Recepção do texto bíblico em Man Gave Name to all the animals de Bob Dylan

Reception of the biblical text in Bob Dylan’s Man Gave Name to all the animals

Carlos Ribeiro Caldas Filho
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Contato: crcaldas2009@hotmail.com

Felipe Anunciação
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Contato: felipeanunciacao302@gmail.com


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Resumo: Bob Dylan (n. 1941), cantor, compositor e escritor estadunidense há mais de meio século tem sido uma das figuras mais destacadas e influentes no cenário da cultura pop mundial. O presente artigo tem objetivo de analisar como o texto bíblico de Gênesis 2.19b-20a (“o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles. Deu nome o homem a todos os animais domésticos, às aves dos céus e a todos os animais selváticos”) em sua canção Man gave to all the animals, de 1979. Para tanto, o artigo terá a seguinte estrutura: (1) apresentação de aspectos da vida e obra de Bob Dylan; (2) análise da letra e da música da canção; (3) apresentação das releituras da canção no cenário da cultura pop mundial (inclusive no Brasil) e (4) considerações críticas sobre a recepção do texto bíblico na mencionada canção. Desta maneira o artigo pretende apresentar um “triálogo” crítico entre literatura, música e a teologia e os estudos de religião. 

Palavras-chave: Hermenêutica bíblica; música e religião; Bob Dylan

Abstract: The American singer, songwriter and author Bob Dylan (b. 1941) has been for more than half a century one of the most distinguished and influential figures in the scene of world pop culture. This articles intends analyse how the biblical text of Genesis 2.19b-20a (“the man gave names to every type of animals”) in his song Man gave to all the animals, of 1979. Therefore, the article will have this structure: (1) presentation of some aspects of Bob Dylan’s life and work; (2) an analysis of lyrics and music of the mentioned song; (3) presentation of rereadings of the song in the scene of world pop culture (Brazil included) and (4) critical remarks about the reception of the biblical text in the aforementioned song. Thus, the article intends to present a “trialogue” between literature, music, theology and the religious studies.

Keywords: Biblical Hermeneutics; Music and Religion; Bob Dylan

Introdução

Música e religião coexistem praticamente “desde sempre”. Não por mero acaso ou coincidência, teólogos têm se dado conta das múltiplas possibilidades de intercâmbio e de diálogo que há entre a música, seja esta instrumental ou vocal (ou uma combinação das duas) e a reflexão teológica e os estudos de religião (inter alia, BEGBIE, 2001; SIGURDSON, 2001; BROWN, 2020; HUFF JUNIOR, 2022; EDGAR, 2022). Mas é curioso, e, mais que isso, chega a ser surpreendente que por muito tempo cientistas da religião não tenham se dado conta do potencial da música como fonte e objeto de estudo do fenômeno religioso. De fato, não há como estudar religião sem estudar como a música toma parte efetiva e destacada dos rituais religiosos de virtualmente todas as tradições religiosas da história.

Pensando nessa lacuna no final de 2022 a revista acadêmica Numen, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora publicou um dossiê exatamente sobre o tema religião e música. Em dado momento, o editorial do mencionado dossiê afirma: 

O imaginário religioso, com toda sua força, requer formas de expressão, e essas não se dão apenas através de imagens pictóricas ou verbais, mas também de sons organizados temporalmente em formas musicais. O fenômeno musical é composto de elementos estruturais (o som, a melodia, a harmonia, o ritmo, etc.) que, quando organizados e executados simultaneamente, delineiam e determinam uma forma. Essa forma – a música, acompanhada ou não de uma letra – sempre se ofereceu como mistério e problema, apesar de seus encantos, ou justamente devido a estes encantos (HUFF JUNIOR, CALVANI, C0STA, 2022, p. 10).

É possível analisar criticamente a religião na música e a música na religião. Tendo em mente essas possibilidades, o presente artigo quer contribuir para os estudos de teologia, religião e música apresentando como estudo de caso uma canção Man gave name to all the animals do compositor, cantor e escritor norte-americano Bob Dylan. O artigo está estruturado da seguinte maneira: (1) apresentação de aspectos da vida e obra de Bob Dylan; (2) apresentação do elemento religioso na lírica “dylaniana”; (3) análise da letra e da música da canção (nesta parte do artigo será feita a tradução da letra, além de comentários técnicos de teoria musical a respeito da canção); (4) apresentação da releituras da canção no cenário da cultura pop mundial (inclusive no Brasil) e (5) considerações críticas sobre a recepção do texto bíblico na mencionada canção (nesta última parte do artigo recorrer-se-á à tese do crítico literário Northrop Frye (FRYE, 2004), quanto a ser a Bíblia o “grande código” da arte e da literatura do Ocidente.

Tendo apresentado o objetivo do artigo e como este se estrutura, seguir-se-á, começando por aspectos biográficos e da trajetória artística de Dylan.

