Diego Genu Klautau
Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor no Colégio na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: dklautau@gmail.com
Resumo: Este artigo investiga o ensaio Sobre Estórias de Fadas, de J. R. R. Tolkien, com o objetivo de delinear uma hermenêutica para a metáfora de “Feéria”, a Terra das Fadas, sempre em diálogo com a tradição filosófica da antiguidade grega, especificamente com A República de Platão, De Anima e Poética de Aristóteles e a Suma Teológica de São Tomás de Aquino. O contexto histórico da Inglaterra do início do século XX e a biografia de J. R. R. Tolkien endossam a pertença deste autor a uma tradição religiosa e filosófica católica que recuperava a filosofia dita realista como fundamento da compreensão do mundo. A partir dessa abordagem teórico-metodológica, encontramos uma dupla significação para Feéria, sendo primeiramente, de inspiração mais platônica, a realidade intermediária entre a dimensão sensível, captadas pelos sentidos do homem, e a dimensão inteligível, constituída pelas ideias que enformam as coisas materiais; em uma segunda interpretação, de matiz mais aristotélica, a metáfora das Terra das Fadas pode ser compreendida como a matriz de possibilidades combinatórias pela linguagem das formas oriundas da percepção da realidade pela mente humana, sendo Feéria constituída pela imaginação ou fantasia, essa capacidade do homem de formar imagens a partir da memória e que serve de base para a abstração das formas universais.
Palavras-chave: Feéria; fantasia; imaginação; linguagem, realidade
Abstract: This article investigates J. R. R. Tolkien's essay "On Fairy-Stories" with the aim of outlining a hermeneutics for the metaphor of "Faërie," the Elfland, always in dialogue with the philosophical tradition of ancient Greece, specifically with Plato's "Republic" and Aristotle's "De Anima" and "Poetics."; and Aquina’s “Suma Theologica”. The historical context of early 20th-century England and J. R. R. Tolkien's biography endorse this author's belonging to a Catholic religious and philosophical tradition that reclaimed so-called realistic philosophy as the foundation for understanding the world. From this theoretical-methodological approach, we find a dual significance for Faërie, firstly, in a more Platonic inspiration, as the intermediary reality between the sensible dimension perceived by human senses and the intelligible dimension consisting of the ideas that inform material things. In a second interpretation, with a more Aristotelian hue, the metaphor of the Elfland can be understood as the matrix of combinatory possibilities through the language of forms originating from the perception of reality by the human mind, with Faërie being constituted by imagination or fantasy, the capacity of humans to form images from memory, which serves as the basis for the abstraction of universal forms.
Keywords: Faërie; phantasy; imagination; language; reality
O ensaio Sobre Estórias de Fadas (On Fairy-Stories) de J. R. R. Tolkien (1892-1973) é uma das principais fontes da teoria literária do autor de O Senhor dos Anéis. Embora reconhecido mundialmente por suas obras ficcionais, o professor de Oxford possui trabalhos de investigação científica nas áreas de filologia, sendo especialista em anglo-saxão (Old English) e literatura medieval. O texto é resultado de uma conferência feita em 1939, na Universidade de St. Andrews, sendo revisto e ampliado até assumir seu formato definitivo em 1943, sendo finalmente publicado em 1947 (FLIEGER; ANDERSON, 2014, p. 23).
O contexto da elaboração do ensaio reflete um período de muita intensidade produtiva para Tolkien (CARPENTER, 2018, p.155-280). Sua primeira obra publicada para o grande público, O Hobbit (1937), já era um sucesso de vendas e uma continuação das aventuras desses seres fantásticos fora solicitada e estava em andamento desde o final dos anos 30. Embora O Senhor dos Anéis só fosse publicado em 1954-55 em três volumes, Tolkien dedicava seus esforços na feitura do novo livro.
Por outro lado, o estudo tolkieniano Beowulf: the monsters and the critics (1936) lentamente se tornava uma referência sobre as estruturas e significados do poema homônimo, primeiro documento escrito em inglês antigo, cuja datação era presumida por volta do século VIII. d.C., do qual o manuscrito preservado é de cerca do ano 1000 d.C. (TOLKIEN, 2015, p. 240). Por fim, os Inklings, grupo de estudos literários de acadêmicos da universidade de Oxford, dentre os quais estavam o próprio Tolkien, C. S. Lewis, Hugo Dyson, Owen Barfield e Charles Williams, estavam se intensificando, com seus membros publicando pesquisas acadêmicas e obras literárias oriundas de seus diálogos (FLIEGER; ANDERSON, 2014, p.10-19).
Ademais, os efeitos da ascensão do nazismo e do fascismo, assim como a pertença de Tolkien à Igreja Católica e as diferenças desta com o socialismo e o comunismo, estabelecidas oficialmente desde pelo menos Leão XIII (1810-1903) com a Rerum Novarum (1891), eram parte das preocupações da intelectualidade católica da Europa em geral e da Inglaterra em particular. Neste ponto, os interesses de Tolkien sobre a questão religiosa eram públicos, ainda mais considerando a qualidade de minoria religiosa do catolicismo romano no Reino Unido desde a Reforma Anglicana e o Act of Supremacy (1534) de Henrique VIII, com os católicos só recebendo a plena cidadania em terras britânicas a partir de 1829.
