Etty hillesum: teopoética e testemunho

Etty Hillesum: theopoetics and testimony

Maria Clara Bingemer
Doutora em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma (PUG-Roma). Professora de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Contato: agape@puc-rio.br


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Resumo: A jovem judia holandesa Etty (Esther) Hillesum morreu aos 29 anos em Auschwitz e deixou apenas três diários e algumas cartas.  No entanto, sua voz ecoa sempre mais como um dos grandes testemunhos do século XX, sendo estudada em várias áreas do saber.   Neste texto procuramos relacionar sua mística com sua experiência literária, buscando afinidades suas com poetas como Rainer Maria Rilke.  Ao mesmo tempo, procuramos mostrar como nesta jovem escritora, pensadora e mística a corporeidade é inseparável da interioridade e da experiência espiritual.   Finalmente, tentamos caminhar para a conclusão de que a escrita de Etty Hillesum pertence ao gênero das melhores literaturas de testemunho do nosso tempo abrindo assim importantes caminhos para pensar. Compreender e transformar o futuro da humanidade. 

Palavras-chave: Etty Hillesum; literatura; corporeidade; experiência; Deus

Abstract: The young Dutch Jewish woman Etty (Esther) Hillesum died at the age of 29 in Auschwitz and left behind only three diaries and a few letters.  However, her voice echoes ever more strongly as one of the great testimonies of the 20th century and has been studied in various fields of knowledge.  In this text, we try to relate her mysticism to her literary experience, looking for her affinities with poets such as Rainer Maria Rilke.  At the same time, we try to show how in this young writer, thinker and mystic, corporeality is inseparable from interiority and spiritual experience.  Finally, we try to move towards the conclusion that Etty Hillesum's writing belongs to the genre of the best testimonial literature of our time, thus opening up important avenues for thinking, understanding and transforming the future of humanity.

Keywords: Etty Hillesum; literature; body; experience; God

Introdução

            Etty Hillesum foi uma judia holandesa que morreu muito jovem aos 29 anos, em Auschwitz. De extrema inteligência e profundidade, apesar de ser formada em direito e psicologia, dedicou-se muito à literatura, sobretudo russa e alemã. Com escritores e poetas Etty vai iniciar um processo de construção interior que impacta em sua própria escrita e a faz, posteriormente, em meio ao horror da perseguição aos judeus, assumir compromissos vitais e escrever uma teopoética testemunhal. Este texto toma alguns elementos dessa rica trajetória para perceber o fio condutor da mesma enquanto iniciação e pedagogia de uma estética impregnada da inspiração divina e de amor pelo povo e pela humanidade. 

1. Etty Hillesum: uma vocação literário-espiritual

A judia holandesa Etty Hillesum não é tão estudada no Brasil. Atualmente começa a tornar-se mais conhecida não só aqui na América Latina – sobretudo na Colômbia – como também em outros países do sul global. Por isso retomo aqui brevemente um perfil biográfico de Etty Hillesum. Isso se deve ao fato de até há pouco tempo atrás ser difícil encontrar seus escritos ou mesmo publicações sobre ela. Posteriormente apareceram trechos extraídos de seus diários e cartas. Finalmente hoje há edições de suas obras completas em vários idiomas[1]. E são igualmente cada vez mais abundantes os estudos sobre ela, seus escritos e pensamento[2]

Etty (Esther) Hillesum é uma jovem judia que viveu apenas 29 aos, sendo uma das vítimas da Solução Final nazista na câmara de gás do campo de Auschwitz, Polônia. Como tantos outros judeus europeus do primeiro quartel do século XX, Etty Hillesum nasceu em um país marcado pela cultura cristã – a Holanda – em 15 de janeiro de 1914 em Middelburg. Seu pai, Dr. Louis Hillesum, ensinava línguas clássicas. Sua mãe, nascida Rebecca Bernstein, era uma judia russa. Em 1924, a família mudou-se para Deventer, onde o Dr. Hillesum assumiu o lugar de diretor do Ginásio Municipal. 

Etty deixou a escola de seu pai em 1932. Obteve seu primeiro grau universitário em Direito, na Universidade de Amsterdam e a partir daí matriculou-se na faculdade de línguas eslavas. Posteriormente interessou-se e começou a estudar psicologia. Por esse tempo, a Segunda Guerra Mundial havia começado. 

Em Amsterdam, vivia e trabalhava como governanta em casa de Han Wegerif, um viúvo de 62 anos de idade, com o qual desenvolveu uma relação íntima.  Também dava aulas de russo. Era o idioma de sua mãe, que a jovem Etty dominava com maestria além de ler e refletir e escrever sobre os mais importantes autores (Dostoiévski, Tolstói etc) desse idioma com paixão e crescente dedicação[3].

Seu encontro com Julius Spier, discípulo de Jung e portador de uma fascinante e carismática personalidade marcou um novo capítulo em sua vida[4]. A jovem Etty se sentiu absolutamente seduzida por aquele homem e se tornou sua assistente, parceira intelectual e amante. Será ele que a introduzirá na oração, o que transformará sua vida. Os diários que dela nos restam, assim como algumas cartas, datam dos dois anos da relação com Spier, entre seus 27 e 29 anos.

Quando a perseguição aos judeus cresce, Etty assume um cargo de datilógrafa para o Conselho Judaico, que devia fazer a mediação entre Nazistas e Judeus. Estabelecido pelos primeiros, o Conselho foi formado com a ilusão por parte dos judeus perseguidos de que, por essa mediação e negociação, haveria a possibilidade de poupar alguns do pior dos destinos. No entanto, logo tornou-se uma arma na mão dos nazistas. 

Após somente duas semanas no Conselho, Etty decidiu voluntariamente ir para o campo de Westerbork, como assistente social. Foi algo que escolheu livremente, mesmo tendo a oportunidade de escapar, se assim o quisesse. Seus diários indicam que estava convencida de ser fiel a si mesma somente se assumisse o “destino de massa “de seu povo e se usasse sua energia para trazer vida às vidas dos outros; “ser um bálsamo para suas feridas” (ET, vol. II, p. 518; 548; 550).   