1. Aspectos da vida e obra de Bob Dylan

O nome de Bob Dylan, o “Bardo de Minnesota”, é desde a segunda metade do século passado mais que conhecido no cenário da cultura pop mundial. Neto de imigrantes judeus russos, foi registrado com o nome Robert Allen Zimmerman em 1941 na cidade de Duluth, Minnesota. É artista reconhecido internacionalmente, tendo inclusive sido laureado com o Nobel de Literatura em 2016[1]. Sua música tem elementos do gênero folk (uma espécie de equivalente estadunidense do “caipira de raiz” brasileiro), mas foi no aspecto dos temas de suas composições que Dylan adquiriu fama: canções como Blowin’ in the Wind e The Times They Are A’Changin, da primeira metade dos anos de 1960, tornaram-se como que hinos do movimento de resistência à Guerra do Vietnã e em defesa do movimento dos direitos civis. Concordando-se ou não com sua escolha para o Nobel de Literatura, não se poderá negar que Dylan é letrista de qualidade por demais elevada. Curiosamente, o mesmo não pode ser dito de sua performance como intérprete: sua voz anasalada e áspera não é melodiosa como era a de Frank Sinatra (não foi por mero acaso que Sinatra foi apelidado de The Voice), nem tinha o tom grave e agradável de se ouvir, como era o de Johnny Cash (para citar apenas dois exemplos). Não obstante, seu sucesso é inquestionável. 

Mas mesmo como letrista Dylan tem características surpreendentes. Por exemplo, sua canção Jokerman, de 1983, é complexa, hermética, algo surrealista, com muitas alusões bíblicas e religiosas, ou seja, não é uma música do estilo easy listening (como são por exemplo as canções do recentemente falecido Burt Bacharach). Nada disso tem impedido seu sucesso e reconhecimento como um dos principais músicos do mundo em atividade[2]

Dylan tem exercido grande influência na MPB (Música Popular Brasileira). O aspecto enigmático de canções como A página do relâmpago elétrico e Feira Moderna, de Beto Guedes, Eternas Ondas e Vila do Sossego, de Zé Ramalho, e Vaca Profana, de Caetano Veloso, revelam influência do “Bardo de Minnesota”. São canções que provocam uma reação imediata em quem as ouve – o que isto quer dizer? Estas canções são como que experiências linguísticas nas quais não há a intenção de “dizer” alguma coisa. São como que o correspondente lírico da arte visual de estilo abstrato, que tem intenção de evocar sentimentos, mas não necessária ou obrigatoriamente apresentar uma cena.

Ainda referente à mencionada influência de Dylan na música brasileira:  algumas de suas canções tiveram versões em português: a já citada Blowin’ in the Wind no Brasil virou A resposta está no ar, gravada por cantores e/ou duplas, de estilo “sertanejo”, como o menino cantor Ronny Motta[3], e por duplas como Di Paullo e Paulino[4] e Durval e Davi[5]. A cantora Diana Pequeno também tem sua versão desta canção, na qual mescla inglês e português: o título e o refrão permaneceram em inglês, enquanto as estrofes foram vertidas para o português[6]. E, como se verá adiante no artigo, Man gave name to all the animals virou “O homem deu nome a todos animais”, na voz de Zé Ramalho[7]

As canções de Dylan anteriormente mencionadas (Blowin’ in the Wind e The Times They Are A Changing) e outras, como Political World são, como visto, de conteúdo político. Entretanto, o elemento religioso também tem sido muito destacado em sua produção lírico-musical. Este ponto será comentado na próxima divisão do artigo. 

2. Dylan e a religião 

Se há um elemento que salta aos olhos de qualquer pessoa que examine os conteúdos das letras de Dylan, é o religioso. A este respeito, Kevin Dettmar pontuou: 

Um pensador religioso abrangente que está muito à vontade com sua heterodoxia – seus períodos breves de ortodoxia, cristã e judaica, parecem aberrações desta distância – Bob Dylan é o gêmeo espiritual do poeta romântico inglês William Blake (DETTMAR, 2009, p. 8, tradução nossa).

Algumas observações sobre este elemento religioso na poética de Dylan. Tal como mencionado, ele é judeu. É bem verdade que ele nunca foi um judeu praticante, por assim dizer. A respeito de sua herança judaica, Dylan afirmou: “Nunca me senti judeu. Na verdade, não me considero nem judeu nem não judeu. Não tenho muito de um pano de fundo judaico. Não sou patriota de nenhum credo” (apud SPARGO, REAM, 2009, p. 91, tradução nossa). Todavia, em 1979 ele passou por uma experiência religiosa que o levou a assumir a fé cristã evangélica. 

Ainda que sua mudança para o cristianismo evangélico parecesse radical aos apegados à ideia que ele era um “humanista liberal” (expressão que uma vez ele chamou de “besteira... significa menos que nada”), ecos da música gospel estavam presentes em sua música muito antes dele se declarar nascido de novo[8] (SPARGO, REAM, 2009, p. 93).

A passagem de Dylan ao evangelicalismo causou espécie, por ter sido algo completamente inesperado. Dettmar informa que de janeiro a abril de 1979 Dylan participou de classes de estudo bíblico na Vineyard School of Discipleship em Reseda, Califórnia (DETTMAR, 2009, p. xiv). Conforme Spargo e Ream, alguns “dylanólogos” entendem que a conversão de Dylan ao cristianismo evangélico foi apenas “um exemplo da excentricidade de sua excentricidade brilhante” (SPARGO, REAM, 2009, p. 87). Fato é que Dylan assumiu publicamente que se tornara cristão, tendo inclusive gravado quatro álbuns com temática gospel: Slow Train Coming (onde aparece Man gave name to all the animals), de 1979, Saved (1980) e Shot of Love (1981). Nos anos que se seguiram ele não deu mais tanta ênfase nem fez propaganda de ter se tornado evangélico. Mas o elemento de natureza religiosa continua sendo central em sua obra como um todo. Os já citados Spargo e Ream afirmam:

Avaliar o lugar de (temas como) profecia, proselitismo, Deus, Jesus e fé (tanto judaica como cristã) nas canções de Dylan é encontrar um artista que utilizando múltiplas tradições e atitudes religiosas, as une por meio de uma imaginação maravilhosamente sincrética (SPARGO, REAM, 2009, p. 88, tradução nossa).