Por fim, Tolkien tornou-se órfão de pai aos 1 anos e de mãe aos 12, sendo tutorado pelo Pe. Francis Xavier Morgan (1857-1935), membro do Oratório de São Felipe Néri, em Birmingham, fundado pelo Cardeal John Henry Newman (1801-1890), cuja adesão às propostas de Leão XIII era ampla, assim como à renovação da tradição realista na filosofia, conforme estabelecido pela encíclica Aeterni Patris (1879), que consagrava São Tomás de Aquino como reto modelo de pensamento católico (BIRZER, 2002, p. 22).
Assim, Sobre Estórias de Fadas cita literalmente, enquanto autoridades e em consonância com seus argumentos, dois intelectuais britânicos e católicos do início do século XX que tiveram grande importância no pensamento de leigos da Igreja Católica neste contexto: G. K. Chesterton (1874-1936) quatro vezes (TOLKIEN, 2020, pp. 54, 67, 69) e Christopher Dawson (1889-1970) duas vezes (TOLKIEN, 2020, pp. 37 e 71).
Tanto o cotidiano de Tolkien, em suas atividades de professor, pesquisador e autor de literatura, quanto o ambiente mais geral na Europa e na Inglaterra integravam esse momento de estupefação e crítica sobre os caminhos tomados pela modernidade e que desembocaram na Segunda Guerra Mundial. A crença no progresso ilimitado da civilização que a ciência moderna prometera, assim como as pretensões políticas do Estado e do imperialismo industrial, estavam desmoronando, sendo a religião e a fantasia elementos que voltavam ao debate público com certa esperança de provimento de significados para além do irracionalismo subjetivo muitas vezes de viés romântico (TOLKIEN, 2020, pp.63-64, 98).
Ao integrar esse momento histórico, Sobre Estórias de Fadas exprime essas tensões entre o intelectual britânico e católico em um período de crise civilizatória e o autor literário de fantasia no meio de um processo criativo que culminará em um dos mais importantes romances do gênero. De 1939, ano da conferência que iniciou o texto, até 1947, data de sua publicação, a Segunda Guerra começou e terminou, assim como se desenvolveu O Senhor dos Anéis. (HAMMOND; SCULL, 2006, pp. 225-477). A teorização sobre a literatura acerca da Terra das Fadas, ou dos Elfos, é coetânea da elaboração própria da literatura e da reflexão sobre a realidade vivida pelo autor. Assim, teoria literária, exercício da arte, leitura histórica, filosofia e religião se fundem nessa obra sintética e grávida de pressupostos implícitos, das quais ainda se retiram muitos frutos em diversos âmbitos nos estudos tolkienistas.
O cerne do ensaio gira em torno das narrativas de estórias de fadas, explorando sua definição, origens e funções. A erudição e profundidade intelectual presentes em Sobre Estórias de Fadas refletem a imensidão e complexidade do universo literário criado por Tolkien. Nele, uma montanha não é apenas um cenário casual, mas sim um elemento com múltiplos nomes e uma história própria repleta de personagens e eventos significativos.
Segundo Testi (2018, pp. 75-79), Sobre Estórias de Fadas nunca faz menção a um autor, argumento ou exemplo que não esteja cuidadosamente entrelaçado em uma rede de referências teóricas e pressupostos conceituais, criando um conjunto elegante de premissas sutis e implícitas. No entanto, o ensaio tem sido objeto de críticas por sua falta de uma delimitação filológica precisa, sendo considerado por Shippey (1992, p.45) o trabalho de argumentação menos bem-sucedido de Tolkien.
A proposição neste artigo é que a interpretação mais apropriada do texto não se encontra estritamente na filologia, mas sim na interseção entre a filosofia e a teologia. Embora Tolkien não tivesse uma formação acadêmica formal em tais áreas, sua erudição e interesse pela Antiguidade e pela Idade Média o tornavam um estudioso universitário cujas pesquisas frequentemente abordavam elementos relacionados a essas disciplinas. Além disso, durante seu período de estudos no Exeter College da Universidade de Oxford entre 1911 e 1913, Tolkien se aprofundou em autores da tragédia grega e nos diálogos de Platão, o que enriqueceu sua bagagem intelectual e influenciou sua abordagem das estórias de fadas (HAMMOND; SCULL, 2006, pp.28, 38).
Dentre as inúmeras possibilidades de aproximação do ensaio (KLAUTAU, 2021, p. 105-182), escolhemos para este artigo um recorte fundamental para a compreensão das interfaces entre literatura e filosofia segundo o próprio Tolkien: a apresentação do conceito de Feéria, o Reino Perigoso. Segundo Flieger e Anderson (2014, p. 93, 118), Tolkien denomina a terra dos elfos de “Perilous Realm” para estabelecer uma ligação com a tradição cavaleiresca medieval, como Chrétien de Troyes na França (séc. XII) ou Thomas, o Trovador na Escócia (séc. XIII), que retratam as aventuras dos homens nas terras cheias de perigo nas quais habitam as fadas. Vejamos a identificação filológica que nos é apresentada como origem deste termo.
Fada, como um substantivo mais ou menos equivalente a elfo, é uma palavra relativamente moderna, que mal chega a ser usada até o período Tudor. A primeira citação no Oxford Dictionary (a única antes de 1450) é significativa. É tirada do poeta Gower: “as he were a faierie” [como se ele fosse uma fada]. Mas isso Gower não disse. Ele escreveu “as he were of faierie” [como se ele tivesse vindo de Feéria]. Gower estava descrevendo um jovem galante que busca enfeitiçar os corações das donzelas na igreja (TOLKIEN, 2020, p. 21).