Chegou a Westerbork justamente no momento no qual as deportações para Auschwitz estavam começando. Para mais de cem mil judeus, o campo holandês de triagem era a última parada antes de Auschwitz-Bierkenau. Entre agosto de 1942 e setembro de 1943 Etty Hillesum – então com 28 anos – viveu em Westerbork e manteve seu diário, escrevendo cartas e cuidando dos doentes no hospital do campo. Durante este período, viajou com permissão oficial para Amsterdam aproximadamente umas doze vezes, levando cartas, assegurando o fornecimento de medicação, e trazendo mensagens. Sua saúde sempre frágil ressentia-se visivelmente do regime de restrição alimentar, e da proibição de usar transportes, devendo fazer longas caminhadas a pé. 

Etty foi deportada para Auschwitz com toda a sua família em agosto de 1943. Foi executada na câmara de gás em novembro de 1943.

2. A literatura na formação do pensamento e da espiritualidade

A literatura ao longo da vida de Etty e sobretudo nos últimos anos não foi apenas um interesse acadêmico de pesquisa ou um campo de conhecimento intelectual. Foi muito mais do que isso: foi essencial para a formação de seu estilo de vida e o que podemos chamar de sua mística, gerando nela uma linguagem teopoética que vai ser sua marca e seu legado para as gerações futuras. 

Em 1942 portanto já bem próxima do final de sua curta vida escreve em seus diários: 

Afinal de contas, o que tenho feito nos últimos anos em meu escritório não era apenas 'literatura' e 'erudição`”[5]. Então, eu estava em minha mesa e não sabia muito bem como chegar até a vida. (...) Era porque eu ainda não tinha ganhado vida dentro de mim. Eu consegui sentada nessa escrivaninha. Então fui arrastada para o centro do sofrimento humano (...) (...) E lá, de repente, experimentei o seguinte: comecei a ler esses tempos - e muito mais do que esses tempos - nos rostos das pessoas, a partir de milhares de gestos, de pequenas expressões, de histórias pessoais. Antes de aprender isso em mim, percebi que também podia lê-la nos outros (...). Aqui, entre os escritores, os poetas e as flores que povoam esta escrivaninha, eu amei muito a vida. E lá, entre as barracas cheias de seres humanos assustados e perseguidos, encontrei a confirmação do meu amor por esta vida. A vida nos barracões ventosos não contradizia a vida nessa sala protegida e segura (ET, vol. II, p. 924-925).

Etty aqui situa a presença da literatura e da escrita como elementos fundamentais que vão configurar não apenas sua vida interior, de oração, de empatia, de compaixão com as dolorosas situações em meio das quais se encontrará nas ruas e no campo de Westerbork. Mas igualmente sua vida de todos os dias, no espaço público e nas relações com outros. E descobrirá que ambas sintonizam e não se repelem. Entre os elementos dessa vida interior estarão “os escritores” que lê e a escrivaninha sobre a qual escreve. Etty Hillesum lê a Rilke e também a Dostoiévski (O idiota, Os irmãos Karamazov), Lermóntov, Hegel, Pushkin, Jung, Miguel Angelo e Leonardo; e mais tarde, a Biblia, Agostinho (cf. Llop, 2021, p. 43).

Etty Hillesum começa a escrever com método e constância a partir de sua relação com Spier. Assim vemos em seus diários como toma a resolução da escrita. Quatro dias depois de começar a escrever, ela diz que escrever é aquilo que ela acredita ser seu maior talento. Ao longo das páginas de seus diários, a prioridade será dada à expressão de seu estado de espírito, seu relacionamento com Spier e suas leituras. E ainda assim, cinco meses depois e para além de seus sentimentos e “sofrimentos subjetivos”, ela já está pensando em escrever a “crônica” do que viveu (cf. Llop, 2021, p. 117).

Escrever essa crônica significa construir a narrativa do que está acontecendo ao seu redor, que a interessa e a move apaixonadamente. Assim, são dois polos de atração que se complementam e não se conflitam: a atenção apaixonada por tudo o que diz respeito ao mundo e ao seu eu interior. 

Etty como todo escritor ou escritora, lutará com a escrita. Terá que aprender que não é fácil encontrar sua própria forma de expressão. Repete uma e outra vez que não consegue encontrar os termos certos, que sua paleta de palavras é pobre (cf. Llop, 2021, p. 117). Mas apesar das dificuldades a literatura e a escrita a atraem com paixão e vão se constituindo no eixo que vai assinalando por onde passa o sentido de sua vida. Enquanto outras jovens veem seu futuro com um marido e filhos, ela se vê “como uma mão que escreve” (ET, vol. I, 207 apud Llop, 2021, p. 117).

Mais adiante, escreve esta frase notável: “A relação entre a literatura e a vida. É aqui que devo encontrar meu caminho” (ET, vol. I, p. 271). E acrescenta em um pedaço de papel dirigido a si mesma: “Mas então você está usando a palavra “literário” no sentido de que ela é artificial e não natural. No entanto, minha motivação para fazer literatura a partir da vida é muito real e verdadeira. Não é: tornar a vida mais bela do que ela é, mas trato de cristalizá-la em uma determinada forma, uma imagem, um poema” (ET, vol. I, p. 271).

A necessidade de dar forma a seus sentimentos e experiências busca encontrar as palavras e imagens certas. Nos diários, as duas demandas se misturam: trata-se de dar forma à sua vida, estabelecer um único fio que lhe dê continuidade a fim de encontrar a forma certa para sua expressão. Etty amadurece através da literatura e da escrita e isso vai ser o eixo do seu processo espiritual e vital[6].