Não será exagero afirmar que em muitas de suas letras não explicitamente religiosas há um tom “profético”, não no sentido que a palavra é entendida no senso comum, relacionado a prever o futuro, mas no sentido bíblico, em que o profeta é quem denuncia situações de injustiça e erro e desafia a arrependimento e mudança de vida. Desta maneira, pode-se afirmar que a poesia de Dylan muita vez é uma profecia “secular”, isto é, não religiosa. A “substância” (para usar uma categoria da teologia da cultura de Paul Tillich) da poesia de Dylan é religiosa. Tome-se como exemplo Masters of War (“Senhores da guerra”), de 1963, época da Guerra do Vietnam: a letra é um protesto raivoso contra políticos que fizeram da guerra um negócio altamente lucrativo, protesto expresso em linguagem que faz lembrar os profetas escritores hebreus do oitavo século antes de Cristo, como Isaías e Amós. Dylan usa linguagem explicitamente bíblica em alguns trechos da letra: “Como Judas antigamente vocês mentem e enganam [...] Nem Jesus perdoaria o que vocês fazem”[9]. O detalhe importante a se observar é que Masters of War surge 16 anos antes do disco Slow Train Coming, mas já havia naquela época uma preocupação com temas de natureza religiosa cristã, preocupação esta que seria explicitada nos trabalhos de sua fase gospel. Não é de se admirar que a fase evangélica de Dylan tenha chamado a atenção de críticos musicais, fãs e intelectuais de diferentes campos do saber. Como exemplo, pode-se citar Francis Schaeffer, um pensador protestante estadunidense muito influente nas décadas de 1970 e 1980, que cita When You Gonna Wake Up? (“Quando você vai acordar?”), para corroborar sua argumentação em defesa do que denominou de “Manifesto Cristão” à sociedade do seu país (SCHAEFFER, 1981, p. 105). 

Uma análise das letras das canções de Dylan, antes, durante e depois de sua fase evangélica deixará claro o mencionado tom de crítica profética, à hipocrisia de religiosos, à aliança impura entre trono e altar, a uma “religião civil” que se torna aliada do poder político e que, com isso, se torna instrumento de iniquidade. Comentando sobre With God On Our Side (“Com Deus ao nosso lado”), uma canção anti-guerra do disco The Times They A’Changin, de 1964, Spargo and Ream comentam: 

Por fim, a canção questiona o uso da religião que racionaliza as políticas do Estado Americano, mas também pressupõe que em sua função institucional a religião permanece inalterada, encorajando as mesmas velhas não verdades combativas, servindo como uma força de conformidade ao invés de uma investigação crítica do status quo político (SPARGO, REAM, 2009, p. 90).

Em síntese: Dylan é um letrista de talento raro, autor de composições densas sobre temáticas complexas, e em sua poética o elemento religioso sempre teve lugar destacado. Na sequência, apresentar-se-á a canção que serve como objeto de estudo propriamente do artigo, para analisar como Dylan trabalhou com o texto bíblico que lhe serviu de inspiração para escrever a letra de Man gave name to all the animals,

3. Análise de aspectos líricos e musicais de Man gave name to all the animals

Por primeiro, a letra da canção: 

Man gave names to all the animals
 In the beginning, in the beginning.
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, long time ago.
 He saw an animal that liked to growl,
 Big furry paws and he liked to howl,
 Great big furry back and furry hair.
 "Ah, think I'll call it a bear."
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, in the beginning.
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, long time ago.
 He saw an animal upon a hill
 Chewing up so much grass until she was filled.
 He saw milk comin' out but he didn't know how.
 "Ah, think I'll call it a cow."
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, in the beginning.
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, long time ago.
 He saw an animal that liked to snort,
 Horns on his head and they weren't too short.
 It looked like there wasn't nothin' that he couldn't pull.
 "Ah, think I'll call it a bull."

Man gave names to all the animals
 In the beginning, in the beginning.
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, long time ago.
 He saw an animal leavin' a muddy trail,
 Real dirty face and a curly tail.
 He wasn't too small and he wasn't too big.
 "Ah, think I'll call it a pig."
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, in the beginning.
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, long time ago.
 Next animal that he did meet
 Had wool on his back and hooves on his feet,
 Eating grass on a mountainside so steep.
 "Ah, think I'll call it a sheep."
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, in the beginning.
 Man gave names to all the animals
 In the beginning, long time ago.
 He saw an animal as smooth as glass
 Slithering his way through the grass.
Saw him disappear by a tree near a lake.[10]

 

Na sequência, apresentaremos nossa proposta de tradução da letra, acrescentando em notas de rodapé as justificativas das escolhas feitas neste processo, considerando as dificuldades envolvidas na tradução de qualquer texto em geral, e muito mais ainda da poesia, em particular[11]. Ato contínuo, serão feitos comentários sobre os aspectos fonéticos da letra de Dylan, considerando ser o elemento fonético simplesmente central para a compreensão de um poema (cf. CÂNDIDO, 2009, p. 37-48).