O primeiro aspecto a ser ressaltado é a palavra fada colocada como equivalente a elfo, sendo citada no poema Confessio Amantis, de John Gower (séc. XIV). Em seguida, é importante notarmos que ela não faz referência a uma pessoa, mas a um lugar. Esse é o ponto de partida de Tolkien para investigar esse Reino, cuja definição, propositalmente imprecisa, é posta como metáfora de lugar.
Segundo a Poética de Aristóteles, “a metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra” (ARISTÓTELES, 1457b), sendo que Tolkien identifica Feéria com o nome “reino”, isto é, um lugar, como um espaço físico delimitado por fronteiras ou ponto geográfico. Contudo, esse transporte do nome “lugar” para referir-se a essa realidade não é próprio ou literal, pois é o autor de O Senhor dos Anéis que nos afirma que esta não pode ser definida, sendo o seu objetivo apenas escrever alguns vislumbres de uma visão imperfeita (TOLKIEN, 2020, p. 24) sobre o tema. Assim, é possível perceber novamente essa metáfora em outro momento do ensaio, no qual Feéria é reapresentada no contexto das estórias de fadas conforme encontradas nas tradições populares e orais da Europa.
... estórias de fadas não são, no uso normal em inglês, estórias sobre fadas ou elfos, mas estórias sobre Feéria, o reino ou estado no qual as fadas têm seu ser. Feéria contém muitas coisas além de elfos e fadas e além de anões, bruxas, trols, gigantes ou dragões. Ela abriga os mares, o sol, a lua, o céu, a terra e todas as coisas que estão nela: arvores e pássaros, água e pedra, vinho e pão e nós mesmos, homens mortais, quando estamos encantados (TOLKIEN, 2020, p. 23).
Assim, as narrativas coletadas pela antropologia, pela filologia comparada ou pela literatura não tratam, enquanto objeto próprio de pesquisa, de relatos sobre personagens fadas ou elfos, mas sobre um lugar, entendido nesta perspectiva metafórica, que, em termos mais conceituais, Tolkien apresenta como o “reino ou estado nas quais as fadas têm o seu ser”.
Ora, aqui encontramos a primeira referência à essa interface com a filosofia e que nos serve como ponto de partida para minha proposta de interpretação. Tolkien está transportando o nome “reino” para se referir ao quê? Feéria é uma metáfora do quê? O que significa, afinal, “ter o ser”?
Essa é uma expressão muito comum na filosofia realista, entendida grosso modo como a tradição platônica e aristotélica que se estende até às formulações cristãs medievais como em Agostinho e Tomás de Aquino. É o que denominamos Ontologia, o estudo do Ser, que, trocando em miúdos, refere-se às investigações sobre a essência, natureza ou princípios das coisas, e se alinha com o ramo desta tradição conhecido como metafísica, o estudo dos princípios e leis mais fundamentais, que regem toda a realidade (BRAGUE, 2013, pp. 36-51), (REALE, 2014, pp. 67-84).
A escolha dessa hermenêutica se justifica pelo contexto histórico do autor. Nascido em fins do século XIX e tendo sua formação católica no ambiente inglês marcado pela renovação filosófica da tradição realista. Essa recuperação filosófica é expressa pela Igreja Católica Apostólica Romana em geral pela exortação do tomismo feita a partir de Leão XIII, e nesta mesma Igreja Católica na Inglaterra em particular por meio do resgate da patrística realizada pelo apostolado do Cardeal John Henry Newman.
Nesse sentido, podemos encontrar, em uma alusão ao método filológico de arqueologia das palavras, o uso da metáfora de lugar na discussão sobre Ontologia e Metafísica em um dos textos fundantes da tradição realista, A República de Platão.
- Podes, portanto, dizer que é o Sol, que eu considero filho do bem, que o bem gerou à sua semelhança, o qual bem é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e ao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo visível em relação à visão e ao visível. (PLATÃO, 508b-c).
Esse breve excerto, extraído do Livro VI, faz referência à célebre divisão da realidade feita por Platão, entre o mundo dos sentidos e mundo das ideias. De maneira resumida, aquilo que captamos por nossos cinco sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato) é apenas uma parcela do Real (do Ser), inclusive sendo a mais frágil porque mutável e inconstante. A realidade mais perene e substancial estaria em uma outra dimensão da existência, aludida como mundo inteligível, cujo acesso a nós se daria apenas por nossa inteligência, que captaria, por meio do exercício dialético, as essências, formas ou ideias que fundariam o ser das imagens que teríamos no mundo dos sentidos.
Ao retomarmos Feéria, como identificar esse “reino ou estado no qual as fadas têm o seu ser”? As fadas e elfos são parte do mundo dos sentidos ou do mundo das ideias? Para avançar nesta investigação, voltemos ao ensaio.
A definição de uma estória de fadas — o que é, ou o que deveria ser — não depende, então, de qualquer definição ou relato histórico sobre elfos ou fadas, mas da natureza de Feéria: o próprio Reino Perigoso e o ar que sopra naquele país... Para o momento direi apenas isto: uma “estória de fadas” é aquela que aborda ou usa Feéria, qualquer que possa ser seu próprio propósito central: sátira, aventura, moralidade, fantasia (TOLKIEN, 2020, p. 24).
