conceito de tempo que se desenrola durante o "chá maluco" está fundamentada em concepções ligadas ao infinito e às leis do movimento. Na era vitoriana, as leis do movimento haviam adquirido grande controvérsia. Carroll mantinha uma amizade com o matemático J. J. Sylvester, que, durante um discurso na Associação Britânica para o Avanço da Ciência em 1866, aventurou a possibilidade da existência de uma quarta dimensão, para além do espaço tridimensional que nos é familiar (BEER, 2011, p. 39). A jornada de Alice através do espelho pode ter sido inspirada pelas teorias emergentes naquela época acerca de outras dimensões e distintas concepções de tempo.
A Rainha Vermelha, em Alice através do espelho, ouvindo que os dias vêm um de cada vez no país de Alice, diz: “'Essa é uma maneira lastimável de fazer as coisas. Aqui, geralmente os dias e as noites vêm em dois ou três por vez, e no inverno, de vez em quando temos até cinco noites juntas... para aquecer mais, sabe’” (CARROLL, 2009, p. 294).
Essa temporalidade multidimensional encontra eco na teologia cristã, que apresenta o crente participando simultaneamente do temporal e do eterno, experimentando a dualidade do “já” e do “ainda não” do reino de Deus, que já existe, mas ainda não se manifestou plenamente. O reino de Deus é descrito no Novo Testamento como uma realidade presente: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo” (Mc 1:15); “chegou a vocês o Reino de Deus” (Mt 12:28). E o reino de Deus também é retratado como algo a ser experimentado no futuro: “Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis. Porque assim vos será amplamente concedida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 1:10-11, ênfase acrescentada).
Kairós – que se move pelas situações, atento às ocasiões e não se submete a um projeto rígido e fechado – é popularmente considerado uma representação do “tempo de Deus” (ROSSI, 2013, p. 18). Apesar desse conceito teológico popular ser discutível, o Chapeleiro parece estar certo ao apresentar o tempo em tons kairóticos (e quase divinos), como uma realidade viva, com o qual deve se buscar uma relação dialética, e não de domínio ou controle. É possível, e necessário, conversar com o tempo, como sugeriu o Chapeleiro ao repreender Alice: “[...] você nunca chegou a falar com o tempo!” (CARROLL, 2009, p. 84).
Alice vê o tempo como algo mensurável, quantitativo, uma coisa em que ela literalmente bate ao praticar música, enquanto o Chapeleiro vê como algo experiencial e qualitativo, uma pessoa. As várias representações do tempo no País das Maravilhas (coelhos atrasados, envelhecimento, uma festa do chá fora do tempo) não apenas desafiam a ideia de linearidade temporal, mas a ideia de que o tempo é previsível.
O Chapeleiro lembra a sentença que a Rainha de Copas proferiu sobre ele enquanto cantava na presença dela: “Bem, eu mal acabara a primeira estrofe, [...] quando a Rainha deu um pulo e berrou: “ele está assassinando o tempo! Cortem-lhe a cabeça!’ E desde aquele momento ele não faz o que peço! Agora, são sempre seis horas” (CARROLL, 2009, p. 86). A condenação reduziu o Chapeleiro a um momento.
A imobilidade temporal se configura como um castigo. Contudo, uma complexidade emerge nessa análise. Carroll possuía afinidade com a fotografia (uma forma de congelar um momento no tempo), e a escolha do relógio do Chapeleiro indicando o dia do mês ao invés das horas adere a essa estase temporal. Contrapondo isso, o Chapeleiro caracteriza o tempo como um aliado, desde que seja devidamente apreciado. O acontecimento do "chá maluco" harmoniza ambos os aspectos.
A estagnação temporal também é alvo da reflexão cristã. Um problema teológico surge quando o aspecto “de outro mundo” do reino de Deus é superenfatizado, tornando-o um eterno “ainda não”. Esse dilema passa por uma armadilha linguística como a que é articulada pela Rainha Branca:
“A regra é: geleia amanhã e geleia ontem… mas nunca geleia hoje.” “Isso só pode acabar levando às vezes a ‘geleia hoje’”, Alice objetou. “Não, não pode”, disse a Rainha. “É geleia no outro dia: hoje nunca é outro dia, entende?” “Não a entendo”, disse Alice. “É horrivelmente confuso!” (CARROL, 2009, p. 223-224).