No contexto de seu amadurecimento que não pode ser concebido apenas cronologicamente, mas sim pela idade da alma[7], surge o desejo, vivenciado como um destino, de escrever: “Cada palavra nasce de um desejo de escrever” (ET, vol. I, p. 289). “Cada palavra nasce de uma necessidade interior, isto deve ser escrever e nada mais” (ET, vol. I, p. 333). É por isso que considera não poder fazer disso seu meio de vida, materialmente falando: viver de sua pena, pois a escrita seria então um produto artificial. Sem dúvida, ela havia lido muitas vezes essas palavras de Rilke em suas “Cartas del vivir”[8]:

Entre em seu interior. Investigue o motivo que o leva a escrever. Descubra se ele está enraizado profundamente em seu coração [...]. Escave... Aprofunde-se em si mesmo em busca de uma resposta profunda. Se você tiver que responder a essa pergunta séria com um forte e simples “Eu devo”, então construa sua vida de acordo com essa necessidade (...). Uma obra de arte é boa quando nasce da necessidade. Nesse modo de ser engendrada reside seu julgamento: não há outro. (ET, vol. I, p. 25).

Etty diz a si mesma que, até encontrar suas próprias palavras, usará as de Rilke. O poeta checo é certamente uma de suas maiores influências poéticas e literárias.  

3. A teopoética do corpo

A inspiração de Rilke aparece ao longo de todos os textos da jovem holandesa. Por essa razão faz essa afirmação de usar as palavras do poeta checo enquanto não encontrar as suas próprias. A influência do poeta faz-se sentir inclusive em repercussões corpóreas, precedida, é claro, pela influência de Spier. 

Spier lhe ensinará que “alma e corpo são o mesmo” (ET, vol. I, p. 25). Etty sentirá por ele uma atração irresistível e uma grande paixão. Spier vive com ela uma relação que inclui todas as dimensões inclusive a sexual. “S. é um mundo em si, sempre novo, sempre surpreendente, sempre diferente e empolgante” (ET, vol. I, p. 741). Gradualmente, no relacionamento de ambos, embora lentamente e com dificuldade, há uma passagem do físico para o espiritual, uma necessidade de “dominar” a vida sensual intensa para obter uma certa harmonia e paz entre o corpo e a alma. Ela diz: “Não há mais essa necessidade de satisfazer ‘coûte que coûte’ (em francês no original) o corpo; não há mais essa necessidade de satisfazer o corpo” (ET, vol. I, p. 526).

O relacionamento entre eles se torna cada vez mais simples, na medida na medida que se despoja de pretensões e se torna “natural”, “orgânico”. Antes a terapia de Spier incluía lutas corporais estando ambos nus, e ele relacionava isso à união corpo-alma. A atração de seu corpo grande e o magnetismo de sua boca atraíam Etty, fazendo com que ela experimentasse sentimentos contraditórios, difíceis de assimilar. Ela está consciente de que o ama e afirma - mais uma vez a metáfora orgânica - que “em seus galhos eu amadureço e me torno um ser humano adulto e autêntico. Todos os dias, um pouco mais a cada dia” (ET, vol. II, p. 524).

É Spier no entanto, também, quem a introduz na vida espiritual, de oração. Etty o designa como o “parteiro de minha alma” (ET, vol. II, p. 524)[9]. Ela se entrega a essa prática espiritual e logo descobrirá que o corpo tem um ritmo interno ao qual deve obedecer. Se não houver silêncio, não haverá audição da grande melodia divina. Novamente é Rilke quem a faz advertir essa realidade. O poeta checo diz que duas pessoas silenciosas (silêncio ativo que escuta, não o silêncio devido à ausência de palavras) já têm essa melodia comum, como um altar que arde com uma chama sagrada, mesmo que a partir do lado de fora o altar não seja visível e os gestos nele realizados sejam mal interpretados. Pois aquilo que é grande e está além das palavras dificilmente pode ser percebido ou compreendido pelas massas no cenário exterior (cf. RILKE, 1997, p. 19-20 apud LLOP, 2021, p. 24).

Da prática interior e espiritual de Hillesum vão brotar gestos e atitudes corporais que passarão a sua escrita: por exemplo, a compulsão por ajoelhar-se para a oração, que ela aproximará das intimidades da relação sexual. Ela mesma diz que sua história é a história de uma garota que aprendia a ajoelhar-se, aprendendo a rezar.[10] Ressaltamos que esta não é uma postura familiar de oração na tradição judaica.  O fato de que Etty não pode resistir ao impulso de adotar essa postura corporal a nosso ver diz muito sobre sua relação com Deus: íntima, amorosa e gratuitamente ensinada pelo próprio Deus.  Em suas próprias palavras: “A garota que não podia ajoelhar-se, mas aprendeu a fazê-lo no tapete áspero de fibra de coco em um banheiro desarrumado.  Essas coisas são frequentemente mais íntimas ainda que o sexo.  A história da garota que gradualmente aprendeu a ajoelhar-se é algo sobre o que eu adoraria escrever da maneira mais plena possível. “ [11]

. Podemos comparar sua experiência àquela de Simone Weil na capela românica de Santa Maria degli Angeli em Assis[12]. O diário de Etty narra uma e outra vez em muitas ocasiões sua gradual adoção da postura ajoelhada para a oração: no banheiro sobre um tapete de fibra de coco, num canto do quarto, junto à janela, caminhando pela rua, entre outros. E ela sugere que o ato de se ajoelhar é mais íntimo que as intimidades de sua vida sexual e amorosa. Essa postura é o sinal de sua entrega, seu consentimento ao mistério que vai se apoderando de sua pessoa irresistivelmente (cf. ET, vol. I, p. 242).

Quando se sente inspirada, ela pensa mesmo em escrever um romance com esse aprendizado no qual sua corporeidade entrava em sintonia fina e íntima com sua interioridade. Isso fazia parte de sua evolução, sendo para ela o mais íntimo dos gestos. Dito por ela mesma mais íntimo do que a sexualidade ou o amor, algo sobre o qual não se pode falar a menos que se seja um poeta, pois contém uma infinidade de nuances[13].