O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, no princípio 
 O homem deu nomes a todos os animais
No princípio, há muito tempo atrás[12]
 Ele viu um animal que gostava de rosnar,
 Grandes patas peludas, e ele gostava de berrar 
Grande dorso peludo e pelo espesso[13].
 "Ah, acho que vou chamá-lo de urso”. 
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, no princípio 
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, há muito tempo atrás.
 Ele viu um animal no alto de uma colina 
 Mastigando tanta grama até ficar farta. 
 Viu leite saindo, mas não sabia como. 
 "Ah, acho que vou chamá-la de vaca”.
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, no princípio 
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, há muito tempo atrás.Ele viu um animal que gostava de bufar,
 Chifres na cabeça, e eles não eram pequenos.
 Parecia que não havia nada que ele não pudesse puxar. 
 "Ah, acho que vou chamá-lo de touro"

O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, no princípio 
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, há muito tempo atrás 

Ele viu um animal deixando um rastro de lama
 Cara suja de verdade e um rabo enrolado. 
 Não era muito pequeno e não era muito grande. 
 "Ah, acho que vou chamá-lo de porco."
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, no princípio 
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, há muito tempo atrás.
O outro[14] animal que ele encontrou 

Tinha lã nas costas e cascos nos pés,
 Comendo grama em uma montanha tão íngreme. 
 "Ah, acho que vou chamá-lo de ovelha."
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, no princípio 
 O homem deu nomes a todos os animais
 No princípio, há muito tempo atrás.
 Ele viu um animal liso como vidro. 
 Deslizando na grama. 
 E o viu desaparecer perto de uma árvore ao lado de um lago...

Como dito, serão analisados agora aspectos fonéticos da letra da canção. A poesia de Dylan é marcada por rimas de sonoridade perfeita. Antes de prosseguir, uma observação se faz necessária: em português existe a classificação das rimas em ricas e pobres[15]. O sistema verbal do português tem muita regularidade sonora no final das palavras, a começar pelo infinitivo, que tem apenas quatro finais possíveis (ar, er, ir e or). Em inglês os verbos podem terminar de qualquer maneira (run, sit, walk, swim, burp, click, fart, yell, sing, dance, cry, laugh, crack, will, laugh, wish, twist, flip, flirt, melt, heal, grow, turn, stand...). No que diz respeito à rima, há em inglês pelo menos 14 tipos (WHITE, 2020). E a poesia de Dylan é rica em rimas:na primeira estrofe em que um animal é citado, há um esquema AA BB: 

He saw an animal that liked to growlA,
Big furry paws and he liked to howlA,
Great big furry back and furry hairB.
"Ah, think I'll call it a bearB."

Os destaques em negrito indicam as rimas. No caso do primeiro hemistíquio[16], dois verbos rimam: growl (rosnar) e howl (berrar), e de igual maneira, nas duas últimas linhas: hair (literalmente, “cabelo”, mas conforme anteriormente exposto, optamos por traduzir por “pelo”) e bear (“urso”). 

            A próxima estrofe em que aparece um animal “nomeado” pelo “homem” é:

He saw an animal upon a hillA

Chewing up so much grass until she was filledA

He saw milk comin' out but he didn't know howB

"Ah, think I'll call it a cowB

O mesmo esquema AA BB é utilizado: hill (“colina”) um substantivo, rima com filled[17], a forma verbal no particípio passado do verbo to fill, “encher”, ou, conforme nossa opção de tradução “estar farta”. De igual maneira, how (“como”), preposição, rima com cow (“vaca”), um substantivo.

Na estrofe seguinte (e, de resto, em todas nas quais animais são apresentados) o esquema das rimas é o mesmo, ou seja, AA BB:

He saw an animal that liked to snortA 

Horns on his head and they weren’t too shortA

It looked like there wasn't nothin' that he couldn't pullB

"Ah, think I'll call it a bullB

Mais uma vez: snort (“bufar”), verbo, rimando com short (“pequenos”), e pull (“puxar”), verbo, rimando com bull (“touro”), substantivo. Ainda nesta estrofe há que se observar que há um jogo fonético muito bem-feito, pois as últimas palavra das duas últimas estrofes são iniciadas por consoantes oclusivas (ou explosivas): p, em pull, e b, em bull. Este recurso estilístico e fonético empregado por Dylan revela um uso sofisticado da língua inglesa. Na sequência: 

He saw an animal leavin' a muddy trailA,
Real dirty face and a curly tailA.
He wasn't too small and he wasn't too bigB.
"Ah, think I'll call it a pigB.

Nesta estrofe, no primeiro hemistíquio: trail (“rastro”) e tail (“rabo” ou “cauda”), e depois, big (“grande”) e pig (“porco”), respectivamente adjetivo e substantivo. 

Next animal that he did meetA

Had wool on his back and hooves on his feetA

Eating grass on a mountainside so steepB

"Ah, think I'll call it a sheepB

Na sequência: he did meet (“ele encontrou”), forma verbal e feet (“pés”, substantivo) no primeiro hemistíquio, e steep (“íngreme”), adjetivo, rimando com sheep (“ovelha”), substantivo. 

Finalmente a enigmática última estrofe, que, diferentemente das anteriores, tem três linhas, e não quatro. Qualquer pessoa que ouvir a canção pela primeira vez se surpreenderá porque a música literalmente chega ao fim, mas não termina, pois acaba sem acabar: 

He saw an animal as smooth as glass

Slithering his way through the grass

Saw him disappear by a tree near a lake . . .

As duas primeiras linhas trazem glass (“vidro”) e grass (“grama”). A terceira linha traz a palavra lake – “lago” – e a canção é encerrada de maneira abrupta. Naturalmente os ouvintes esperariam que haveria uma continuação, com uma quarta linha poética, trazendo o nome de um animal que tenha assonância com lake. Mas surpreendentemente, não é o que acontece. O animal da última estrofe, conforme a descrição das duas primeiras linhas, é “liso como vidro” e “desliza” pela grama até “desaparecer perto de uma árvore ao lado de um lago”. O único animal em inglês que se encaixa na descrição das primeiras linhas e tem assonância com lake é snake – “cobra” ou “serpente”. Só que a rima, óbvia para quem conhece a língua inglesa e a narrativa do Gênesis bíblico, onde no capítulo terceiro a serpente é citada, simplesmente não aparece. 