Roger Holmes explica que, por sua natureza, o amanhã deve vir, mas também por sua definição mais estrita o amanhã nunca pode vir sem deixar de existir: a Rainha promete geleia para Alice, mas também diz, nas mesmas palavras, que Alice nunca chegará a ter geleia, usando um dos mais famosos paradoxos a respeito do tempo (HOLMES, 1971, p. 215).
Parafraseando o paradoxo temporal em termos teológicos: será que podemos ter hoje o reino de Deus diante do “ainda não” do amanhã escatológico? Ou, de outra forma, teremos amanhã o reino de Deus que é caracterizado pelo “já” de hoje? Estamos lidando com uma unidade de dois aspectos temporais distintos, situados nesse mundo e fora dele. É preciso separar o “já” e o “ainda não” da história da redenção, mas também é preciso lidar com o fato de que a esperança escatológica cristã, a santidade e outros aspectos da vida cristã manifestam a tensão do “já” e do “ainda não”.
Em vez de uma entidade pessoal, numa perspectiva cristã, o tempo ainda é visto como algo a ser usado corretamente. É um presente, uma dádiva que Deus outorgou ao ser humano para ser administrada respeitosa e sabiamente (WHITE, 1987, p. 280, 325, 342). O tempo deve ser gasto naquilo que “honre a Deus e abençoe a humanidade” (WHITE, 1987, p. 345). Essa visão temporal, apesar de ser ligeiramente distinta da do Chapeleiro, ainda coloca chronos e kairós numa perspectiva equilibrada.
Se por um lado, como sugeriu Agostinho, a eternidade não pode ser medida por chronos, com suas unidades temporais compostas de ações sucessivas e transitórias, a experiência temporal humana requer essa medida, mas não apenas de maneira contábil, e sim refletida: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos coração sábio” (Salmo 90:12). Encarar o tempo dessa maneira, consciente, ao mesmo tempo, da finitude humana e da eternidade divina contida na expectativa escatológica cristã, rompe com a vigilância devoradora de chronos. A sabedoria não permite que a experiência do viver seja classificada apenas pela linearidade de chronos, que pode paralisar o devir e sufocar o aspecto kairótico da existência humana.
Ao dizer que eles deveriam “fazer alguma coisa melhor com o tempo [...] do que gastá-lo com adivinhações que não têm resposta” (CARROLL, 2009, p. 84), Alice está reiterando a perspectiva cronológica que confere valor numérico e monetário ao tempo, uma noção profundamente arraigada no contexto capitalista contemporâneo com a popular máxima “tempo é dinheiro”. O sistema de produção capitalista se reflete nas estruturas sociais, frequentemente negligenciando a dimensão kairótica do tempo. O ritmo frenético de vida característico das sociedades capitalistas atenua a apreciação do tempo kairótico, deixando todos constantemente sujeitos às demandas do tempo cronológico, como ilustrado na urgência do Coelho Branco.
A peculiar visão temporal da obra de Carroll, sem negar completamente chronos, fortalece o caráter aberto e subjetivo de kairós. O cenário da experiência humana ultrapassa o mero fluxo cronológico. A vida rica em significado redime o tempo, identifica momentos oportunos e floresce livre das restrições de constante definição e cronometragem. A vida meticulosamente regulada pelo chronos, sempre atenta a relógios e calendários, requer equilíbrio com o tempo kairótico da sensibilidade e oportunidade vivida.
A consciência de chronos pode potencializar o aproveitamento de kairós, contando os dias de maneira sábia, como descreve o Salmo 92:12. Tempus fugit, portanto, Carpe diem, sugere Rubem Alves, por meio de duas expressões latinas: “Tempus Fugit! Portanto, colha o dia que se inicia como quem colhe uma flor, que nunca mais se repetirá” (ALVES, 1992, p. 25). O tempo é curto, então é preciso viver com intensidade total. Porém, aproveitar o tempo não é ter pressa, mas uma experiência existencial tranquila de comunhão.
