O mistério do coração humano: ficção e teologia em Gilead de Marilynne Robinson

The mystery of the human heart: fiction and theology in Gilead by Marilynne Robinson

Thiago Francisco
Mestre em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UnB). Contato: thiagoxb500@hotmail.com


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Resumo: O presente artigo faz análise do romance Gilead (2005) da escritora estadunidense Marilynne Robinson, e das possibilidades de intercâmbio entre o discurso ficcional e o teológico na obra. Publicado nos Estados Unidos em 2004, Gilead é um longo diário ficcional de um pastor calvinista interiorano, que, por meio de suas reflexões pessoais e problemas de sua vida, reflete sobre tópicos da teologia cristã. Nesta análise, tomaremos os ensaios própria autora — em The Death of Adam: Essays on Modern Thought (1996), Além da mente (2010), When I Was a Child I Read Books (2012) e The Givenness of Things (2015) — para verificar a maneira como Robinson articula as ideias teológicas de seus textos ensaísticos dentro de sua obra ficcional. Em seus ensaios, a autora também dialoga com importantes pensadores protestantes, como João Calvino (2009) e Karl Barth (2012), cujas teses são pertinentes em parte do desenvolvimento de Gilead. O objetivo desta análise é demonstrar como um romance contemporâneo se apropria da linguagem teológica para o desdobramento de seu discurso ficcional.

Palavras-chave: Literatura e teologia; literatura estadunidense; calvinismo; teologia protestante; literatura contemporânea

Abstract: This article intents to analyze the novel Gilead (2005) by American writer Marilynne Robinson, and the possibilities of exchange between fictional and theological discourse. Published in the United States in 2004, Gilead is a long fictional diary of a rural Calvinist pastor, who, through his personal reflections and problems in his life, reflects on topics of Christian theology. In this analysis, we will take the author's own essays that explore theological themes — in The Death of Adam: Essays on Modern Thought (1996), The Absence of Mind (2010), When I Was a Child I Read Books (2012) and The Givenness of Things (2015) — to verify the way in which Robinson articulates the theological ideas of her essay texts in her own fictional work. In her essays, the author also dialogues with important Protestant thinkers, such as John Calvin (2009) and Karl Barth (2012), whose ideas are pertinent to the development of Gilead. The main objective of this analysis is to demonstrate how a contemporary work of fiction appropriates theological language to develop problems of fictional discourse.

Keywords: Literature and theology; American literature; protestant theology; Calvinism; contemporary literature

Introdução

Marilynne Robinson é uma premiada escritora contemporânea estadunidense. Romancista e ensaísta, a autora conhecida sobretudo pela forte temática espiritual de seus livros. Também é conhecida pelo tempo considerável que leva para a composição de cada trabalho — ao longo dos mais de quarenta anos de carreira, Robinson publicou somente cinco romances e seis coletâneas de ensaios, com intervalos de até duas décadas entre as publicações. Protestante, de linha calvinista, Robinson discute com frequência problemas teológicos e metafísicos em suas obras, dialogando com sua própria tradição religiosa. Gilead, o seu segundo romance, e o mais elogiado de sua carreira, vencedor de diversos prêmios importantes, é talvez o principal exemplar dos procedimentos recorrentes da autora.

John Ames, um pastor congregacional de setenta e seis anos, decide escrever uma longa carta, autobiográfica, episódica, para seu filho de seis anos. Consciente de que não terá muito tempo de vida, devido a idade avançada e uma doença no coração, o ministro decide deixar esse documento — de sua própria vida, da história de seus antepassados, de sua vocação religiosa — para o filho que provavelmente crescerá sem a presença paterna. A sinopse de Gilead já estabelece a atmosfera altamente religiosa da composição. Publicado em 2004, vinte e quatro anos depois do romance de estreia da autora, Gilead foi aclamado tanto pela crítica quanto pelo público, sendo vencedor do Prêmio Pulitzer e do National Book Award. Embalada pelo sucesso de sua obra, Robinson continuou a escrever no mesmo universo ficcional, publicando Home (2008), Lila (2014) e Jack (2020) nos anos subsequentes. A tetralogia apresenta diferentes versões dos mesmos eventos, cada uma com enfoque em um personagem (e na narrativa pessoal deste) diferente.

Para os propósitos deste artigo, Gilead será tomado como objeto de discussão, mas os outros romances poderão ser eventualmente mencionados. Todos os romances da série têm manifesta preocupação com aspectos da religião cristã. Os personagens de Robinson são usualmente protestantes estadunidenses, de tradições históricas: congregacionalistas, presbiterianos, metodistas, luteranos ou anglicanos. John Ames, o narrador e protagonista de Gilead, e que também surge nos outros romances da autora, é um simpático pastor calvinista, sempre consciente de tópicos da teologia cristã. O relato de Ames, na verdade, é dirigido não somente ao filho, mas também a Deus, como uma espécie de longa oração. O fato de uma escritora contemporânea, reconhecida sobretudo pelos seus talentos narrativos e literários, escrever um extenso romance como uma forma de oração é algo por si só considerável. Como Robinson articula o discurso religioso em sua obra? O cristianismo aparece somente como um artefato cultural, ou como um aspecto pulsante e inseparável vida de seus personagens? Essas são as duas perguntas iniciais deste artigo.