Tendo examinado alguns elementos da lírica de Dylan na mencionada canção, é necessário analisá-la em perspectiva da teoria musical. Pois conforme afirmado na introdução do presente artigo, recentemente alguns pesquisadores têm voltado sua atenção para o potencial da música como objeto de estudo das ciências da religião. No campo da reflexão teológica já de mui longa data existe um diálogo com a música. Todavia, a maior parte do que por enquanto se tem (pelo menos no Brasil) em termos de estudar a linguagem da religião e/ou o fenômeno religioso por intermédio da música tem sido em termos de análise da letra das canções. Não há dúvida que este procedimento é importante, mas há que se estudar também o elemento musical propriamente. É o que se pretende nesta seção do artigo, a saber, verificar elementos da harmonia de Man Gave Names to All the Animals: a canção foi composta no compasso quaternário e se encontra na tonalidade de Mi menor, tendo como harmonia do refrão o que chamamos de principais acordes de uma tonalidade aos moldes do tonalismo ocidental, o ciclo tonal. Neste caso, a tônica, que consiste no primeiro acorde da escala, o Mi menor com sétima, que de acordo com os estudos de harmonia funcional propõe a função de repouso e o acorde de quinto grau da escala, o Si maior com sétima, que tem a função de tensão dentro da harmonia funcional do tonalismo[18]

As estrofes da música, além dos dois acordes principais citados acima, possuem também o terceiro acorde mais importante da escala: o 4º grau, que possui a função de afastamento do ciclo 1º e 5 º, chamado de subdominante. No caso da música de Dylan que analisamos no presente artigo, o acorde de Lá maior. Outro detalhe importante é que, sendo o acorde de Lá maior, e não Lá menor, podemos dizer também que a canção se encontra na tonalidade de Mi menor melódico, que consiste na escala MI, FÁ#, SOL, LÁ, SI, DÓ#, RÉ#, MI[19]

É interessante, pensando na letra da canção, a escolha do uso de apenas os três principais acordes da escala menor, por serem os fundamentos da escala, os mais importantes, o que nos parece um paralelo interessante com a mensagem dos primórdios do mundo, que é a temática da letra. 

Musicalmente falando Man gave name to all the animals é simples, com apenas 3 acordes, com a abertura para improvisos e para fluidez musical. É um estilo musical popular, que nos parece resultar do encontro com a folk music norte-americana, o reggae jamaicano, o Gospel e cantigas infantis, o que é também muito sugestivo para expressar a letra da canção através de uma musicalidade popular, fluida, que estimula o swing e a aproximação da lembrança da natureza e animais, buscado um distanciamento das bases musicais mais racionalistas e rebuscadas, se afastando também de arranjos de quarteto de cordas ou metais. A simplicidade e liberdade de improviso é marcante. Outra característica que aproxima o ouvinte deste ambiente, digamos, originário, seria a proposta cíclica da canção que anda entre o refrão e as estrofes initerruptamente. A música é muito sugestiva para interpretações semióticas. 

O estilo musical que resulta deste encontro de gêneros citados acima é interpretado a partir do violão, bateria, piano, o contrabaixo, os back vocals, que canta em duas vozes separadas e a voz solo de Bob Dylan. 

Um fator que foge um pouco a regra do tonalismo é o fato de que Dylan termina a música no acorde de tensão, o 5º grau, o Si maior com sétima, não terminando no repouso, o Mi menor. Obviamente que Dylan já era desconstruído quanto as regras tonais e compôs diversas músicas que as contestam, mas pensando no contexto da música em si, é inusitado e inesperado o término na tensão e não no repouso, terminando a canção com a sensação de indefinição e de abertura para novidades, o que pode sugerir que a partir do início da criação, muitas coisas estariam por vir, ou então, outra hipótese, seria um acorde preparatório para a próxima canção do disco. As duas hipóteses parecem plausíveis e prováveis: a primeira, pelo clima de suspense e de surpresa no ouvinte provocados pela canção, que termina de maneira abrupta, totalmente inesperada, na verdade, terminando sem terminar, concluindo sem concluir, finalizando sem finalizar. A segunda, hipótese, que o “fim” (entre muitas aspas!) prepararia para a canção seguinte: quanto a isso, há que se observar que a canção que se segue a Man gave name to all the animals é justamente a última do álbum Slow Train Coming: When He Returns (“Quando ele voltar”), que tem como tema a segunda vinda de Cristo. As duas últimas canções do álbum tratam, em perspectiva cristã, respectivamente do início e do fim – ou de um novo começo. Concluindo: nossa hipótese é que o final misterioso da canção expressa ideia de indefinição e tensão, como abertura para diversas possibilidades futuras. 

4. Apresentação das releituras de Man gave name to all the animals no cenário da cultura pop mundial 

Nesta subdivisão do capítulo serão apresentadas algumas releituras da canção de Dylan. Afinal, levando-se em conta seu sucesso que atravessa décadas, e, no caso específico de Man gave name to all the animals que é uma composição paradoxal – fácil e difícil ao mesmo tempo – não é de se admirar que a canção tenha sido gravada por outros cantores. 