Aqui nos parece que Feéria é um reino do mundo das ideias, pois Tolkien afirma que o que importa é sua natureza, e não apenas os registros históricos detectados no mundo dos sentidos. Contudo, a última palavra desta citação, “fantasia”, nos encaminha para um rumo que pode aprofundar essa compreensão. Assim, recorramos a outro grande expoente da tradição realista, Aristóteles, em seu estudo sobre a alma humana, De Anima.
Pois a imaginação é algo diverso tanto da percepção sensível como do raciocínio; mas a imaginação não ocorre sem percepção sensível e tampouco sem a imaginação ocorrem suposições. É evidente que a imaginação não é pensamento e suposição. Pois essa afecção depende de nós e do nosso querer (pois é possível que produzamos algo diante dos nossos olhos, tal como aqueles que, apoiando-se na memória, produzem imagens), e ter opinião não depende somente de nós, pois há necessidade de que ela seja falsa ou verdadeira (ARISTÓTELES, 427b16-b23).
Primeiro, Aristóteles nos lembra que a palavra fantasia é oriunda do grego, que pode ser traduzida literalmente como imaginação. Segundo, que a imaginação (phantasia) é relacionada com a memória, ou seja, nossa capacidade de produzir imagens em nossa alma, seja para nos recordar de algo que não está mais sob os nossos sentidos, seja para elaborarmos nossos raciocínios e pensamentos, a partir dos dados que captamos no mundo dos sentidos. Terceiro, notem que a expressão aristotélica faz referência à produção, ou seja, algo feito pela nossa alma, que não está naturalmente presente nem no mundo dos sentidos e nem no mundo das ideias, ou seja, é algo novo, produzido pelo homem.
Não cabe aqui entrar nas diferenças filosóficas entre Platão e Aristóteles. Nosso objetivo é interpretar a realidade de Feéria em Tolkien, que assumidamente está trabalhando em chave metafórica – um vislumbre imperfeito - e, por isso, muitas vezes passeia sem maiores dificuldades e rigores filosóficos entre os dois autores gregos.
Isso posto, notemos que para Aristóteles a imaginação ocupa um lugar intermediário entre a percepção dos sentidos e a abstração das formas, essências ou ideias. Ora, seria possível transpor metaforicamente essa intermediação entre sentidos e ideias na alma humana para a terra média entre o mundo dos sentidos e o mundo das ideias. Essa interpretação possibilita entender o que Tolkien quer dizer com “o reino ou estado onde as fadas têm o seu ser”. Para reforçar minha tese, voltemos ao De Anima de Aristóteles.
... a imaginação será o movimento que ocorre pela atividade da percepção sensível. Já que a visão é, por excelência, percepção sensível, também o nome “imaginação” (phantasia) deriva da palavra “luz” (phaos), porque sem luz não há o ato de ver. E porque perduram e são semelhantes às percepções sensíveis, os animais fazem muitas coisas de acordo com elas: alguns, como as bestas, por não terem intelecto; outros, como os homens, por terem o intelecto algumas vezes obscurecido pela doença ou pelo sono.” (ARISTÓTELES, 428b30-429).
A imaginação (phantasia) começa com a preservação das imagens captadas pelos sentidos na memória, que as reproduz na mente quando estas não estão mais presentes aos olhos. Tais imagens continuam na alma mesmo quando o que que foi percebido não está mais sob à vista, orientando ações e pensamentos. É por isso que Aristóteles liga etimologicamente fantasia com a luz (phaos), pois a imaginação ilumina a alma, resgatando as imagens na memória, quando os olhos não podem mais ver as coisas. É possível trazer a conexão entre o Sol de Platão como filho do Bem, pois ambos emitem a luz que permite ao homem ter acesso às coisas, seja para a visão no mundo dos sentidos, seja a inteligência no mundo das ideias.
Dessa forma, Tolkien nos enfatiza que “A Fantasia, o ato de criar ou vislumbrar Outros-mundos, era o coração do desejo de Feéria” (TOLKIEN, 2020, p. 51), isto é, esse processo de elaboração de imagens, intencionalmente elaborado de forma racional, produz esse mundo da virtualidade, da possibilidade que, em chave artística, estabelece esses “Outros-mundos” como produto da técnica e da linguagem para fins contemplativos.
Retornando à Poética, Aristóteles também salienta que, para empregar metáforas eficazmente, é necessário perceber as semelhanças entre coisas, nomes e conceitos que não podem ser compreendidos apenas através de outras palavras, ou seja, devem ser entendidas por meio de sua existência fora da linguagem. Isso implica que um poeta, ao criar metáforas de maneira hábil, deve possuir a capacidade de apreensão correta da realidade das coisas por meio da contemplação (theorein), ou seja, “bem expressar-se em metáforas é bem apreender a semelhança” (ARISTÓTELES, 1459a5-10).
Depois dessa identificação de Feéria como essa dimensão intermediária da realidade ligada à imaginação, que embora seja uma abstração e, por isso, próxima ao mundo das ideias, é derivada objetivamente do mundo dos sentidos, vejamos como essa especificidade da imaginação enquanto produtora de seres nos ajuda a entender melhor esse mundo dos elfos.