Literatura e teologia cristã foram por milênios quase indistinguíveis. O texto sagrado do cristianismo, a Bíblia, é formado em sua grade parte por narrativas — contos, poemas épicos, canções, dramas, dentre outros gêneros[1]. A história da literatura ocidental pode ser traçada da própria história de composição e compreensão da Bíblia[2]O discurso teológico surge a partir da exegese da Bíblia, o que não é muito diferente de um trabalho de crítica literária[3]. Robinson recupera essa união, entre mythos e teologia, ao colocar problemas de natureza teológica como problemas de sua própria ficção, e ao expor certos conceitos por meio das falas dos personagens. Robinson é também celebrada como uma arguta ensaísta. Os seus ensaios — em The Death of Adam: Essays on Modern Thought (1996), Além da mente (2010), When I Was a Child I Read Books (2012) e The Givenness of Things (2015) — discutem temas comuns da teologia cristã, como predestinação, graça, mistério, cristologia, eclesiologia, além de ideias de teólogos protestantes. João Calvino, Jonathan Edwards, Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer são referências recorrentes. Obviamente, pela sua natureza teórica, os ensaios são mais adequados às elucubrações e experimentações teológicas da autora; de fato, em sua veia ensaística, Robinson revela-se uma teóloga bastante sofisticada e erudita. Porém, seus ensaios teológicos alimentam sua ficção. Questões que a autora discute em seus textos ensaísticos — como a predestinação calvinista ou cristologia — aparecem em sua ficção. O que levanta a principal questão deste artigo: como ficção e teologia mesclam-se na obra de Marilynne Robinson — sobretudo em seu romance Gilead? Como os problemas de seus ensaios são trabalhados em sua ficção? Como a ficção ajuda a entender — ou melhor, contemplar — certos mistérios teológicos? Perscrutar o pensamento da autora, presente nos ensaios, e a influência da teologia calvinista em sua formação, principalmente na figura do teólogo suíço Karl Barth, será o caminho deste artigo para encontrar respostas a essas questões.

Evidentemente, tratando-se de uma escritora complexa e de um romance com diversas entradas para discussões de natureza espiritual, este artigo não pretende esgotar as possibilidades dos questionamentos. Trata-se, na verdade, de um esforço introdutório. Dois conceitos são fundamentais para Robinson: a ideia de imago Dei, o homem como espelho de Deus no mundo, conforme apresenta João Calvino, e o problema da predestinação, tanto na teologia calvinista convencional, quanto no pensamento de Karl Barth. Esses dois temas surgem em vários dos ensaios da autora, e são centrais em Gilead. O mistério da existência humana — de sua natureza, de seu propósito e relacionamento com Deus — é o que parece instigar Marilynne Robinson, intelectualmente e artisticamente. Com uma leitura cerrada em seu principal trabalho, este artigo pretende lançar um pouco de luz nesse mistério.

1. Imago Dei: o mistério da existência humana

Para o teólogo evangélico Karl Barth, teologia é fé em busca de compreensão. Seguindo o entendimento do teólogo medieval Anselmo da Cantuária, Barth afirma que a teologia “não é a existência da fé, antes a natureza da fé que deseja conhecimento. (...) É minha própria fé que me intima ao conhecimento” (BARTH, 2012, p, 26). Para Barth, a função da teologia não é entender ou explicar Deus, como se ele pudesse ser objeto da teologia; antes, Deus é o sujeito do discurso teológico, aquele que fala por meio da teologia quando a fé do teólogo cristão busca compreender-se. Como pensador protestante, Barth não enxerga o teólogo como exclusivamente o doutor da fé, mas como todo crente, já que toda fé cristã genuína exigirá esse aprofundamento de conhecimento. Em seu ensaio sobre Dietrich Bonhoeffer[4], Marilynne Robinson chega a um entendimento semelhante ao de Barth no concernente à teologia: 

Grande teologia é sempre um tipo de gigante e intricada poesia, como épico ou saga. É escrita para aqueles que já conhecem o conto de antemão, a mensagem urgente e as palavras mortas, e que atendem ao seu reconto com um alerta especial, porque a história tem reivindicação neles e eles nela. Teologia evoca o sermão, o sacramento, a liturgia, e, é claro, a própria Escritura, com todos os ecos de uma canção, de uma lenda, de uma oração. Sua autoridade é conquistada por meio de assentimento e reconhecimento, como a poesia, mas com a diferença de que a sua concordância parece ser a verdade última, não importando o quão oblíqua e fragmentária seja a sugestão disso. Teologia é escrita para a pequena comunidade daqueles que ainda refletem ao lê-la. Então, ela não precisa definir palavras pesadas como “fé” ou “graça”, mas apenas revelar o que está contido nessas expressões. (...) Teologia pode proceder da mesma maneira que uma dissertação filosófica, ou um pedaço de crítica textual, mas vai sempre começar assumindo termos maiores. E todos eles embebidos da Escritura e da tradição, agindo juntos de maneira distinta da linguagem discursiva. Para completar o problema, pensadores cristãos desde Jesus têm validado o paradoxo como se ele fosse a resolução. Assim, teologia nunca é nada a não ser teologia, palavras sobre Deus, que procedem da suposição de que Deus existe, de que podemos conhecê-lo de uma maneira que nos permite falar sobre ele (ROBINSON, 1998, p, 117)[5].

Em primeiro lugar, é interessante notar a aproximação que Robinson faz entre teologia e discurso literário. Para a autora, teologia (ou grande teologia) é como poesia, e não como linguagem discursiva; sua função não é esclarecer ou simplesmente dissecar conceitos, mas assentar verdades — da Bíblia, dos sacramentos, da tradição — na comunidade de ouvintes ou leitores. O seu entendimento se aproxima de Barth ao afirmar que teologia parte do pressuposto de que Deus existe, que a fé é a prova dessa existência, mas que não existe para ser investigado pela teologia; Deus existe e permite que os crentes falem a respeito dele — conheçam os seus mistérios — por meio da teologia. Dessa forma, o espaço ficcional para Robinson não é inadequado à teologia. Se os personagens ficcionais são movidos por essa fé que tem sede por entendimento, então teologia florescerá deles. E se teologia consiste numa espécie de discurso poético — reiterando as mesmas narrativas, mas sempre escavando significados distintos — então um romance é um lugar tão bom quanto qualquer outro para o assentamento da linguagem teológica.