Esse ajoelhar-se é caracterizado por Rilke, - comentando sua visão em relação ao crente muçulmano, - como “um movimento natural de dentro de uma existência que passa três vezes ao dia pelo vento de Deus, desde que sejamos pelo menos assim: flexíveis” (RILKE, ano, p. 106 apud LLOP, 2021, p. 75). O vento do Espírito de Deus sopra e verga o corpo do orante como sinal de escuta atenta e reverente. Etty igualmente buscará os espaços de solidão e sentirá a necessidade de que seu corpo adote posturas que sintonizem com a espiritualidade que nasce nela na qual a expressão corpórea do ajoelhar-se é parte fundamental[14]

Etty Hillesum se identifica com essa postura corporal e a prevê como sendo essencial no futuro que para ela se avizinha e que ela adivinha que contornos terá. 

E quando a impetuosidade for muito grande e eu não souber mais como continuar, ainda terei as duas mãos juntas e meu joelho dobrado. Esse é um gesto que não foi transmitido a nós, judeus, de geração em geração. Eu tive que aprender com dificuldade. (...) Que história curiosa, a minha: a história da garota que não sabia se ajoelhar. Ou com uma variação: a da garota que aprendeu a rezar. Esse é meu gesto mais íntimo, mais íntimo do que aquele que tenho quando estou com um homem. (ET, vol. II, p 880)[15]. .

Essa integração entre corpo e alma que se fazem letra e escrita fazem novamente recordar a Rilke, quando este diz: “Pois da mesma forma que na alma se está com Deus em uma relação infinitamente imediata, assim também estou corporalmente com minha natureza” (RILKE, 1976, p. 94 apud LLOP, 2021, p. 72, nota 48).

4. Teopoética que é entrega e testemunho do amor

Uma das coisas que Etty foi descobrindo em sua nova vida foi o lugar do sofrimento na evolução da pessoa. O sofrimento é parte da vida e não assumi-lo e integra-lo para dentro do processo evolutivo como pessoa diminui e mutila essa pessoa como tal. O salvador, aquele que revela o novo dentro de uma situação de sofrimento e dor que aparentemente são insuportáveis não é um informador metafísico, mas alguém parecido à figura do Principe Michkin no livro O idiota de Dostoievsky (2014).

Esse personagem é alguém sem nenhuma importância que não é apoiado por ninguém de importância. A leitura de Etty Hillesum da obra dostoievskiana, com destaque para os Irmãos Karamazov e O Idiota vai configurando em sua pessoa a presença do sofrimento e a necessidade de integrá-lo como parte da vida e mais, como fonte de vida sobretudo para os outros. 

Diante do que começa a ver e viver no campo de triagem de Westerbork e a certeza com que começa a vislumbrar seu futuro destino e o de sua família vai crescendo em lucidez e serenidade, embora também em indignação ética diante de tudo que vê e presencia. Ela não mudou o mundo, nem fugiu dele, nem o salvou. Tampouco afirma qualquer esperança em um futuro para além da morte. Ela se encarrega daquilo que é terrestre, e se o terrestre nos esquece e abandona - para usar os versos de Rilke - “diga à terra silenciosa: eu escorrego. Eu deslizo. Diga à água veloz: eu sou” (Sonetos a Orfeo II, XXIX, 13-14 apud LLOP, 2021, p. 139).

Hans Krasa era um músico e compositor checo, discípulo de Alexander Zemlinsky que morreu em Auschwitz[16]. Em seu livro Los prisioneiros del paraíso, Xavier Guell põe em sua boca as seguintes palavras: 

Sempre acreditei que cada um de nós tem uma melodia própria que devemos não apenas ouvir, mas também aprender a interpretar porque nela está o segredo de nossa existência. A melodia é o segredo de nossa existência. É uma melodia serena e cálida, que concilia o pulso trágico que bate em cada ser humano e as forças ocultas da natureza. (GÜELL, 2017, p. 55)[17].

 Etty Hillesum vive essa integração sentindo que 

O mundo rola melodiosamente da mão de Deus ...não consegui tirar essas palavras da cabeça o dia todo...Eu também gostaria de rolar melodiosamente pela mão de Deus. Perceber essa melodia, entender seu significado, nos dá a satisfação de nos sentirmos parte de algo muito maior do que nós mesmos, algo que é concordado por uma cadência geral. (GÜELL, 2017, p. 55).

Etty sente essa melodia harmoniosa de seu interior emergir na medida em que se aprofunda na oração e na escrita: “Descobri que tenho minha própria escala interior e que uma melodia está emergindo, aquela para a qual eu tenho que dar toda a oportunidade e muito espaço, e para com a qual tenho que ser veraz” (ET, vol. I, p. 636)[18].

É isto que a levará a assumir o destino de seu povo – um destino de massa – e a desejar ser bálsamo e alimento para os que com ela conviviam no campo, destinados ao mesmo massacre que ela própria e sua família. Esse “destino de massa” era na verdade um massacre de massa de todo um povo e Etty o reconhece e o nomeia: “...diante de nossos olhos, um assassinato em massa...” (ET, vol. I, p. 976)[19].

 Diante desse “destino de massas”, neste assumir por parte dela o destino de seu povo, está o corolário de uma vida que atravessou os extremos dos impulsos caóticos que exigiam “forma” “para aquele “pedacinho de eternidade” de uma vida vivida tão intensamente; uma vida que é tão breve, mas que parece ser longa muitos anos (Cf. ET, vol. I, p. 676). Esse pedacinho de eternidade lhe é revelado quando ele pensa nos milhões de pessoas que se exauriram, que se esgotaram, que se exauriram, sofreram com o frio e o calor, adoeceram diante dela e que, apesar do absurdo de sua vida, não se cansaram. Encontrar o lugar delas em sua interioridade levará a formar um belo e significativo conjunto (Cf. ET, vol. I, p. 850).