A primeira releitura da canção a ser apresentada é a feita por Johnny Cash: o conhecido cantor norte-americano do ritmo country, gravou uma versão de Man gave name to all the animals, mas curiosamente alterou a letra, pois acrescentou uma linha na última estrofe. Na versão de Cash, that’s the one he called snake – “este é o que ele chamou de cobra”[20]

Outra releitura da canção é a feita Jason Mraz, cantor que mescla estilos como reggae, pop, jazz e hip hop. A versão de Mraz, diferentemente da de Johnny Cash, é absolutamente fiel à letra de Dylan[21]

Townes Van Zandt, cantor norte-americano do estilo country também gravou uma versão de Man gave name to all the animals[22]. À semelhança de Jason Mraz, sua versão também é fiel à letra de Dylan. 

Tendo apresentado releituras que patrícios de Dylan fizeram desta sua canção, apresentar-se-á agora a releitura brasileira desta música. Mencionou-se no início do artigo que por força da influência de Dylan em muitos nomes da MPB, há versões em algumas de suas músicas em português. Uma destas é exatamente a que serve como objeto de estudo para o presente capítulo, que recebeu uma versão na voz de Zé Ramalho, que a intitulou O homem deu nome a todos animais[23]. Nesta versão Zé Ramalho é acompanhado pelo guitarrista Robertinho do Recife, que faz um solo de cítara indiana, conferindo um toque exótico à música. Zé Ramalho segue o mesmo esquema da versão original de Dylan, com rimas foneticamente perfeitas, mas, como seria de se esperar, altera a letra, pois é literalmente impossível que na versão em português seja feita uma tradução que mantenha a sonoridade do original. Na versão brasileira, os animais nomeados são o leão, o lobo, a vaca e a serpente (mas não da maneira enigmática e inacabada como na versão de Dylan). 

5. Recepção do texto bíblico em Man gave name to all the animals

Após uma apresentação, posto que em síntese, da trajetória pessoal e artística de Dylan, do elemento religioso em sua obra poética, dos elementos líricos e musicais de Man gave name to all the animals e de releituras da mencionada canção, é chegado o momento de apresentar como Dylan se apropriou do texto bíblico em sua composição. O fato de Dylan ter encontrado inspiração em uma passagem bíblica para escrever esta letra comprova a tese do crítico literário canadense Northrop Frye que afirma ser a Bíblia o “grande código” da arte ocidental em geral, mas particularmente a literatura (FRYE, 2004). Nas palavras de Frye, “A Bíblia certamente é um elemento da maior grandeza em nossa tradição imaginativa, seja lá o que pensemos a seu respeito” (FRYE, 2004, p. 18). De fato, não é possível negar o que o mesmo Frye disse quando afirmou ser a Bíblia uma “influência imaginativa” decisiva na arte ocidental (FRYE, 2004, p. 21). 

O texto que serviu de inspiração para Dylan escrever a letra de Man gave name to all the animals é Gn 2.19b-20a, que será transcrito em algumas versões da Bíblia em português, católicas e protestantes, e também na versão ecumênica:

 

Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição Revista e Atualizada no Brasil

O nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles. Deu nome o homem a todos os animais domésticos, às aves dos céus e a todos os animais selváticos.

Nova Versão Internacional

O nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome. Assim o homem deu nomes a todos os rebanhos domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. 

Bíblia do Peregrino 

E cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. Assim, o homem deu nome a todos os animais domésticos, aos pássaros do céu e às feras selvagens. 

Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB

Cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a todos os animais selvagens. 

Tradução Ecumênica da Bíblia

Tudo aquilo que o homem designou tinha o nome de “ser vivo”. O homem designou pelo seu nome todo gado, todo pássaro do céu e todo animal dos campos. 

Bíblia Sagrada. Edição Pastoral

Cada ser vivo levaria o nome que o homem lhe desse. O homem deu então nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras.

Bíblia de Jerusalém

Cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens. 

A Mensagem

Todos os animais do campo e todos os pássaros do céu... seriam chamados pelo nome escolhido pelo Homem, qualquer que fosse. E o Homem deu nome ao gado, aos pássaros do céu e aos animais selvagens. 

Primeiramente vejamos o texto hebraico de Gn 2.20a, que efetivamente serviu de inspiração para a letra de Dylan: 

וַיִּקְרָ֨א הָֽאָדָ֜ם שֵׁמ֗וֹת לְכָל־ הַבְּהֵמָה֙ וּלְע֣וֹף הַשָּׁמַ֔יִם וּלְכֹ֖ל חַיַּ֣ת הַשָּׂדֶ֑ה[24]

E chamou (deu) o humano nomes a todo gado e às aves do céu e a todo animal selvagem (tradução nossa).

Dylan, como visto, recepciona o texto bíblico em sua letra de maneira literal, no sentido de “dar nome” aos animais. Todavia, a grande questão é: o que significa “dar nome” no contexto da Bíblia? E quem o fez? Quem é o “homem” que “deu nome” aos animais? 

São perguntas difíceis, e o artigo não pretende respondê-las de maneira definitiva (como se isso fosse possível). Comecemos pela última: observe-se que todas as versões consultadas trazem “o homem”, que traduz הָאָדָם – ha adam – no original hebraico. Eis aí um enigma exegético, com implicações teológicas: a palavra אָדָם significa literalmente “gênero humano” ou “espécie humana”[25]. Adam virou nome próprio masculino nas línguas europeias, mas no original não se encontra o nome de um indivíduo propriamente. O biblista luterano alemão Claus Westermann captou essa nuance do texto hebraico em sua tradução de Gn 2.19-20a:

E o Senhor Deus fez... todo tipo de animais do campo e todo tipo de aves do céu, e as levou até o ser humano, para que que nome ele lhes daria; e o nome exato que o ser humano desse a eles, aos seres vivos, esse seria o seu nome. E o ser humano deu nomes a todos os animais domésticos e às aves do céu e a todos os animais do campo (WESTERMANN, 2013, p. 30).