Em busca por entendimento, a fé é movida a conhecer mais a Deus e mais o próprio ser humano. Essa é possivelmente a maior preocupação de Robinson em todos os seus ensaios. Em Salmo 8, um ensaio que antecede alguns elementos narrativos de Gilead, a autora pergunta: “Se os céus são obras das mãos de Deus, então o que é o pequeno e mortal homem? O poema [Salmo 8] responde à própria pergunta: O homem é a coroa da criação” (1998, p, 218)[6]. Em Cosmologia, a autora retorna aos mesmos questionamentos: “O que nós somos, afinal de contas? Por que somos tamanhos mistérios uns para os outros?” (ROBINSON, 2012, p, 159)[7]. Em Filho do homem, filho de Adão, a escritora declara com assombro: “Que coisa é o homem!” (ROBINSON, 2015, p, 214)[8]. Robinson acredita que escavar em busca de contemplar ou compreender a natureza humana — o mistério da natureza humana — é um dos caminhos da teologia. Teologia não é antropologia, um estudo do homem na história, mas em sua busca em conhecer a Deus, o ser humano é desvelado; não apenas o que o ser humano faz, mas o que é, o que poderia ser e o que será — a sua natureza e o seu propósito.  “O que é o homem? é uma pergunta feita com admiração –– que Deus deveria estar intrigado ou encanto por ele, leal a ele. Qualquer resposta adequada à pergunta de alguma forma responderia: O que é Deus?” (ROBINSON, 1998, p, 218)[9].

Além da mente (2011) é o ensaio que melhor se aprofunda nessa discussão. Com rigor acadêmico, Robinson dirige-se contra algumas correntes modernas — a psicanálise, o marxismo, o darwinismo — de interpretação da natureza humana. Para a autora, essas correntes têm em comum “além da alegação de suficiência, uma exclusão dos testemunhos da cultura e da história” (ROBINSON, 2011, p, 10). Essas correntes, segundo Robinson, deploram a mente humana, e o seu rico arsenal cultural e de testemunho religioso, em busca de uma interpretação que adeque o homem em seus pressupostos. Para ela, “uma estratégia da argumentação paracientífica[10] é desprezar a formação da cultura, como se ela fosse um ardil e uma dissimulação que acobertam o suposto primitivo que, para eles, é a nossa verdadeira natureza” (ROBINSON, 2011, p, 95). Deixando as polêmicas filosóficas de lado, Além da mente, além de um texto de perspicácia notável, afirma o interesse recorrente de Robinson de reconhecer “o fragmento do imenso mistério que somos” (ROBINSON, 2011, p, 96). E o testemunho pessoal é o que salienta a grandeza da ser humano. Para Robinson, qualquer pessoa que deseje investigar, com honestidade e rigor, a natureza humana, precisa se atentar primariamente aos textos que testemunham as profundidades da mente humana. E os textos de natureza religiosa — os salmos atribuídos a Davi, as Confissões (2014) de Santo Agostinho, os sermões de John Donne — são o maior testamento desse testemunho.

Para Robinson, conhecer o homem é conhecer a Deus — porque o homem é imago Dei. Em diversos textos, Robinson retorna a uma interpretação bastante singular da obra de João Calvino; ao invés de enfatizar a doutrina da predestinação, como fazem muitos calvinistas e críticos de Calvino, ela demonstra maior interesse na concepção de imago Dei, a imagem de Deus virtualmente presente em todos, conforme Calvino desenvolve em sua Institutas da Religião Cristã (2009)Calvino é conhecido pela ênfase nos efeitos corruptivos do pecado original na natureza humana — depravação total, segundo a teologia calvinista. Ainda assim, o teólogo francês argumenta que a imagem de Deus nos homens não foi obliterada por causa do pecado — pelo contrário, o pecado cria uma rede de solidariedade entre todos, desde Adão, justamente por causa da imagem de Deus: todos carregam ainda essa mesma imagem, mas em todos ela está corrompida. Assim sendo, há um destaque ético significativo na necessidade de uma solidariedade radical, já que todos são o mesmo Adão perante Deus; imagens do Criador, corrompidos pelo pecado. O fato de carregarem a imagem de Deus torna todos igualmente merecedores de dignidade, respeito e fraternidade — exatamente as respostas que Cristo deu ao homem; quando um homem responde a uma ofensa com misericórdia e compaixão, a imagem de Deus brilha mais cristalinamente nele, mostrando que os efeitos corruptivos do pecado não perduram em face à nova humanidade inaugurada por Cristo. Assim, conforme Calvino,

Dize que é um homem desprezível e sem valor; mas o Senhor demonstra que ele é alguém honrado com a distinção de sua imagem. Dize que tu não tens dívida nenhuma para com ele; mas Deus como que o colocou em seu lugar, a fim de que, diante dele, reconheças os benefícios com os quais Deus te prendeu a si. Dize que ele é indigno de que te dês ao menor trabalho por causa dele; mas a imagem de Deus, por causa da qual ele te foi recomendado, esta é digna de que te does e a tudo quanto tens. E se ele não apenas não for merecedor de benefício algum, mas até tiver te provocado com injúrias e malefícios, nem mesmo isso é razão justa para que deixes de abraçá-lo com amor e prosseguir nos deveres do amor (Mt 6, 14; 18, 35; Lc 1 7, 3). Dirás que ele é merecedor de algo muito diferente. Mas que merece o Senhor? Ele que, quando te ordena perdoar a esse homem qualquer pecado que tenha cometido contra ti, certamente quer considerá-lo cometido contra Ele. Este é, de fato, o único caminho para chegar aquilo que é tão contrário ã natureza humana, além de difícil: amar aos que nos têm ódio, devolver males com bens, oferecer bênçãos aos que nos caluniam (Mt 5, 44); se nos lembrarmos que não devemos pensar na malícia dos homens, mas considerar neles somente a imagem de Deus, que, [existe] com sua beleza e dignidade (CALVINO, 2009, p, 164).