O tema da morte é uma presença marcante no texto, sobretudo por meio da figura da Rainha de Copas, que constantemente ordena a decapitação daqueles que a irritam ou contrariam: “A rainha só tinha um modo de resolver todas as dificuldades, pequenas ou grandes. ‘Cortem-lhe a cabeça!’” (CARROLL, 2009, p. 101). Além disso, o Rei de Copas também sustenta a crença de que “tudo que tinha cabeça podia ser decapitado” (CARROLL, 2009, p. 103). Esses dois personagens se apresentam como caricaturas cômicas, porém eles compelem os demais no enredo a enfrentar a temática da morte iminente, uma questão desconfortavelmente humana (ainda que aqueles condenados à decapitação nem sempre possuam forma humana).
A obra de Carroll, embora evocando reflexões acerca da finitude e da morte, parece não abordar explicitamente essas temáticas. Não propõe nenhuma abordagem do tipo memento mori. Notavelmente, não atribui explícita ênfase ao hedonismo de Carpe Diem e ao aproveitamento da vida. Contudo, a obra suscita tais questões no psiquismo do leitor. Especialmente porque nenhum personagem quer ser decapitado, e isso dá poder à Rainha, reduzindo-os, por vezes, a uma existência infeliz.
Expandindo além das palavras de Carroll, mas seguindo suas pistas, podemos concluir que compreender a efemeridade da existência é benéfico, mas sucumbir ao medo da morte é prejudicial. Reconhecer a limitação temporal da vida deveria incitar uma abordagem positiva, aproveitando o tempo que foge; assim, a máxima Tempus fugit convida a Carpe diem. Essa consciência saudável da mortalidade (um memento mori, talvez?) despoja o poder da incessante pressão cronológica, permitindo que indivíduos ponderem sobre seus desejos mais profundos, muitas vezes sepultados pela agitação constante. Quando guiada pela sabedoria, até mesmo a proximidade da morte pode iluminar e enriquecer a jornada da vida.
É preciso viver intensamente o presente porque o crepúsculo se aproxima, a noite se aproxima, e isso transforma cada momento da vida em uma despedida (ALVES, 1992, p. 101). Tempus fugit é a consciência de chronos, da transitoriedade da vida e da realidade da morte (ALVES, 1995, p. 13). O conceito Carpe diem coloca o foco na vida presente, diante do relógio da vida que apenas mostra que o tempo está passando, não quanto tempo resta e nem como aproveitar esse tempo.
A relativização do tempo distorce o desenvolvimento e o envelhecimento humanos no País das Maravilhas. Alice pode ficar maior e menor em um instante (embora ela não possa controlar quanto). Isso deixa Alice confusa quanto à sua própria identidade – um tema intimamente relacionado à questão temporal. A narrativa conta que “essa curiosa criança gostava muito de fingir ser duas pessoas” (CARROLL, 2009, p. 35). Ela havia encolhido, posteriormente cresceu, e agora havia perdido suas certezas a respeito de si mesma. Esse trecho também marca a necessidade do autor de manter a separação entre Charles Dodgson, o matemático de Oxford, e Lewis Carroll, escritor de livros para crianças (CARROLL, 2009, p. 300). Talvez ele também gostasse de fingir ser duas pessoas em muitos momentos de sua vida, ou, ainda, teria compartimentado sua vida, separando momentos vividos com Lewis Carroll - o escritor criativo, inventivo e talentoso que gostava de estar com crianças e entrar no mundo delas -, e o professor Charles Dodgson - sistemático, solitário que vivia isolado em seu mundo de lógica e números, duas biografias em passagens de tempo paralelas.