Na medida em que sua estada no campo de triagem de Westerbork se torna cada vez mais contínua e ela vê de perto os preparativos para a partida do trem das terças-feiras, cresce a necessidade de fazer um relato, mesmo que fragmentado, sobre o que aconteceu. E isso, apesar do cansaço e do sofrimento, porque sente “a alegria do artista de perceber as coisas e transformá-las em seu trabalho” (SEMPRÚN, 2015, p. 141). Trata-se do “ponto de vista do artista” necessário para escrever. Como diz J. Semprún em seu livro quando explicita a necessidade do artifício para que uma história se torne arte. A história não pode se tornar arte, porque “a verdade essencial da experiência não é transmissível... Ou melhor, ela só é transmissível por meio da escrita literária” (SEMPRÚN, 2015, p. 141).

Então, a frágil caneta deve ser empunhada “como um martelo” para falar de uma história que nunca aconteceu e da qual ela seria apenas mais uma cronista. Mais. A escrita se tornou uma ferramenta vigorosa e elaborada de testemunho, o que indica que Etty também cresceu em consciência histórica. Sentia que enquanto sobrevivesse deveria ser para transmitir aos tempos vindouros a humanidade que nela preservada. A humanidade que ela preservou, isenta de ódio e atenta aos que sofrem, humanidade que é a parte indestrutível que nela cresceu. Assim, assumindo o destino de massa de seu povo, refletindo e escrevendo sobre essa opção, dará um passo em direção ao espaço público, quando vai mais além de si mesma e entrega o melhor de si aos outros, à humanidade. 

 A abertura para a esfera pública é, de acordo com H. Arendt manifestação do que os romanos chamavam de Humanitas: 

[...] Ela é adquirida apenas por aqueles que “aventuraram” sua vida e sua pessoa “na esfera pública”, durante a qual se arriscam a revelar algo que não é “subjetivo” e que não se pode conhecer nem controlar. Assim, a “aventura na esfera pública” na qual a Humanitas é adquirida torna-se um presente para a humanidade. (ARENDT, 2008, p. 33).

5. O testemunho de um coração pensante

Nos diários de Etty Hillesum se vê primeiramente o itinerário de uma jovem judia apaixonada por alguém que a ajuda e lhe permite pôr-se de pé sobre seus dois pés, e pronunciar o nome de Deus sem constrangimento. Este pronunciar se desenvolve no interior de um diálogo ininterrupto que cresce para tornar-se mais apaixonado e envolvente na vida da jovem holandesa, que se tornou “o coração pensante destas barracas... o coração pensante de todo o campo de concentração” (ET, vol. I, p. 824).

Nestas circunstâncias seu desejo cresce incessantemente com termos que nos fazem recordar escritos de místicos e santas bem conhecidas do Cristianismo. Não lhe basta apenas Westerbork. Westerbork é um microcosmo a partir do qual seu coração compassivo e seu desejo de doação atingem os limites do universo. Em 2 de outubro de 1942 Etty escreve: 

[...] Gostaria de estar em todos os campos através da Europa, gostaria de estar em todos os “fronts”, não desejo estar em segurança como se diz, quero ser estar com tudo isto, quero ser, em cada lugar, uma pequena parcela de fraternização com aqueles que chamamos inimigos. Quero compreender tudo que acontece, gostaria que todos aqueles que eu possa atingir – e eu sei que são numerosos – mas dá-me saúde, oh Deus – compreendam os eventos do mundo à minha maneira. (ET, vol. I, p. 866).

A judia Etty Hillesum, que escreve inúmeras vezes em seus diários e cartas a profissão de fé “nós judeus” não hesitará em usar termos que se podem identificar como cristãos e mesmo eucarísticos para expressar seus desejos no final de seu último diário, na data de 12 de outubro de 1942. Lendo-os nos perguntamos, sem estranhamento: mas não são eles igualmente patrimônio de toda a humanidade?: “Eu parti meu corpo como pão e o reparti... E por que não, eles estavam famintos e sentiam falta disso por tanto tempo...” (ET, vol. I, p. 886). E termina seu diário com as palavras: “Queria ser um bálsamo versado sobre tantas feridas” (ET, vol. I, p. 886). A partir daí só escreverá algumas cartas aos amigos que ficam para trás e se dedicará a derramar esse amor que lhe enche o peito sobre todos que estão sofrendo no campo e posteriormente no transporte para Auschwitz e no próprio campo de extermínio. E seu diálogo com Deus permanece intenso e constante. 

Este Deus diante de quem Etty Hillesum se ajoelha não é o Deus da teologia convencional, onipotente, onipresente, onisciente. Trata-se do Deus de Israel que não parece estar respondendo a seu povo esmagado e massacrado pela fúria nazista. Nas noites do campo, Etty era abordada por vários judeus ali confinados, jovens e mais velhos que se faziam essas perguntas sem resposta sobre Deus. São perguntas que permanecerão até o pós-guerra, quando Hans Jonas desafiará toda a teologia e a linguagem sobre Deus do Ocidente com seu profético texto: “Como falar de Deus depois de Auschwitz?” (cf. JONAS, 2016).

A Etty Hillesum lhe foi revelado no campo de Westerbork uma interior e inesperada resposta à pergunta do filósofo, resposta com a qual teólogos e pensadores continuam lutando até hoje. Em seu diário, no dia 11 de julho de 1942, ela escreve: “Deveríamos somente falar sobre as últimas e mais sérias coisas da vida quando as palavras brotam dentro de nós tão naturalmente como a água de uma fonte” (ET, vol. II, p. 774). As palavras com as quais ela se confrontou, lutou, que escreveu e que tanto buscou e amou virão em seu auxílio na aporia daquele momento em que o silencio da morte e do absurdo se abatia sobre seu povo. Foram palavras que brotaram em sua escrita como vida que jorra, abundante e límpida. 