Robinson toma a ética radical de Calvino para afirmar um princípio fundamental da própria natureza humana: “a imagem divina em nós, apesar de tudo, é um ato de Deus, imune aos nossos sacrilégios” (2015, p, 218)[11]. Entretanto, longe de articular uma teoria que busque explicar o homem, Robinson se contenta, com a imago Dei, em contemplar o mistério da existência humana. Ela também afirma o paradoxo de Calvino — o poder disruptivo e devastador do pecado existindo paralelamente à imagem de Deus nos homens: “no monoteísmo veterotestamentário, é a humanidade quem introduz o mal à ordem criada, a mesma humanidade que é feita à imagem de Deus e que Deus ama” (ROBINSON, 2012, p, 61)[12]. Assim, a autora não reproduz um tipo de teologia simplista e pouco ortodoxa, que apenas valoriza a bondade do homem, de forma ingênua, sem atentar-se aos efeitos degenerativos do pecado; no entanto, Robinson afirma, com convicção, que a natureza humana é boa, a criação é boa, o homem é imagem de Deus (conforme o relato cosmológico do Gênesis) — e o pecado não tem poder para obliterar ou reduzir essa imagem. Valorizar o homem, portanto, é estar participando na reconstrução em Cristo da humanidade perdida. O discurso teológico deveria estar atento a essa nuance, e não deveria deixar a linguagem sobre o pecado afetar a compreensão da criação divina e do propósito de Deus para essa criação.

Em Gilead, todas essas reflexões teóricas tornam-se cristalinas na vida de John Ames. O romance, como afirmado anteriormente, é construído de forma epistolar. É uma longa carta de Ames para o filho, que crescerá sem conhecê-lo. É também uma longa oração de Ames para Deus, na busca de desvelar o próprio coração perante o seu Criador. E é também um testemunho. Se o testemunho humano é a chave para o mistério da existência humana, então Robinson articula uma forma de narrativa capaz de fornecer a oportunidade dos leitores de adentrarem profundamente nos mais escondidos e esplêndidos recantos desse mistério. É a mesma forma que Agostinho escolheu para contar seu próprio testemunho — a autobiografia. No caso de Gilead, uma autobiografia ficcional. As mais de duzentas páginas do livro, no entanto, formadas de memórias, reflexões, dilemas, observações, mágoas, alegrias e esperanças de John Ames, fornecem apenas uma centelha da vida desse idoso pastor protestante de uma pequena (e ficcional) cidade do interior estadunidense[13]; e nessa centelha, os leitores podem apenas ter um vislumbre de um pequeno pedaço do mistério da vida desse homem.

As reflexões de Ames são sempre embebidas pelo seu oficio pastoral. Sobre o ato de escrever, ele diz que “escrever para mim sempre pareceu uma forma de oração, mesmo quando eu não estava escrevendo orações, o que acontecia com frequência” (ROBINSON, 2005, p, 19). Sobre o ato de batizar uma criança, ele afirma que ele “não realça o sagrado, mas o reconhece (...). A sensação é de realmente conhecer uma criatura, realmente sentir a sua vida misteriosa e sua própria vida misteriosa ao mesmo tempo” (ROBINSON, 2005, p, 23). O batismo, na tradição reformada, é um ato iniciatório que reconhece a criança como parte de uma aliança, de uma família; que a reconhece como detentora de dignidade, com a promessa de que ela será assistida e protegida pela comunidade que a batiza. Batismo é o mistério do reconhecimento do outro. Ames, como ministro, sente a saliência desse mistério.  Sobre a ceia do Senhor, o sacramento da eucaristia, Ames afirma que ele é “a mais bela iluminação” do corpo de Cristo, quebrado e abençoado. Ao mesmo tempo, o sacramento comunica a beleza da “vida física e o quão abençoada ela é” (ROBINSON, 2005, p, 69). A ceia do Senhor é uma celebração da própria vida, com todas as suas sombras e tristezas (o corpo quebrado de Cristo), mas também com toda sua graciosidade e beleza (o corpo abençoado de Cristo). A comunidade partilha e consome este corpo porque reconhece que é formada por miseráveis e pecadores, mas também detentores da brilhante imagem de Deus.

As reflexões pastorais de John Ames — sejam sobre oração, sacramento ou sermão, os três pilares da vida eclesiástica protestante — são sempre carregadas de metáforas, linguagem poética e reflexão pessoal. Acima de tudo, são todas produtos de uma mente ficcional. Essas considerações não são distrações do livro — como se a autora colocasse suas ideias teológicas no meio do romance, frustrando o desenvolvimento da narração. Pelo contrário, as ponderações de Ames são o próprio coração de Gilead. Se a obra pretende ser um diário do pai apresentando-se ao filho, um testemunho de sua própria vida, e se este pai foi um pastor ao longo de sua vida, logo tudo que ele tem a dizer sobre sua experiência neste mundo deverá ser mergulhada em vivência pastoral. Ele foi um homem de Deus. Ele viveu sempre diante de Deus — com reverência e alegria. Tudo que ele tem a dizer parte desse fato fundamental; tudo que John Ames é se resume nesse fato fundamental.