Quando Alice é questionada por uma lânguida e sonolenta lagarta que fumava seu narguilé: “Quem é você?”, sua reposta representa um sujeito em construção ou reconstrução “Eu… eu mal sei, Sir, neste exato momento… pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então” (CARROLL, 2009, p. 74). A Lagarta continua fazendo perguntas existencialistas, cujas respostas dependem de muitas variáveis. Esse episódio mostra que o desenvolvimento humano não ocorre apenas com a passagem do tempo cronológico, pois a transformação ocorre a cada encontro com o mundo e com o outro. Sartre (1997, p. 96) diz que “não posso me conhecer salvo por intermédio do outro”. O desenvolvimento da individualidade passa pelo coletivo, pois o grupo tem uma história e um rastro no tempo, e, “para saber quem somos, é fundamental descobrir de onde viemos e de que é feita a bagagem que carregamos para todos os lados, a qual chamamos de identidade” (CORSO; CORSO, 2006, p. 157).
Alice passa muito tempo da narrativa questionando a própria identidade, sendo inquirida sobre ela e tentando encontrar um tamanho ideal que colabore para o sucesso de suas aventuras. Dentro desse domínio de espaço e tempo alternativos, a configuração de seu corpo não se mantém constante, e sua interação com o ambiente se torna aproximativa. A vivência cotidiana e vulnerável da criança, lidando com o desafio de crescer e de se encontrar constantemente fora das dimensões adequadas em um mundo concebido por adultos, se entrelaça com explorações matemáticas inéditas. Enquanto ela reflete sobre seu crescimento repentino, uma pergunta emerge: “será que nunca vou ficar mais velha do que sou agora? Não deixa de ser um consolo... nunca ficar uma velha...” (CARROLL, 2009, p. 46).
A relação de Alice com o envelhecimento, porém, é ambígua, pois ela também vê desvantagens em continuar criança e “sempre ter lições para estudar” (CARROLL, 2009, p. 46). Quando ela estava enorme, com quase três metros, depois de chorar muito, suas lágrimas se transformam numa lagoa de lágrimas. Em seguida, depois de encolher quase até sumir, a menina cai na lagoa formada por suas próprias lágrimas. Nadando nesta lagoa, ela encontra um camundongo, e, em seguida, outros pequenos animais, entre eles um papagaio. Numa discussão entre eles, todos muito molhados, Alice tentava argumentar e era interrompida e calada pelo papagaio com a frase: “sou mais velho que você e devo saber mais” (CARROLL, 2009, p. 33). O argumento de autoridade baseado no envelhecimento usado para calar Alice não é novidade no mundo da menina, que, por possuir uma irmã mais velha, muitas vezes deve ter ouvido este mesmo argumento no encerramento de uma discussão.
Os mais velhos não são indiferentes à Alice, “estão visivelmente interessados em contar-lhe suas histórias, expressar seus pensamentos, cantar para ela suas músicas, recitar enfadonhas poesias” (CORSO; CORSO, 2011, p. 282). Os mais velhos, fiados em sua longa bagagem cronológica, podem perder o interesse em ouvir a criança, mais preocupados em tentar incutir em sua mente infantil ideias que eles consideram importante. Esse é um pensamento empirista, que vê crianças como tábulas rasas que precisam ser preenchidas totalmente por alguém. Com os mais velhos, os diálogos parecem persistir somente enquanto Alice escuta e obedece, “mas se interrompem assim que ela opina, solicita uma informação ou favor” (CORSO; CORSO, 2011, p. 282).
Para Erik Erikson (1972), construir uma identidade pressupõe a definição do sujeito, como foi formado (que envolve tempo), quais são seus valores e qual a direção deseja seguir na vida (o que também envolverá tempo), questões levantadas tanto pela Lagarta quanto por outros personagens da narrativa e que tanto inquietam Alice e seu leitor. Confusa, ela diz que se pedirem para que ela volte, que saia do buraco em que está, antes precisarão definir quem ela é:
‘Volte para cá, querida!’ Vou simplesmente olhar para cima e dizer ‘Então quem sou eu? Primeiro me digam; aí, se eu gostar de ser essa pessoa, eu subo; se não, fico aqui embaixo até ser alguma outra pessoa’ (CARROLL, 2009, p. 32).