A mente humana, agraciada com os poderes da generalização e da abstração, vê não apenas grama-verde, discriminando-a de outras coisas (e achando-a bela de contemplar), mas vê que é verde bem como é grama. Mas quão poderosa, quão estimulante para a própria faculdade que a produziu, foi a invenção do adjetivo; nenhum feitiço ou encantamento em Feéria é mais potente. E isso não é surpreendente: tais encantamentos poderiam, de fato, ser considerados apenas outra visão dos adjetivos, uma classe de palavras numa gramática mítica. A mente que pensou em leve, pesado, cinza, amarelo, parado, veloz também concebeu a magia que tornaria as coisas pesadas leves e capazes de voar, transformaria chumbo cinza em ouro amarelo, e a pedra parada, em água veloz. Se podia fazer uma coisa, podia fazer a outra: inevitavelmente fez ambas (TOLKIEN, 2020, p. 34-35).
O processo produtivo da mente, segundo Tolkien, resgata a elaboração aristotélica da 1. generalização, 2. abstração, 3. discriminação e 4. contemplação, ou seja, 1. a etapa de observação dos seres individuais e sua consequente unificação em uma imagem genérica preservada na memória; 2. a extração (abstração) dessa imagem genérica da forma, essência ou ideia universal que identifica esse ser como unidade que unifica os indivíduos da mesma espécie; 3. a discriminação entre os elementos essenciais ou substanciais do ser e suas características variáveis ou acidentais e 4. a apreciação estética e intelectual da realidade, ou seja, a contemplação.
Essa dinâmica aristotélica do conhecimento aludida por Tolkien é seguida pela metáfora da magia, encantamento ou feitiço da linguagem, especificamente pela importância dos adjetivos das coisas, ou seja, de suas qualidades. De fato, Feéria tem como a característica mais poderosa a elaboração da linguagem em uma gramática mítica, ou seja, maravilhosa e fantástica.
Quando conseguimos abstrair o verde da grama, o azul do céu e o vermelho do sangue, temos já um poder encantatório — em certo plano; e o desejo de empunhar esse poder no mundo externo às nossas mentes desperta. Não se segue daí que usaremos esse poder bem em qualquer plano. Podemos lançar um verde mortal sobre o rosto de um homem e produzir o horror; podemos fazer a rara e terrível lua azul brilhar; ou podemos fazer com que bosques vicejem com folhas prateadas ou que carneiros usem velos de ouro e colocar fogo quente na barriga da serpente fria. Mas em tal “fantasia”, como é chamada, nova forma é criada; Feéria começa; o Homem torna-se um subcriador (TOLKIEN, 2020, p. 35).
Com efeito, refinando a metáfora da magia, encantamento ou feitiço, podemos afirmar que Feéria é esse mundo da imaginação concretizado ou corporificado pela linguagem dos homens. Assim, o acesso que temos a Feéria é, por um lado, pelas estórias de fadas historicamente constituídas pelos homens, sejam por textos ou narrativas orais e, por outro lado, pela infinidade das possibilidades da gramática mítica da linguagem como matriz fecunda de novas combinações de qualidades, formas e adjetivos que permitam a feitura de novas obras literárias de fantasia, cuja finalidade e sentido é justamente a contemplação da realidade a partir de um olhar oriundo de um encantamento derivado da arte poética da linguagem. De fato, o exercício contemplativo das maravilhas é um dos fundamentos da tradição realista, que une o filósofo e o amante de mitos (BERTI, 2010, pp. 10-16).
Ao retomarmos o De Anima, percebemos que esse procedimento racional da técnica da linguagem como virtude para produzir arte por meio da fantasia se funda na parte da alma que a Aristóteles identifica como o intelecto que produz todas as coisas, posteriormente nomeado como intelecto agente. Essa dimensão da razão produtiva (poietiké) se aproxima da tradução de poética, mas se refere igualmente aos elementos técnicos e instrumentais quanto a produções cuja finalidade é apenas contemplativa, tais como o que posteriormente será definido como artes do belo. Nesse sentido, tanto o artesão que faz a cadeira quanto o artista que esculpe a estátua usam sua razão produtiva como elemento criativo.
E assim, tal como em toda a natureza há, por um lado, algo que é matéria para cada gênero (e isso é o que é em potência todas as coisas) e, por outro, algo diverso que é a causa e fator produtivo, por produzir tudo, como a técnica em relação à matéria que modifica, é necessário que também na alma ocorram tais diferenças. E tal é o intelecto, de um lado, por tornar-se todas as coisas e, de outro, por produzir todas as coisas, com o uma certa disposição, por exemplo, como a luz. Pois de certo modo a luz faz de cores em potência cores em atividade. E este intelecto é separado, impassível e sem mistura, sendo por substância atividade (ARISTÓTELES, 430a10).
Aproximando-se dessa concepção antiga, Tolkien explora o processo de criação dos mitos, fazendo uso dos conceitos de generalização, abstração e discriminação, que são processos mentais fundamentais na busca pelo entendimento da realidade. Seguindo Aristóteles, podemos afirmar que apreendemos as ideias universais, as formas essenciais das coisas, através da percepção dos princípios constitutivos presentes nos indivíduos concretos, ao separar intelectualmente essa forma dos objetos percebidos pelos sentidos.