Em alguns casos, as reflexões de Ames a respeito da beleza da humanidade tomam proporções cósmicas: 

A lua está belíssima sob essa luminosidade cálida ao anoitecer, assim como a chama de uma vela fica linda à luz da manhã. Luz dentro da luz. Parece-me uma metáfora para algo. (...) Parece-me uma metáfora para a alma humana, a luz singular em meio à grande luz geral da existência. Ou poesia dentro da linguagem. Talvez sabedoria na experiencia. Tentarei me lembrar de suar isso (2005, p, 147).

Em outros casos, as observações de Ames a respeito do filho pequeno se dilatam até se tornarem uma admiração pela própria existência: 

Há uma cintilação no cabelo de uma criança à luz do sol. Há, ali, as cores do arco-íris, uns minúsculos raios suaves, daquelas mesmas cores que se podem ver, às vezes, no orvalho. Elas existem nas pétalas das flores e na pele das crianças. O seu cabelo é escuro e liso, e a sua pele, muito clara. Suponho que não seja mais bonito do que a maioria das crianças. É apenas um garoto de boa aparência, um tanto franzino, bem cuidado e bem-educado. Tudo isso é ótimo, mas é principalmente por você existir que eu o amo. Agora, a existência me parece a coisa mais incrível que já foi imaginada. Estou quase pronunciado a palavra imperecibilidade. Em um instante, em um piscar de olhos.

Em um piscar de olhos. Essa é a mais linda de todas as expressões. Várias vezes me ocorreu que era a melhor coisa da vida, essa pequena incandescência que vemos quando as pessoas são tocadas pelo encanto de alguma coisa, pela sua graça. “A luz dos olhos alegra o coração”. Isso é um fato (ROBINSON, 2005, p, 68).

As situações mais triviais se tornam, nas ponderações de Ames, motivo para celebração da beleza humana, da imagem de Deus nos homens:

Na verdade, já não sei dizer mais o que é bonito. Outro dia, cruzei com dois rapazes na rua. Sei quem são: trabalhadores na oficina mecânica. Nenhum deles frequenta a igreja; são apenas uns gozadores decentes, que precisam passar o tempo todo fazendo piadas. Lá estava eles, recostados no muro da oficina, ao sol, acendendo os seus cigarros. Estão sempre tão negros de graxa e com um cheiro tão forte de gasolina que não sei como não ateiam fogo em si mesmos. Trocavam gracinhas, como sempre, e riam com aquele seu jeito malicioso. E eu os achei bonitos. É incrível olhar para as pessoas rindo; ver como o riso meio que se apossa delas. Às vezes, é preciso lutar contra ele. Vejo isso com frequência na igreja. Então, fico me perguntando o que é aquilo, de onde vem, e me perguntando por que razão exige tanto de nós, a tal ponto que temos que rir até o riso terminar; mais ou menos o mesmo acontece com o choro, penso eu. Com uma diferença: o riso é menos sofrido.

Quando os tais rapazes viram que eu estava me aproximando, pararam com as gozações, é claro, mas pude perceber que continuavam rindo por dentro; pensando que o velho pastor por pouco não ouviu o que estavam dizendo.

Tive vontade de lhes dizer que gostava de piadas, como qualquer um. Houve várias situações que gostaria de ter dito isso. Mas não é algo que as pessoas estejam dispostas a aceitar. Elas querem vê-lo a uma certa distância. Tive vontade de dizer: estou morrendo, e então terei mais muitas oportunidades de rir, pelo menos não neste mundo. Mas isso só faria com que eles ficassem sério e reservados.

Isso é o que há de mais estranho com relação a essa vida, com relação a exercer o ministério. As pessoas mudam de assunto quando nos veem chegando. E, às vezes, essas mesmas pessoas vêm aos nossos gabinetes e nos contam as histórias mais incríveis. Há muita coisa sob a superfície da vida, todo mundo sabe disso. muito rancor, muito medo, muita culpa, e tanta solidão... (ROBINSON, 2005, p, 12).

Até mesmo a esperança cristã pela eternidade está mergulhada em um senso de maravilhamento pelas coisas — e vida — deste mundo:

Às vezes, sinto-me como uma criança que abre os olhos para o mundo, vê coisas incríveis cujos nomes nunca virá a saber, e, então, tem de fechar os olhos novamente. Sei que tudo isso é pura miragem, em comparação com o que nos espera. No entanto, isso só torna as coisas mais adoráveis. Há nelas uma beleza humana. E não posso acreditar que, quando estivermos todos transformados, e estivermos envergando a incorruptibilidade, simplesmente esqueçamos a nossa fantástica condição de mortalidade e impermanência, o grande sonho radiante de procriar e perecer, que era a coisa mais importante no mundo para nós. Na eternidade, este mundo será Tróia, creio eu, e tudo que aconteceu aqui será a épica do universo, a balada que se canta nas ruas. Porque não imagino nenhuma realidade velando inteiramente esta aqui, e acho que o sentimento religioso não me permite tentar (ROBINSON, 2005, p, 73).

Em Salmo 8, Robinson afirma ter passado a vida inteira tentando enxergar, mas “não ver além deste mundo, apenas ver, grande mistério, o que está plenamente diante de seus olhos. Com todo o respeito ao paraíso, mas a cena do milagre está aqui, no meio de nós” (ROBINSON, 1998, p, 243)[14]. Toda a ideia de transcendência está baseada num equivoco se deplora a vida nesta terra. Os exemplos supracitados mostram um homem maravilhado com as coisas como elas são — a luz do luar numa noite comum, a aparência do próprio filho, dois rapazes contando piadas na rua; e ainda assim, todas essas pequenas banalidades são a balada de um mundo feito à imagem de Deus, um mundo que será cantado, com nostalgia e reverência, na eternidade — a deslumbrante ideia de que a história do mundo será um épico no paraíso.