“Vou apenas tentar ajudar a Deus da melhor maneira que possa e se eu conseguir fazer isso, então serei útil para outros também” (ET, vol. II, p. 774). Em algumas de suas mais inspiradas e inspiradoras orações, Etty promete então ajudar a Deus, cuidar de Deus, guardar o lugar dentro de si própria onde Deus habita. Deus é visto como aquele que não pode fazer nada sobre as circunstâncias e sofrimentos que ela vive, ou sobre o destino dos judeus. Deus não pode ajudá-la, então ela ajudará Deus. “...se Deus não pode ajudar-me... então eu terei que ajudar a Deus” (ET, vol. II, p. 774).

Etty sente em seu interior que Deus não é responsável diante de nós pelos eventos históricos. Nós somos responsáveis diante de Deus pela maneira segundo a qual cuidamos fielmente ou traímos o dom divino e sua presença dentro dele. O Santo de Israel, presente no coração de toda a criação e ativo na história deve ser protegido e cuidado nas profundezas da alma. Porque é frágil e não esmaga ninguém com sua onipotência. O mais significativo insight na trajetória de Etty diz respeito à vulnerabilidade da vida divina[20]. E, no entanto, esse Deus frágil se faz sentir sobre ela como amorosa proteção. Ela se sente em seus braços amorosos quanto mais as garras dos nazistas se fecham sobre seu futuro e seu destino: “Não me sinto sob as garras de ninguém, sinto-me somente nos braços de Deus” (ET, vol. II, p. 776).

“E se Deus cessa de ajudar-me, - ela diz – eu ajudarei a Deus”. Essa vulnerabilidade de um Deus que necessita ser ajudado, no entanto, único interlocutor em meio ao inferno em que vive é o pino da dobradiça que mantém juntas as várias ambiguidades e paradoxos da vida interrompida da jovem Etty que é, igualmente, um centro vital de ardente amor e força que dela jorravam como chamas. É ao mesmo tempo sua inspiração incessante de sentimentos e palavras de vida em um momento em que tudo à sua volta parece mergulhar nas profundezas da morte. 

Etty Hillesum recusou-se a permanecer detida na decepção e no desespero em relação a si própria e aos outros. Sua experiência de Deus não é um analgésico alienante. Pelo contrário, não hesita em cortar as ilusões pela raiz, e vê diretamente através do autoengano pelo qual os nazistas foram cegados pela loucura de um ditador e um sistema enlouquecidos. Sua mente lúcida e iluminada pela experiência espiritual vê com clareza que são os próprios nazistas os que se encontram presos pelas cercas de arame farpado. Não seus prisioneiros. E nesta circunstância tão dolorosa e negativa, vê com clareza o fato de que os alemães indubitavelmente planejam e estão em vias de executar o extermínio sistemático de seu povo. Mas sustenta que “se pudesse ser encontrado um só alemão decente, haveria razões de sobra para não odiá-los a todos...Apesar de todo o sofrimento e injustiça, eu não posso odiar outros” (ET, vol. II, p. 840).

Etty confia nesse Deus fraco e impotente, que sofre com a vítima em vez de aniquilar o carrasco. Sabe que Ele “é pouco capaz de modificar uma situação finalmente indissociável desta vida” ET vol II, p 780. Ela vai cada vez mais se deixando despojar pelo amor desse Deus. E para isso entende que deve deixar de lado tudo: as grandes palavras, as grandiloquentes atitudes. “É preciso tornar-se tão simples e tão mudo como o trigo que cresce ou a chuva que cai. É preciso contentar-se em ser” (ET, vol. II, p. 770).

Conclusão: cronista e testemunha para o futuro

A professora e escritora Rachel Brenner faz uma bela reflexão sobre a integração dessas duas dimensões da personalidade de Etty Hillesum: a cabeça (pensamento) e o coração (sentimento e sofrimento) (cf. BRENNER, 2010, p. 237). Esses dois níveis, de acordo com a autora, evocam “a ética de identificação com as vítimas sofredoras, enquanto o outro busca a estética da representação de seu sofrimento na arte. Ela cita Hillesum: “Minha cabeça é a oficina, na qual todas as coisas do mundo devem ser pensadas até que se tornem claras. E meu coração é a fornalha ardente na qual tudo deve ser sentido e sofrido intensamente” (ET, vol. I, p. 142).

Os olhos grandes e escuros de Etty Hillesum se fecharam em Auschwitz em novembro de 1943. Mas suas palavras escritas e seu testemunho permanecem até hoje. A escrita de Etty era seu modo de sobreviver com dignidade ao horror dos momentos que teve que viver e também a maneira de dizer às novas gerações a horrível tragédia do holocausto nazista. Escrever era seu caminho de resistência e o meio para manter sua dignidade (BRENNER, 2010, p. 237)[21]. E suas páginas estão entre as obras mais profundas já registradas sobre essa época de escuridão, banalidade e maldade em ação: o genocídio nazista na Europa. Em 27 de julho de 1942, quando, já quando, já certa do destino que a aguardava, começou a arrumar sua mochila para levar ao Campo de Westerbork, ela escrevia: “E, no entanto, deve haver alguém para viver tudo isso e testemunhar o fato de que Deus viveu, mesmo naqueles tempos. E por que eu não deveria ser essa testemunha?” (ET, vol. II, p. 808).

O testemunho de Etty Hillesum ressoa hoje, cada vez mais eloquente aos nossos ouvidos. Sua teopoética de formação e transformação na arte da escrita e na espiritualidade se torna agora teopoética testemunhal, não apenas para um segmento de pessoas ou um povo, mas para toda a humanidade. A literatura foi sua pedagoga no aprendizado de encontrar no fundo de si própria a si mesma. E igualmente na arte de encontrar essa alteridade que ela não hesita em chamar de Deus e mesmo de “Meu Deus” e que se torna, ao final de seus dias, seu único interlocutor. Sua vida e sua escrita ensinam hoje, em tempos bem tenebrosos que vivemos, a cuidar do Deus a ser descoberto dentro de cada pessoa, a enfrentar os desafios da realidade e a suportar a dor dos outros ainda que em ombros frágeis para “ajudar Deus” e ser. 