A menina pede que outros a definam, e, caso ela goste da definição dada por outrem, assumirá tal identidade, caso contrário, continuará tentando ser alguém de quem goste. A respeito do sujeito pós-moderno, Stuart Hall pontua que ele tem uma identidade fluida, mutável. Sendo assim “a identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1999, p. 13), Alice queria ser definida pelo sistema cultural que a rodeava, caso gostasse da definição, abraçaria aquela identidade, mas não definitivamente.
O desenvolvimento humano não é garantido apenas pela passagem do tempo cronológico, pelo envelhecimento, mas também pelas crises. Erikson (1972, p. 14) usa a palavra crise não como uma catástrofe iminente, mas como um momento de reflexão, importante e crucial na construção da identidade. Assim, a crise se converteria em um momento oportuno, kairós. Por meio de encontros dialógicos e crises, Alice vai se tornando outra: “Não consigo me lembrar das coisas como antes... e não fico do mesmo tamanho por dez minutos seguidos!” (CARROLL, 2009, p. 58). A aventura de Alice num ambiente onde o tempo cronológico é relativizado torna-se essa crise decisiva na construção da sua individualidade.
Este artigo objetivou o estabelecimento do diálogo a respeito do tempo entre a literatura nonsense e a teologia cristã por meio da obra de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas. As sugestões desta pesquisa podem, e devem, ser aprofundadas, já que o artigo apenas arranhou a superfície das possibilidades dessa rica intercessão ainda pouco explorada na literatura em português.
A obra de Carroll já começa abordando a questão do tempo na representação do Coelho Branco, perpetuamente atrasado e correndo em direção a um destino desconhecido. Aí está encapsulada uma concepção do tempo chronos como um guardião incessante e implacável, caracterizado por uma voracidade e urgência que geram um desconforto contínuo e uma sensação de ineficácia na produtividade. A cultura orientada pela cronologia se nutre da exploração de sentimentos de culpa e desconforto. A partir desse contexto, emerge a necessidade de pausas, momentos de ociosidade e, sobretudo, a busca por significado na experiência, o tempo kairós. Esse tempo subjetivo é apresentado em outras partes do livro, mas especialmente no episódio do “chá maluco”, protagonizado pelo Chapeleiro.
Ao contrário da postura do Coelho Branco, o texto bíblico parece enfatizar a providência divina, em vez da obsessão com o relógio, apesar de não ignorar o tempo cronológico. O tempo dos seres humanos está nas mãos de Deus (Sl 31:15), há uma moldura de tempo feita por Deus (Ec 3:11), e os que temem a Deus são orientados a “remir o tempo” (Ef 5:15) dentro dessa moldura. Na perspectiva cristã, Deus “aponta as estações e os momentos. As atividades terrenas são boas em seus devidos lugar e tempo [...]” (MACARTHUR, 2019). Há envolvimento divino igualmente sobre chronos e kairós.
Bosi (2003, p. 24) expõe que a sociedade industrial, dominada por chronos, tende a gerar momentos ociosos que são meramente tolerados: tais momentos vazios ocorrem nas filas, nos bancos, na burocracia e durante o preenchimento de formulários. O conceito de kairós, por sua vez, se aproxima mais das nuances subjetivas do tempo. Ele transcende a rigidez do relógio, acelerando em um instante quando os ponteiros horários já avançaram, ou se estendendo languidamente quando apenas alguns segundos passaram no cronômetro. Essa relativização do tempo cronológico é encontrada em diversos textos bíblicos, tanto na realidade divina (“para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia”; 2Pe 3:8) quanto na experiência humana (“um dia nos teus átrios vale mais que mil”; Sl 84:10).
No Eclesiastes, além da inevitabilidade da passagem do tempo, há, simultaneamente, preordenação divina e responsabilidade humana (KAISER JR., 2015). O autor do livro de Eclesiastes examina o tempo, delineando suas várias manifestações, e afirma que “há tempo para todo o propósito debaixo do céu” (Ec 3,1): o tempo de guerra e paz, o tempo de riso e choro, o tempo de plantar e colher. Isso implica que enquanto alguns vivenciam tempos de guerra, simultaneamente outros experimentam tempos de paz, e assim por diante. Essa interconexão sugere uma incoerência ou incompatibilidade entre os domínios do kairós e do chronos para diferentes indivíduos.