Literatura, com sua capacidade de adentrar nas minúcias, narrar situações aparentemente inescrutáveis, descrever detalhes desapercebidos, transformar esses detalhes em símiles e metáforas que expandem a compreensão e capacidade de contemplação do leitor, é uma grande ferramenta nesse processo de ampliar a visão, para que possamos enxergar este mundo — com todo o seu mistério e beleza encarnados. Gilead é uma obra que busca entregar novas lentes aos leitores, não para que vejam eternidade em todas as coisas, mas reconheçam em todas as coisas uma pulsão de eternidade; para que reconheçamos a sacralidade de tudo. Teologia, se entendida como um esforço da fé de um indivíduo para compreender os mistérios de Deus, busca na verdade a mesma coisa — que por meio da fé o crente aprenda a enxergar o mundo, a ver os outros, a ver a si mesmo e a própria fé como atos de Deus. Por essa razão, Robinson adota uma linguagem altamente poética e pessoal em seus ensaios, assim como é teologicamente consciente em sua ficção. De fato, ela não vê barreiras entre as duas formas de linguagem. 

Gilead pode ser descrito como uma afirmação da claridade, mas não é ingênuo em supor que o mundo não esteja cheio de densas trevas. Ao longo do seu relato, Ames também desvela as sombras de seu coração: quando era ainda um jovem ministro, ele perdeu a esposa e a filha, no dia do nascimento da menina (Louise e Angelina). Depois disso, passou mais de quarenta anos solteiro, como um pastor solitário, às vezes até cobiçando a vida de outras pessoas, e sem expectativas de reconstruir uma família. Somente quando conheceu Lila, com quase setenta anos, que ele presenciou uma reviravolta inesperada: uma segunda esposa e um filho. Em certo momento, Ames afirma que “a beleza de outras vidas representava sofrimento e ofensa para mim” (ROBINSON, 2005, p, 172); em outro momento, ele diz:

Acredito que haja dignidade na tristeza, simplesmente porque Deus quer que seja assim. Ele está sempre enaltecendo aqueles que são humilhados. O que não significa dizer que seja correto causar sofrimento, ou ir procura-lo quando ele poderia ser evitado e não leva a nenhum resultado prático ou válido. Valorizar o sofrimento por si pode ser perigoso e estranho; por isso, quero ser bem claro a esse respeito. Estou afirmando que Deus fica do lado dos que sofrem, contra aquele que os fazem sofrer (ROBINSON, 2005, p, 168).

A própria história de vida de John Ames é marcada de tristeza, solidão, melancolia e eventos trágicos. Sofrimento e pecado, na concepção de Robinson, seguindo uma linha fortemente agostiniana, são depravações do bem, propriamente não existem[15], e completamente desnecessários. Por essa razão, o sofrimento nunca deve ser exaltado — e deve sempre ser visto como algo a ser evitado. Ainda assim, por causa da corrupção humana e da corrupção geral da natureza, sofrimento existe; e quando abuso é cometido, Deus sempre toma o lado dos sofredores[16]. É mais uma afirmação do sentido calvinista da imagem divina presente em todos os homens, sobretudo nos pobres, cansados e sofredores, que revelam mais plenamente a imagem do Cristo crucificado. John Ames já foi um homem assim, um homem no Getsêmani. Se ele consegue olhar para o mundo e enxergar a sua pulsante beleza, e a beleza divina de todos os outros, é apenas porque ele foi moldado por Deus em seu período de densas trevas. E as trevas antecedem a claridade.

2. Predestinação e reconciliação:  a história de Jack e John Ames

Na segunda metade do livro, um outro John Ames é introduzido à narrativa. John Ames Boughton, Jack[17], filho de Boughton, um reverendo presbiteriano que também é melhor amigo de Ames, aparece em Gilead para ficar uma temporada na casa do pai. Ames tem sentimentos dúbios em relação a Jack. No passado, Jack causou grande sofrimento à sua própria família. Ames acompanhou os eventos à distância. Jack está com mais de quarenta anos, mas Ames nunca recuperou a confiança plenamente nele. Ames relata essa desconfiança ao filho, por meio de entradas no diário. Conforme o livro avança, Jack vai se tornando um personagem cada vez mais presente nas anotações e reflexões de Ames.

O nome John Ames tem uma importância especial em Gilead. Ao longo de seu relato, Ames conta para o filho a história de seus antepassados — o pai e o avô paterno, ambos eram ministros e se chamavam de John Ames. O pai Ames era um pacifista liberal, que com o tempo é convencido pelas ideias ateístas do outro filho, irmão de Ames narrador, Edward. O avô Ames era um radical abolicionista, que abandona a cidade de Gilead para lutar pelos direitos civis da população negra. O quarto John Ames da história é Jack, que é batizado com esse nome algum tempo depois da morte da esposa e filha de John Ames narrador, como uma forma de homenagem de Boughton. Para os propósitos deste artigo, não analisaremos as relações de Ames com o pai e as histórias do avô paterno, apesar de que são importantes no desenvolvimento da obra — sobretudo para um tema caro para Robinson, que é a história do puritanismo nos Estados Unidos. A relação entre John Ames e John Ames Boughton (Jack) é relevante para o desenvolvimento do tema da predestinação, um tópico teológico pertinente em Gilead e nos ensaios de Robinson.