Tem-se aí uma metonímia, uma figura de linguagem multiforme muito comum tanto na linguagem oral, como também em textos literários. Uma das formas da metonímia é tomar o todo pela parte: considerando que adam significa literalmente gênero humano, o texto pode estar fazendo referência não a um indivíduo em particular (tal como interpretado por Dylan), mas a toda a espécie humana. O texto hebraico na verdade é ambíguo, porque na passagem em questão adam tanto pode ser uma referência ao “ser humano” (tal como traduzido por Westermann) em geral como também pode ser uma referência a um “homem” em particular. E aí a outra questão: o que exatamente quer dizer “dar nome” aos animais? No contexto cultural do Oriente Médio antigo,

Nomear um objeto ou pessoa implicava em poder e autoridade sobre o que foi nomeado (Gn 2:19-20). Sendo assim, uma pessoa que não soubesse o nome de outra não poderia fazer-lhe nem o bem nem o mal (Êx 33:12, 17) [...] O Faraó, como senhor do patriarca José, mudou-lhe o nome quando sua situação foi alterada, chamando-o Zafenate-Paneia (Gn 41:45). Quando Eliaquim tornou-se rei de Judá o Faraó mudou seu nome judaico para Jeoaquim (2 Rs 23:34). No cativeiro, Daniel, Hananias, Mizael e Azarias foram forçados a mudar seus nomes para Beltessazar, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego por ordem do eunuco (Dn 1:6-7) (cf. COMFORT, ELWELL, 2001, p. 934-935, tradução nossa).

Esta parece ser a interpretação mais acertada do “dar nome”. Neste sentido, há que se lembrar da passagem dos Evangelhos em que Jesus pergunta o nome do demônio que atormentava o geraseno, e a resposta é que eram muitos demônios (Mc 5.8-9; Lc 8.30). Ao mesmo tempo, Jesus não permite que demônios pronunciem seu nome (cf. Mc 1.24-25; Lc 4.33-35). Dar (ou conhecer) o nome é exercer autoridade. Ao “dar nome” aos animais, o humano demonstra sua posição elevada no cenário da criação. É curioso observar que no primeiro relato da criação, em Gênesis 1, é dito que Elohim – “Deus” – disse: “Façamos adam à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (Gn 1.26). A sentença do segundo relato, em Gênesis 2, que inspirou Dylan, apresenta de modo sugestivo, conforme os moldes culturais do antigo Oriente Médio, o “cumprimento”, de Gn 1.26. O mesmo tema aparecerá no Salmo 8, quando é dito que Javé criou adam – “o humano” – pouco menor que os seres celestiais, dando-lhe domínio sobre “ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo, as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” (Sl 8.4-8).

Mas não foi desta maneira que Dylan recepcionou o texto bíblico em sua canção. Antes, ele o fez de maneira literal, até mesmo ingênua. Dylan não percebeu as nuances socioculturais subjacentes à afirmação do texto do Gênesis 2.20 que declaram que adam deu nome a todos os animais. 

Considerações finais

Caminhando para o final do artigo: vimos, ainda que apenas em síntese, como há relação visceral entre religião e música. As investigações acadêmicas das relações entre estas duas realidades são potencialmente fecundas e frutíferas para pesquisas na Área 44 de Avaliação da CAPES – Ciências da Religião e Teologia. No entanto, o que se tem percebido é que tais diálogos têm acontecido com mais frequência com a teologia que com os estudos de religião.   A partir desta constatação o presente artigo apresenta uma análise, temática e musical, da canção Man gave name to all the animals, de Bob Dylan, a partir do prisma da recepção na mencionada canção do texto de Gn 2.20. Para tanto, apresentou-se a trajetória de Dylan, com ênfase no elemento religioso que sempre marcou sua poética. A canção que serve como objeto de estudo para o artigo foi analisada em seus aspectos poéticos propriamente, mas também em seus aspectos musicais. Considerando a influência que há décadas Dylan exerce no cenário da cultura pop mundial, o artigo apresentou releituras desta canção, por músicos estadunidenses e por um brasileiro (Zé Ramalho). Por fim, foi analisado o texto de Gn 2.20, a partir de seu original hebraico, e de que maneira exatamente Dylan interpretou a mencionada perícope. 

O artigo conclui que Dylan não percebeu alguns aspectos socioculturais do contexto do Oriente Médio antigo em sua interpretação do texto bíblico. Não obstante, o fato de ter encontrado inspiração na Bíblia para compor sua canção é (mais uma) demonstração inequívoca do acerto da proposição feita pelo crítico literário Northrop Frye sobre ser a Bíblia influência decisiva na arte ocidental, incluindo a música. 

Como visto, Dylan sempre deu atenção a questões de natureza religiosa em sua produção lírica e poética. Que outras pesquisas continuem a explorar este filão promissor para a reflexão teológica e para os estudos de religião.       