Contudo, o domínio do chronos ostenta suas próprias atratividades: ele instaura ordem, estabelece limites nítidos para o pensamento, a emoção e a ação, proporcionando uma base de estabilidade. A existência humana não é apenas cronológica, mas não é menos que cronológica. Por conseguinte, o atraso e a correria do Coelho Branco são contrastados com a temporalidade relativa do Chapeleiro Maluco, que trata o tempo como pessoa, mas cujo relógio é mantido perpetuamente num estado de seis horas, a hora do chá.
Ao reconhecer a complexidade da dimensão temporal na vida humana, que abarca tanto o aspecto sequencial do chronos quanto as experiências subjetivas do kairós, a narrativa de Carroll provoca reflexões profundas que se entrelaçam com discussões teológicas cristãs. Enquanto a narrativa de Carroll questiona o tempo, a própria identidade, a própria sanidade e os rumos da própria vida, o leitor a acompanha nesta queda livre e infinita partindo de situações que beiram o absurdo, tentando encontrar o próprio caminho. E é no estranhamento, numa realidade paralela ou num país desconhecido e louco, que Carroll nos convida a reflexões profundas acerca do tempo.
O País das Maravilhas é, de fato, um “país ensolarado do bom senso” (CHESTERTON, 2008, p. 82), ainda que haja um desacordo acerca do pertencimento ou não desta narrativa ao universo das fadas ou à Elfolândia, como Chesterton denominava. A brilhante narrativa de Carroll permite que as estradas do País das Maravilhas sejam percorridas e inúmeros caminhos para grandes reflexões teológicas sejam encontrados, caso o leitor queira.
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[1] Para uma breve biografia de Lewis Carroll, acessar o site da editora LPM, disponível em: https://bit.ly/2NI1YVm. Acesso em: 01 ago. 2022.
[2] Provavelmente, a figura de Chronos foi desenvolvida pelos órficos a partir do mito grego de Kronos (ver LÓPEZ-RUIZ, Carolina. When the Gods Were Born: Greek Cosmogonies and the Near East. Cambridge: Harvard University Press, 2010. p. 130-170).
[3] No texto em inglês, há nas palavras do Chapeleiro um trocadilho que nem sempre é preservado nas versões em português. Ao repreender Alice pelo modo como ela se refere ao tempo, ele diz: “If you knew Time as well as I do, [...] you wouldn't talk about wasting it. It's him”. Ou seja, o tempo não é uma coisa, mas uma pessoa.
[4] “’No nosso país’, comentou [Alice], ‘os dias da semana vêm um de cada vez.’ A Rainha Vermelha disse: ‘É uma maneira lastimável de fazer as coisas. Aqui, geralmente os dias e as noites vêm em dois ou três por vez, e no inverno de vez em quando temos até cinco noites juntas… para aquecer mais, sabe’” (CARROLL, 2009, p. 294).
[5] “Mas, se você e ele vivessem em boa paz, ele faria praticamente tudo o que você quisesse com o relógio. Por exemplo, suponha que fossem nove horas da manhã, hora de estudar as lições; bastaria um cochicho para o Tempo, e o relógio giraria num piscar de olhos! Uma e meia, hora do almoço!” (CARROLL, 2009, p. 85). ““E desde aquele momento”, continuou o Chapeleiro, desolado, “ele não faz o que peço! Agora, são sempre seis horas” (CARROLL, 2009, p. 86).
[6] “Viver às avessas!” Alice repetiu em grande assombro. “Nunca ouvi falar de tal coisa!” “…mas há uma grande vantagem nisso: a nossa memória funciona nos dois sentidos.” “Tenho certeza de que a minha só funciona em um”, Alice observou. “Não posso lembrar coisas antes que elas aconteçam.” “É uma mísera memória, essa sua, que só funciona para trás”, a Rainha observou. (CARROLL, 2009, p. 224).