Essa operação mental nos permite formar conceitos universais, generalizando características particulares para todos os membros de uma determinada categoria. Conforme verificamos em De Anima, essa atividade da mente humana é mais tarde reconhecida na hermenêutica medieval como o "intelecto agente" (nous poietikos ou intelectus agens), que é responsável por estruturar a transição das potencialidades inerentes aos objetos para sua compreensão efetiva pelo sujeito conhecedor. Assim como o intelecto agente generaliza e abstrai as formas universais a partir da percepção dos objetos materiais individuais, ele também desempenha um papel fundamental na criação de formas fantásticas, a arte enquanto técnica, que compõem o mundo de Feéria. Isso ocorre através da recombinação dos elementos encontrados no mundo dos sentidos.
O poder mental da criação de imagens é uma coisa, ou aspecto; e deveria apropriadamente ser chamado de Imaginação. A percepção da imagem, a compreensão de suas implicações e o controle, que são necessários para uma expressão bem-sucedida, podem variar em vivacidade e força, mas isso é uma diferença de grau na Imaginação, não uma diferença de tipo. A realização da expressão, que confere (ou parece conferir) “a consistência interna da realidade”, é, de fato, outra coisa, ou aspecto, que precisa de outro nome: Arte, o liame operativo entre a Imaginação e o resultado final, a Subcriação. Para o meu propósito presente, eu preciso de uma palavra que abrace tanto a Arte Subcriativa em si mesma quanto uma qualidade de estranheza e assombro na Expressão, derivada da Imagem: uma qualidade essencial à estória de fadas (TOLKIEN, 2020, p. 56-57).
Assim, Tolkien não adota o conceito de fantasia de Aristóteles acriticamente. Ele apresenta seu próprio conceito, que dialoga com as ideias aristotélicas, mas que está em busca de uma originalidade teórica. Para esclarecer essa perspectiva hermenêutica, dois pontos são fundamentais na definição tolkieniana. Primeiro, o conceito de formação de imagens, que é similar à noção aristotélica de fantasia envolvendo a alma sensível, seja em animais irracionais ou em humanos. Em seguida, a técnica, ou arte, da expressão linguística em si, a arte literária de organizar substantivos, adjetivos e formas (sub)criadas.
Dessa forma, a Magia ou encantamento como técnica ou arte é uma metáfora frequentemente usada por Tolkien no ensaio para descrever esse poder da linguagem de alcançar o coração do homem. Para que tal encantamento seja eficaz, a arte poética deve constituir uma subcriação competente. Por isso, o conceito de fantasia para Tolkien transcende a mera imaginação da alma sensorial e vai além da abstração conceitual análoga ao mundo das Ideias. Em vez disso, envolve a criação de imagens com base em experiências sensoriais e, por meio da linguagem, (sub)cria formas que são essencialmente estranhas ao mundo dos sentidos.
Por outro lado, a ênfase nessas operações mentais de generalização, abstração e discriminação sublinha a necessidade de apreensão da realidade do mundo para além da mente, independente da linguagem, que está intrinsecamente ligada ao referente perceptível pelos sentidos. No entanto, Tolkien destaca que a mente encarnada, a linguagem e as estórias emergem simultaneamente no desenvolvimento humano (TOLKIEN, 2020, p. 34).
Por isso, a mente encarnada percebe que o mundo existe independentemente dela, mas só pode alcançar essa percepção por meio da linguagem, que, de forma metafórica, (sub)cria, como que por feitiço, o mundo percebido de acordo com sua própria visão. Nesse jogo entre mente, linguagem e realidade, na recombinação de substâncias e acidentes, a capacidade de gerar composições inéditas dos elementos da realidade na mente, por meio da linguagem, é a origem das estórias de fadas, tornando-se assim o meio pelo qual o homem acessa Feéria.
Portanto, a criação do adjetivo como expressão das três operações de generalização, abstração e discriminação reflete tanto a capacidade humana de distinguir substância de acidentes quanto a habilidade de recombinação imaginativa desses elementos. O uso repetido das palavras "spell", "enchantment" e "glamour" no texto original de Tolkien (2014, p.18, 29, 34, 41, 48, 52, 53, 64) para descrever a magia de Feéria reforça essa interação entre o concreto e o abstrato na linguagem fantástica, destacando seu “poder encantatório” (SHIPPEY, 1992, p. 46-50). Estas expressões possuem uma interconexão histórica, uma vez que a transposição do inglês antigo para o grego de "evangelion", significando "boa notícia", resultava em "gód spell", denotando "a boa estória", posteriormente consolidada como "Evangelho" (gospel). O termo "Spell" manteve-se com a conotação de "uma narrativa, algo proferido em estilo formal", evoluindo progressivamente para "uma fórmula de poder", adquirindo assim uma conotação de encantamento mágico. Em suas palavras “pouco é de se admirar que spell, “feitiço”, signifique tanto uma estória contada quanto uma fórmula de poder sobre homens viventes” (TOLKIEN, 2020, p. 42). Essa palavra, spell, encapsula significativamente a essência do que Tolkien almejava comunicar através do conceito de "fantasia": algo excecionalmente potente (feitiço mágico), com uma natureza literária (uma narrativa) e, fundamentalmente, verdadeiro, tal como o Evangelho.