Referências

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BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990

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BÍBLIA DO PEREGRINO. Tradução de Luís Alonso Schökel. São Paulo: Paulus, 2002

BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB. 2ª edição. São Paulo: Ave Maria. Aparecida: Santuário. São Paulo: Loyola. Petrópolis: Vozes. São Paulo: Salesiana. São Paulo: Paulus. São Paulo: Paulinas, 2002

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ZÉ RAMALHO. O homem deu nome a todos animais. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Szq9Dl7uCbU Acesso: 30 jun 2023

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Notas

[1] Não foi a primeira vez que um poeta foi premiado com a honraria máxima mundial da literatura: antes, poetas como o indiano Rabindranath Tagore (1913), o norte-americano naturalizado inglês T. S. Eliot (1948) e o chileno Pablo Neruda (1971) foram contemplados com o Nobel de Literatura. Todavia, Dylan foi o primeiro (e, por enquanto, o único) compositor contemplado com este prêmio. Conforme o comitê responsável pela escolha do laureado, a escolha de Dylan em 2016 se deu “por ter criado novas expressões poéticas na grande tradição da canção americana” (https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2016/summary/. Acesso: 28 jun 2023). A decisão de conceder a um compositor um prêmio tão importante na área de literatura rendeu muitas críticas ao comitê da Fundação Nobel responsável por esta escolha. 

[2] As letras das canções de Dylan foram publicadas em português em dois volumes: DYLAN, 2017, e DYLAN, 2020.

[3] Rony Motta. A resposta está no ar. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QrelxsiyF6g. Acesso: 30 jun 23. 

[4] Di Paullo & Paulino. A resposta está no ar. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=o9ZV0WYPfJA. Acesso: 30 jun 23. 

[5] Durval e Davi. A resposta está no ar. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OUzZER9Leg0 Acesso: 30 jun 2023

[6] Diana Pequeno. Blowin’ in the Wind. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=NQPvwRcovvA Acesso: 30 jun 2023

[7] Zé Ramalho. O homem deu nome a todos animais. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Szq9Dl7uCbU Acesso: 30 jun 2023

[8] A expressão “nascido de novo” – born again no original – é extraída do Evangelho de João (3.3, 7-8), que mostra a passagem conhecida do diálogo de Jesus com Nicodemos. Tal expressão é usada no contexto estadunidense para se referir a quem passou por uma experiência religiosa de conversão ao cristianismo que leva a assumir um compromisso público de se tornar seguidor/a de Jesus. Em outras palavras: quem se define como born again se entende como cristão praticante, e não nominal. 

[9] DYLAN, Bob. Masters of War. Disponível em https://www.letras.mus.br/bob-dylan/68476/traducao.html Acesso 07 ago 2023.

[10] Disponível em https://www.vagalume.com.br/bob-dylan/man-gave-names-to-all-the-animals.html Acesso: 09 ago 2023

[11] A respeito das possibilidades e impossibilidades da tradução, consultar RICOEUR, 2011.

[12] A tradução literal da última sentença da primeira estrofe seria simplesmente “há muito tempo”. Dizer “há muito tempo atrás” é pleonástico. Todavia, numa tentativa de preservar em português a semelhança sonora presente no original, faz-se uma “quase” rima entre as palavras “animais” e “atrás”. 

[13] O original traz furry hair, que traduzido literalmente ficaria estranho em português, pois seria algo como “cabelo peludo”. Daí nossa opção por traduzir furry hair como “pelo espesso” (a referência é à pelagem densa e grossa do urso).

[14] O original traz Next animal, literalmente, “o próximo” ou “o seguinte”. Uma tradução literal seria “O próximo animal” ou “O animal seguinte”, mas esta leitura não seria muito fluente em português. Daí nossa opção por traduzir por “O outro animal”, que transmite a ideia de sequência, ideia esta transmitida pelo next do original.

[15] Conforme os cânones de teoria literária, rima pobre é aquela em que há assonância entre palavras da mesma classe gramatical (verbo com verbo, substantivo com substantivo, etc) e rima rica é aquela em que a assonância ocorre com palavras de classes gramaticais diferentes (verbo com substantivo, substantivo com adjetivo, etc). 

[16] Em teoria literária, o hemistíquio é a metade de um verso poético. No caso de Man gave name to all the animals, todas as estrofes em que animais são apresentados são versos de quatro linhas com dois hemistíquios cada.

[17] Em inglês hill e filled rimam, não na escrita, mas na fonética, pois o “d” final de filled não é pronunciado. 

[18] O nome ciclo tonal deve-se exatamente ao fato dos acordes de tônica (1º) e dominante (5º) serem os acordes que apresentam a dualidade Repouso/Tensão, sendo as duas funções harmônicas fundamentais, exatamente por serem contrastantes e uma pedir a outra. 

[19] Quando estudamos os princípios básicos de harmonia funcional, é muito importante a compreensão e que os principais acordes são a tônica (repouso) 1º, dominante (tensão) 5º e subdominante (afastamento) 4º, nesta hierarquia de importância. 

[20] Johnny Cash. Man gave name to all the animals. The Johnny Cash Songs. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3CTHkmwIOV0 Acesso: 14 ago 2023.

[21] Jason MRAZ. Man gave name to all the animals. Eileen ML AKA Adamfulgence. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=L1XadQZtScM Acesso: 16 ago 2023. 

[22] Townes Van Zandt. Man gave name to all the animals. Townes Van Zandt. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=MdjxO6MqCT4 Acesso: 16 ago 2023

[23] Zé Ramalho. O homem deu nome a todos animais. Zé Ramalho. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Szq9Dl7uCbU Acesso 30 jun 2023.

[24] Extraído de Biblehub. Genesis 2. Disponível em https://biblehub.com/interlinear/genesis/2.htm Acesso: 21 ago 2023.

[25] Cf. KIRST et al, 1988, p. 12.