Para isso se serve das imagens e metáforas da criação na natureza: “É preciso tornar-se tão simples e tão mudo como o trigo que cresce ou a chuva que cai. É preciso contentar-se em ser” (ET, vol. II, p. 772). Ou ainda, diretamente do Evangelho que também conta em suas leituras: “Gostaria de ser como os lírios do campo. Alguém que conseguiu ler essa era corretamente certamente teria aprendido exatamente isso: ser como um lírio do campo” (ET, vol. II, p. 526).

Referências

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SMELIK, Klaas A.D.; COETSIER, Meins G.S. (Editors). Etty Hillesum: the Complete Works 1941-1943. Bilingual, Annotated and Unabridged - Publication in Two Volumes (English and Dutch Edition).‎ Maastricht: Shaker Publishing B.V, 2014.

WEIL, Simone. Attente de Dieu, Paris, Fayard, 1966.

 

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 Notas

[1] Em português, editado no Brasil, está: Uma vida interrompida. Diários de Etty Hillesum (1941-1943), RJ, Record, 1998. Em Portugal, foram publicados seus escritos completos: Etty Hillesum, Diários (1941-1943). Lisboa: Assírio e Alvim, 2020; Etty Hillesum, Cartas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2020. Existem edições críticas de seus escritos em inglês e holandês: Klaas A.D. Smelik and Meins G.S. Coetsier Etty Hillesum: the Complete Works 1941-1943: Bilingual, Annotated and Unabridged - Publication in Two Volumes (English and Dutch Edition) ‎ Shaker Publishing B.V January 7, 2014. Para citar seus escritos aqui utilizaremos esta última edição, que citaremos como ET assinalando volume e página da citação. Algumas vezes, para maior clareza do leitor, e como fazemos aqui tradução livre do inglês, uma vez que não dispomos da edição portuguesa e a brasileira não traz os textos completos, reproduziremos no pé de página a citação em inglês. 

[2] V. tb. Uma bibliografia completa e anotada em inglês: Newsome, James M., “Esther “Etty” Hillesum: An Annotated and Summarized Bibliography of Works in English through 2010”(2010). Library Staff Publications. 11.https://sophia.stkate.edu/lib/11. V. igualmente seus escritos que foram publicados em francês, espanhol e italiano. Em todas essas línguas estão publicadas suas obras completas e inumeráveis livros, artigos , teses doutorais e ensaios sobre sua pessoa e sua obra. 

[3] V por exemplo em Michael Davide Semeraro, Etty Hillesukm. El encuentro con Dios de una mujer judía durante la persecución nazi, Madrid, Rialp, 2015 (ed. Digital), p. 35: “El orden jerárquico de mi vida ha cambiado un poco. Antes prefería comenzar en ayunas con Dostoievski o con Hegel y, a ratos perdidos, cuando estaba nerviosa, hasta me dedicaba a zurcir un calcetín, si no había otra cosa mejor que hacer. Ahora empiezo por el calcetín, en el sentido más literal de la palabra, y luego, poco a poco, pasando a través de las demás ocupaciones cotidianas, subo hasta la cima, en donde encuentro a los poetas y los pensadores”. Diario, p. 57. Ou na página 62: “quizás me identifico en exceso con lo que leo y estudio: Dostoievski todavía me destruye, de un modo u otro”. 

[4] Julius Spier, a quem se refere no seu diário como “S”, era um judeu alemão que, em 1939, decidiu emigrar para Amesterdam, depois de ter mudado de profissão (contabilidade e finanças) e de ter feito formação em psicanálise com Carl Gustav Jung. Era divorciado de sua esposa gentia com quem tinha dois filhos. Tinha uma noiva que o aguardava em Londres, na zona livre. Mas morreu antes de conseguir viajar ao seu encontro. 

[5] Cf. ET, vol. II, p. 790. Em inglés o termo de Hillesum é traduzido por “aesthetics” e não “erudition”  em tradução direta do original holandês. Assim aparece traduzido na obra abaixo citada: “Después de todo, lo que he estado haciendo estos últimos años en mi escritorio no era sólo “literatura” y “erudición”» in Etty Hillesum., Diario 1941-1943. Una vida conmocionada, Anthropos, Barcelona 2007, edición J.G. Gaarlandt, trad. A. Sainz. (867) citado por V. Javier Llop, Etty Hillesum y la transformación. La huella de Rainer Maria Rilke, Madrid, Narcea, 2021, p. 43.

[6] Há várias mulheres que viveram aventuras espirituais em situações limite como a guerra, a pobreza etc, que encontraram na literatura um caminho de formação interior privilegiado. Além de Etty Hillesum podemos citar Simone Weil cujo primeiro trabalho acadêmico para o curso de Platonismo de seu mestre Alain (Emile Chartier) foi a partir de um conto de Grimm. (v sobre isso Maria Clara Bingemer. Os seis cisnes e a menina: algumas reflexões sobre a salvação segundo Simone Weil. Teoliteraria - Revista De Literaturas E Teologias, n. 1, v. 1, 2011, p. 97–123. Assim também Dorothy Day, que a partir da literatura foi traçando as vias pelas quais se sentia chamada por Deus para a missão junto aos pobres de Nova York e pela paz contra as iniciativas bélicas e nucleares de seu país, os Estados Unidos. Cf. Maria Clara Bingemer, (2023). Dorothy Day: mística e ativista no século sem Deus. Revista Eclesiástica Brasileira, 83(324), 2023, pp 58–88.

[7] Conferir o que lhe diz Spier: “A alma não tem idade...Talvez sua alma seja muito mais antiga do que a minha” (ET, vol I, p. 405).