É justamente por essa operação “mágica” que Tolkien enfatiza que Feéria começa quando uma qualidade (adjetivo) é retirada de um objeto extramental e é recombinada em uma realidade imaginária e fantástica, unindo diversas características por meio da mente e materializando-se na linguagem (TOLKIEN, 2020, p. 35). Em resumo, o que inaugura Feéria é a criação de uma nova forma que está intrinsecamente ligada às qualidades objetivas dos objetos extramentais percebidos pelo artista, ao mesmo tempo em que representa uma contribuição do homem, o subcriador, à Criação e ao mundo primário, a obra do único Criador verdadeiro.
A partir desta perspectiva, Tolkien se direciona a uma reflexão que segue para a filosofia cristã a partir das discussões medievais de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, trazendo conclusões que enfatizam a importância do elemento analógico não somente da mente humana, mas igualmente da estrutura da realidade percebida.
Retornemos à República para evidenciarmos o propósito da Terra das Fadas. No trecho a seguir, Sócrates reforça sua crítica aos poetas e à sua presunção em escrever sobre as coisas que não conhecem, especificamente sobre a natureza dos heróis, do mundo e dos deuses. Contudo, nesta parte final d’A República, o filósofo apresenta uma alternativa à expulsão dos poetas, abrindo uma porta ao diálogo destes com os filósofos.
— Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia. Acrescentemos ainda, para ela não nos acusar de uma tal ou qual dureza e rusticidade, que é antigo o diferendo a filosofia e a poesia.... Mesmo assim, diga-se que, se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente numa cidade bem governada, a receberemos com gosto, pois temos consciência do encantamento que sobre nós exerce; mas seria impiedade trair o que julgamos ser verdadeiro. Ou, não te sentes também seduzido pela poesia, meu amigo, sobretudo quando a contemplas através de Homero? (PLATÃO, 607b-c)
- Concederemos certamente aos seus defensores, que não foram poetas, mas forem amadores de poesia, que falem em prosa, em sua defesa, mostrando como é não é só agradável, como útil, para os Estados e a vida humana. E escutá-lo-emos favoravelmente, porquanto só teremos vantagem, se se vir que ela é não só agradável, como também útil (PLATÃO, 607c-d).
Para além do mesmo uso tolkieniano da metáfora do encantamento para se referir à linguagem poética e da ênfase da soberania da filosofia sobre a poesia, Platão oferece uma proposta de busca comum na defesa da pertinência dos produtores de mitos em sua cidade. Nesse sentido, é possível conceber a finalidade teórica da Feéria tolkieniana enquanto terra média entre o mundo dos sentidos e o das ideias como uma resposta a Platão. Para compreendermos melhor essa perspectiva, é preciso avançar temporalmente na tradição realista e adentrarmos na Idade Média.
Na Suma Teológica (ST, I parte, questão 15, art. 3), São Tomás de Aquino argumenta que Deus possui conhecimento virtual das coisas que não existem concretamente, considerando-as apenas como razões formais. Em outras palavras, Deus não conhece tais coisas virtuais da mesma forma que conhece os modelos essenciais (eidos) no mundo das ideias contido em Sua inteligência divina, nos quais as coisas materiais participam ontologicamente.
Platão afirmava as ideias como princípios do conhecimento das coisas e de sua geração. A ideia que se afirma haver na mente divina refere-se a uma e outra função. Como princípio formador das coisas, pode-se dizer que é modelo (exemplar); e ela se refere ao conhecimento prático. Como princípio de conhecimento, propriamente se diz razão (ratio); e pode até mesmo fazer parte da ciência especulativa. Por conseguinte, como modelo, a ideia se refere a tudo aquilo que Deus realiza em algum tempo; mas, como princípio de conhecimento, refere-se a todas as coisas conhecidas por Deus, mesmo quando não realizadas em nenhum tempo; e a todas as coisas conhecidas por Deus segundo sua razão própria, mesmo àquelas conhecidas de maneira especulativa (…) deve-se dizer que, das coisas que não existem, não existirão, nem existiram, Deus não tem conhecimento prático, a não ser virtualmente. Assim, a respeito dessas coisas não existe ideia em Deus no sentido de modelo, mas apenas no de razão (ST, I parte, questão 15, art 3).
Aproximando esta tese de Tomás de Aquino com as especulações de Sobre Estórias de Fadas, não é possível afirmar a realidade de Feéria de forma própria no sentido ontológico pleno, como é o caso dos anjos, dos seres humanos, dos animais e das árvores. No entanto, os elfos podem ser considerados existentes, em um sentido lógico, como entidades de razão, presentes virtualmente na mente divina e de forma independente em relação aos seres humanos.
Uma forma de compreender essa questão envolve a distinção estabelecida pela tradição realista entre "ente" (ens) e "ser" (esse). O termo "ente" é utilizado para se referir a coisas, objetos, indivíduos e até mesmo figuras imaginárias ou espirituais, no sentido de que essas realidades estão em um estado de existência na realidade, ou seja, elas são de uma maneira específica. Cada ente possui uma "essência" (essentia) (ST, I parte, questão 3, art. 08), o que significa que ele possui uma configuração básica que o torna um participante de uma espécie particular. No mundo material, essa configuração é formada pela relação entre a "Ideia-forma" (causa formal) e a "matéria" (causa material).