Jack é descrito, por John Ames, como problemático, desde a juventude. Ames diz que Jack era um “garoto que andava sempre sozinho, sempre sorrindo, sempre tramando alguma diabrura” (ROBINSON, 2005, p, 220); Ames relata que Jack, na infância, quebrava o vidro de seu gabinete, matava formigas deliberadamente e furtava coisas que não precisava apenas por diversão — “travessuras que apenas beiravam a maldade” (ROBINSON, 2005, p, 222). Os atos de Jack não tinham sentido ou necessidade, eram apenas pelo prazer gratuito de causar dano. “Nunca vi sentido no que ele fazia, a menos que o seu objetivo fosse causar o máximo de constrangimento com o mínimo de risco de ser punido” (ROBINSON, 2005, p, 222). Em determinado momento, Ames revela que Jack começou a roubar efetivamente quando mais velho, mas novamente sem nenhuma necessidade, apenas para causar embaraço e constrangimento em sua família — e o nome que aparecia nos jornais, quando Jack acabava encarcerado, era sempre John Ames Boughton. Evidentemente, o próprio John Ames era implicado e constrangido pelos desvios de conduta e travessuras desnecessárias de Jack.

A chegada desse personagem representa uma mudança no tom de Gilead. As entradas de Ames deixam de ser apenas reflexões sobre sua vida, sobre o mundo, e sobre história de seus antepassados, e passam a se concentrar em Jack Boughton. Sobretudo, porque Jack começa a se aproximar de Lila, esposa de Ames, e começa a fazer amizade com o filho de Ames. A presença de Jack é incômoda e desnorteante para Ames. O idoso pastor passa a temer que Jack tenha algum plano maligno contra sua família; Ames teme que, após sua morte, Jack tente fazer alguma maldade, novamente sem necessidade ou propósito, contra Lila e seu o filho. A desconfiança de Ames, e sua antipatia por Jack, aumentam justamente porque ele não entende o que fez o filho de Boughton retornar para casa depois de tantos anos.

Ames revela, então, a maior transgressão de Jack, e o principal motivo de sua aversão contra ele: no passado, Jack engravidou uma garota — muito jovem e muito pobre — e abandonou a criança sem nenhum cuidado ou reconhecimento. A família Boughton tentou se responsabilizar pela criança, mas a família materna usou a situação para tentar extorquir os pais de Jack. O filho nasceu e foi criado de maneira desleixada pela mãe e sua família; os pais de Jack e sua irmã Glória tentaram assistir a criança, mas sem muito sucesso. A menina acabou falecendo, com três anos, após pisar num caco de vidro e contrair uma infecção. Jack nunca reconheceu a filha, não deu nenhuma assistência para ela, e nem sequer participou do enterro. A situação toda causou muita dor na família Boughton, assim como no próprio Ames, que acompanhou de perto o caso. “Não caberia a mim perdoar Jack Boughton”, Ames afirma em um dos momentos que revela a natureza de sua mágoa e desgosto por Jack, “(...) o fato de um homem perder um filho ao passo que o outro simplesmente desperdiça a paternidade como se aquilo fossem uma coisinha à toa — bem, isso não quer dizer que o segundo desses homens tenha feito algo contra o primeiro” (2005, p, 205). E então, com uma dureza incomum para o seu caráter brando, o pastor afirma: “Eu não o perdoo. Eu não saberia nem por onde começar...” (ROBINSON, 2005, p, 205).

Ainda assim, Jack segue sendo um enigma em Gilead. Ames pode dizer muitas coisas sobre ele, contar muitas situações a respeito do passado de Jack, mas não pode dizer o que ele faz na cidade, o que ele realmente deseja e nem quem se tornou. Jack parece inclusive interessado em ter uma conversa séria com Ames, mas as tentativas são sempre frustradas. Jack parece estar sendo confrontado os seus próprios dilemas. Num dos diálogos mais importantes do romance, que volta a aparecer nos outros livros da série, mas com outras perspectivas, Jack levanta o tema da predestinação. Ames está na casa de Boughton — dois ministros calvinistas — e Jack levanta a seguinte questão: “O senhor acha que algumas pessoas são propositada e irremediavelmente destinadas à perdição?” (ROBINSON, 2005, p, 183). O questionamento é direcionado para Ames.

Na tradição reformada, a doutrina da predestinação foi sempre alvo de controvérsia. Tradicionalmente, as confissões reformadas afirmam que a salvação depende exclusivamente do trabalho de Deus; não existe mérito humano nenhum em sua própria salvação, sendo um ato exclusivo de Deus: a eleição dos salvos na eternidade. A Confissão de Westminster, documento confessional adotado por diversos ramos do presbiterianismo, afirma que por causa do pecado o homem perdeu totalmente a sua livre vontade[18], e que somente aqueles que Deus predestinou para a vida são eficazmente tirados de seu estado de condenação e pecado; os não eleitos, por outro lado, nunca chegam a Cristo e nunca serão salvos[19]. João Calvino defendia abertamente a noção de que alguns indivíduos são predestinados à danação, em um decreto eterno do próprio Deus[20] — noção que ficou conhecida como dupla predestinação: Deus elege, em um decreto eterno, todos aqueles que serão salvos e todos que serão condenados. Entretanto, o próprio Calvino adverte que ninguém tem o conhecimento a respeito do estado da alma de outro indivíduo — esse conhecimento pertence a Deus; logo, cabe ao homem fazer o bem e pregar o Evangelho, já que todos são potencialmente eleitos.