[8][8] Rainer Maria Rilke (*1875-1926) foi um poeta e romancista austríaco. É “amplamente reconhecido como um dos poetas de língua alemã mais liricamente intensos   ” Ver Neiva Dutra, Pelos caminhos de Rainer Maria Rilke, in https://deanimaverbum.weebly.com/de-anima-verbum/pelos-caminhos-de-rainer-maria rilke#:~:text=Reconhecido%20como%20um%20dos%20mais,a%20filosofia%20em%20seus%20poemas. Acessado em 13 de desembro de 2023 Ele escreveu versos e prosa altamente lírica. Vários críticos descreveram o trabalho de Rilke como “místico”. Seus escritos incluem um romance, várias coleções de poesia e vários volumes de correspondência em que invoca imagens que focalizam a dificuldade de comunhão com o inefável em uma época de descrença, solidão e ansiedade. Esses temas o posicionam como uma figura de transição entre escritores tradicionais e modernistas.

[9] “the one who had attended at the birth of my soul…” (ET, vol. II, p. 854). cf. n. 39 “On 11 September 1942, a few days before his (Spier´s) death, Tide (amiga de Etty) wrote in her diary: “Spoke to Etty this morning; Father, what a delightful gift in these difficult times! Are they difficult? Yes, not because he is departing, but because his departure is so arduous. Because his body has such difficulty freeing itself of this world. Father in the Highest, his spirit is already with you. Please take all of him as soon as possible. It is so wonderful that he dreams of music. This morning Etty returned from her visit to him, broken. Which is not surprising: he is no longer himself. At first, he didn't recognize her. Later he did. He also said something; that she was not only a woman but also ‘sehr gescheit’ (‘very clever’)”.

[10] Ver por exemplo, ET, vol I p 528

[11] ET, vol. I, p. 242: “The girl who could not kneel but learned to do so on the rough coconut matting in an untidy bathroom. Such things are often more intimate even than sex. The story of the girl who gradually learned to kneel is something I would love to write in the fullest possible way” (ET, vol. I, p. 242).

[12] É em Assis, na capela de Santa María degli Angeli, o lugar onde Simone viverá a segunda experiência espiritual que a marcará e que narrará ao Pe. Perrin anos depois. A contemplação forçará seu corpo a inclinar-se em atitude de adoração e reverência: “Estando sozinha na capela românica do século XII de Santa María degli Angeli, incomparável maravilha onde são Francisco rezou muitas vezes, algo mais forte que eu, me obrigou, pela primeira vez na vida, a me pôr de joelhos” (Attente de Dieu, Paris, Fayard, 1966, edition numérique, p. 75)

[13] “I am a kneeler in training.” I was still embarrassed by this act, as intimate as gestures of love that cannot be put into words either, except by a poet” (ET, vol. I, p. 294). 

[14] Ver esta passagem dos Diários, “Ontem à noite, pouco antes de me ir deitar, dei por mim de repente ajoelhada no tapete, no meio desta sala grande, por entre as cadeiras de metal. Assim sem mais nem menos. Puxada para o chão por algo mais forte do que eu. Algum tempo atrás, tinha dito para mim mesma: “Vou exercitar-me a ajoelhar”. Ainda tinha demasiada vergonha desse gesto que é tão íntimo como os gestos amorosos, acerca dos quais ninguém consegue falar a não ser que seja um poeta”. (ET vol I, p 294)

[15] “What a strange story it really is, my story: the girl who could not kneel. Or its variation: the girl who learned to pray. That is my most intimate gesture, more intimate even than being with a man. After all, one can't pour the whole of one's love out over a single man, can one?” (ET, vol. I, p. 305).

[16] Hans Krasa nasceu em Praga em 30 de novembro de 1899. Sua família rica o incentivou e pagou generosamente por seus estudos musicais. Seu pai até contratava conjuntos instrumentais para que Hans ouvisse suas composições. Krasa estudou com Alexander Zemlinsky em Praga e, em 1921, antes mesmo de concluir seus estudos na Academia Alemã de Música, começou a trabalhar como treinador vocal da Nova Ópera Alemã. Ele passou um tempo considerável em Paris, onde aprendeu a admirar, entre outras coisas, as obras de Igor Stravinsky. Krasa fez algumas apresentações nos Estados Unidos e na França na década de 1920, e várias de suas composições foram publicadas em Viena e Paris. O contato próximo ou mesmo casual com suas obras revela um compositor de excepcional beleza musical e merece a atenção de intérpretes, público e musicólogos. Krasa tinha um estilo de vida bastante boêmio e não teve oportunidades de escrever mais obras, mas isso é contrabalançado pela qualidade das peças que foram preservadas. De fato, se Krasa tivesse morrido antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, seu nome mereceria reconhecimento como um artista que enriqueceu a música de nosso tempo com uma série de composições novas, originais e significativas. Entretanto, Krasa não morreu antes da guerra. Depois de passar vários anos em Theresienstadt, onde desempenhou um papel ativo em sua vida musical, ele foi para Auschwitz em 16 de outubro de 1944 (junto com Viktor Ullmann, Pavel Haas e Gideon Klein) e morreu imediatamente em uma câmara de gás. https://holocaustmusic.ort.org/es/places/theresienstadt/krasa-hans/  acesso em 13 de dezembro de 2023. 

[17] Xavier Güell faz dizer a Hans Krasa a frase que citamos acima. 

[18] Entrada do diário de 8 de junho de 1942 “… discovered that I have my own inner scale and that a melody is emerging, one to which I must give every chance and lots of space, and to which I must be true” (ET, vol. I, p. 636).

[19] Carta a Han Wegerif e outros amigos em 8 de junho de 1943: “Right before our eyes, mass murder”.

[20] Essa intuição experimentada pela jovem mística judia será a inspiração para toda uma nova corrente teológica cristã que surgirá no pós-guerra na Europa. Conferir as obras: Jurgen Moltmann, O Deus Crucificado , Academia Cristã, 2020.; Ebehrard Jüngel, Dios como misterio del mundo, Salamenca, Sígueme, 1984 entre outros. 

[21] A autora tem outro notável livro sobre escrita e resistência onde estuda quatro mulheres judias: Simone Weil, Edith Stein, Etty Hillesum e Anne Frank durante a Shoa: Writing as resistance. Four women confronting the Holocaust, Pennsylvania State University Press, 2003.