No entanto, o que realmente distingue um ente concreto existente na realidade primária de um ente meramente lógico, fictício ou de uma abstração universal é o conceito de "ato de ser" (actus essendi), conforme explicado na Suma Teológica (ST, I parte, questão 84, art. 5 e 7). São Tomás destaca a diferença fundamental entre essência e ser, enfatizando que um ente só alcança a sua plenitude quando a sua essência e o ato de ser se combinam.
O ato de ser é o atributo que permite que um ente esteja na realidade de maneira definitiva, tornando-se uma substância real e não apenas uma possibilidade formal. Essa unidade entre ato de ser e essência é o que confirma a existência substancial do ente, em oposição à mera existência como uma possibilidade abstrata. É importante ressaltar que a única realidade na qual a essência coincide perfeitamente com o ser é Deus, que é o Ser Subsistente em sentido próprio (Ipsum Esse Subsistens).
Nesse contexto, a essência pode ser compreendida de duas maneiras distintas: Primeiro como um modelo exemplar presente na mente divina, que serve como a fonte ontológica da existência, estando intrinsecamente ligada ao ato de ser e à participação dos indivíduos. É por meio dessa concepção que São Tomás associa a essência ao conhecimento prático, pois é por intermédio dela que Deus efetivamente cria os entes. Em segundo lugar, como um princípio de razão (ratio), ou seja, como uma concepção inteligível que não se materializa no ato de ser de forma substancial. Nesse caso, a essência é apenas uma idealização de um ente, não alcançando a plenitude do ser na realidade.
Aproximando a perspectiva apresentada com a Terra das Fadas de Tolkien, é possível inferir que Deus não possui conhecimento dos seres de Feéria de forma que os reconheça como substâncias materiais, pois eles existem apenas de maneira virtual. Da mesma forma, esses seres não são considerados modelos paradigmáticos no mundo das ideias, uma vez que não representam exemplares das realidades do mundo sensível. Portanto, os entes das fadas não possuem um ser (esse) propriamente dito; eles existem apenas como entes (ens) de razão (ratio), ou seja, como criações fictícias da mente humana. De forma diferente dos anjos, que possuem essência e ato de ser, mas não materialidade (FAITAIN, 2010, p. 23-27), os habitantes de Feéria não só carecem de materialidade, mas são apenas virtualidades, entes lógicos que não possuem o próprio ato de ser, cuja materialidade e atualização dependem e se restringem à linguagem do poeta subcriador que os descreve.
Consequentemente, embora tenham certa independência lógica em relação aos seres humanos, como indicam as várias ironias apresentadas pelo filólogo de Oxford em Sobre Estórias de Fadas (TOLKIEN, 2020, pp. 23, 61, 62, 75), pois residem de alguma forma na mente divina, os elfos não possuem o ato de ser (actus essendi) conferido por Deus. Portanto, para adquirirem existência real, os elfos dependem da linguagem humana, que os descreve nas estórias de fadas criadas pelos poetas subcriadores.
Com efeito, quando Tolkien (2020, p. 79) declara que Deus é o Senhor dos homens, anjos e elfos, está enfatizando a soberania divina não apenas sobre o mundo primário, mas também sobre os mundos secundários e as possibilidades artísticas de criação de mitos e universos (MCINTOSH, 2017, pp. 251-266). Em outras palavras, essa afirmação reforça a ideia de que a imaginação está subordinada às estruturas morais, metafísicas e teológicas da realidade, como concebidas pelo autor em sua concepção de unidade do Bem, Belo e Verdadeiro, ainda que sua originalidade seja preservada na elaboração de formas novas que possam resgatar a contemplação da realidade, por meio do encantamento que revigora o maravilhamento pela Criação.
A investigação documental deste artigo se fundamentou em um ensaio literário sobre as estórias de fadas, mas teve como abordagem teórica a filosofia e a teologia. Assim, o autor de Sobre Estórias de Fadas permite que essa interação conceitual seja consistente, uma vez que seu contexto histórico e sua trajetória pessoal autorizam tecer laços entre a fé católica de um intelectual inglês do século XX e uma teoria literária sobre fantasia que dialoga com a filosofia realista. Ademais, o fato de J. R. R. Tolkien ter escrito livros de fantasia que ultrapassaram o século XX, e são fonte de produções da cultura pop no século XXI, apenas reforça a relevância de suas especulações.
Ainda que não contenha uma sistematização filosófica em sentido rigoroso, o ensaio apresenta intuições, correlações e pressupostos implícitos que podem ser desvelados de maneira ordenada e sólida. Conforme demonstramos com a metáfora de Feéria, a hermenêutica pautada na tradição de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino esclarece de maneira razoável os parágrafos de Tolkien. Com efeito, ainda que uma elaboração definitiva não seja possível, podemos compreender como esses “vislumbres de uma visão imperfeita” nos indicam uma proposta de disposição intelectual.
Na verdade, a partir das premissas de Feéria, a questão da compreensão é muito mais uma atitude diante do conhecimento, uma forma de posicionar o olhar. A exigência dessa postura moral na leitura e na elaboração artística das estórias de fadas é a humildade diante da realidade primária, reconhecendo a soberania da Criação e, portanto, do Criador. Ao mesmo tempo, essa perspectiva admite a capacidade humana de contribuir artisticamente para o enriquecimento e o florescimento da obra divina, no exercício da fantasia enquanto subcriação de formas novas, com finalidades estéticas e especulativas. No fim, a proposta de Tolkien leva em consideração a natureza concomitantemente criativa e contemplativa da humanidade.
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