Como o filosofo James K.A Smith afirma, a teologia reformada foi uma “redescoberta e uma rearticulação de uma cosmovisão basicamente agostiniana” (SMITH, 2014, p, 44); nesse sentido, a doutrina da predestinação de Calvino tem um lastro histórico, agostiniano, e não é um problema (ou uma polêmica) exatamente nova na história do cristianismo. Robinson, em uma conversa com um teólogo Philip Ryken, reconhece que Calvino não é propriamente original em seu tratamento do problema da predestinação: “é uma das coisas [a predestinação] curiosas que é usada contra Calvino, mas ele é simplesmente um típico teólogo grande que escreveu sobre o tema. (...) John Huss escreveu sobre isso. Lutero escreveu sobre isso em termos bem fortes. Todos eles escreveram” (ROBINSON, 2018, p, 282). No entanto, a forte ênfase de Calvino na temática, bem como das confissões reformadas posteriores, fizeram dela a mais marcante característica da mentalidade calvinista. 

Eleitos para a condenação? O questionamento de Jack é legitimo levando em consideração as afirmações históricas da fé reformada — a fé de sua família, de sua cidade, a fé em que ele foi criado; sobretudo, levando em consideração que Jack foi sempre visto como um garoto problema, movido por uma crueldade sem sentido, sempre trazendo desonra e infelicidade para sua família. Seria ele um reprovado no seio de um lar de cristãos eleitos? Ames responde à pergunta de forma tangencial:

Eu lhe digo que há certas faculdades que a nossa fé atribui a Deus: onisciência, onipotência, justiça e graça. Nós, seres humanos, temos tão pouca familiaridade com o poder e o conhecimento; temos uma concepção tão reduzida de justiça e tão pouca capacidade para a graça que as obras desses atributos são um mistério que não podemos ter esperanças de vir a penetrar (ROBINSON, 2005, p, 185).

Jack não fica satisfeito com a resposta de Ames e segue no assunto. Ele questiona se é possível pessoas mudarem, mas Ames tangencia o assunto novamente; em determinado ponto da conversa, Ames recomenda a leitura de Karl Barth para Jack. Jack, por sua vez, ironiza: “É isso que o senhor faz quando alguma alma atormentada bate à sua porta à meia-noite? Recomenda a leitura de Karl Barth?” (ROBINSON, 2005, p, 187). A recomendação de Ames, no entanto, é genuína — ele mesmo afirma que encontrou bastante conforto na leitura de Barth. De toda forma, a menção de Barth — e não Calvino — no meio da discussão é significativa. Jack insiste no ponto de que se alguém poderia realmente mudar o seu estado diante de Deus. Lila intervém duas vezes na conversa: “E como fica a salvação, então? Se algum não pode mudar, ela não parece ter muita função.” Boughton nota que Lila chegou num ponto chave do problema: como conciliar o plano de resgate de Deus com a noção de que todos já estão virtualmente predestinados à salvação ou danação? O diálogo termina de maneira comovente quando Lila afirma: “Uma pessoa pode mudar. Tudo pode mudar” (ROBINSON, 2005, p, 187).

No século XX, houve uma reviravolta no consenso reformado a respeito da dupla predestinação. Karl Barth (2017) afirma que somente Jesus Cristo, o Deus-homem, deve ser concebido como sujeito da eleição: duplamente predestinado, tanto para a condenação (na cruz) quanto para a salvação (em sua ressurreição). Cristo é predestinado para a condenação, para que os homens sejam eleitos para a salvação. Bruce McCormack[21] afirma que a concepção de Barth faz uma “correção colossal na doutrina reformada clássica da predestinação” (MCCORMACK, 2023, p, 163), uma vez que estabelece um princípio absolutamente cristocêntrico na soteriologia reformada[22]. Para Barth, a identidade de Cristo (que foi decretado na eternidade para ser um Deus por nós) o estabelece como aquele que encarna para mudar a natureza corrompida dos homens, e reconciliá-los com Deus. A doutrina clássica da predestinação diminui o peso da crucificação, uma vez que a coloca como um evento meramente reiterativo — algo que apenas reafirma o decreto de Deus, estabelecido desde a eternidade em relação aos homens: eleitos ou reprovados. Barth, por sua vez, coloca Cristo como o centro da história da salvação humana — e o seu propósito é a reconciliação com a humanidade perdida. De fato, a doutrina da reconciliação é o coração da teologia de Barth. Como afirma McCormack:

A vontade eterna de Deus é dirigida à comunhão com os seres humanos caídos, pecaminosos. (...) A predestinação é “dupla” porque, ao escolher a si próprio pela criatura pecaminosa, Deus estava escolhendo a reprovação, a perdição, a morte para si mesmo, e misericórdia, graça e vida para os seres humanos. Deus, conforme Barth, assinala, “decretou seu próprio desamparo” (DE II/2, p. 168) Ele, “declarou-se culpado da oposição a ele na qual o homem estava envolvido... Ele tomou para sai a rejeição que o homem merecia... Provou ele próprio a condenação, a morto e o inferno que deveriam ter sido a porção do homem caído” (DE II/2, p. 164). Que ele tenha se designado para isso na eternidade pré-temporal significa que Jesus Cristo “é o Cordeiro desde a fundação do mundo”. O Jesus crucificado é a “imagem do Deus invisível” (DE/2, p. 123) (MCCORMACK, 2023, p, 178).

Quando Lila afirma que “tudo pode mudar” está ecoando a noção barthiana de que Deus decretou em Jesus Cristo ser a possibilidade de transformação latente em cada ser humano. Essa é outra forma de afirmar a imago Dei universal. Se a imagem de Deus está presente em cada ser humano, então o Deus humano sofreu e morreu para reconciliar essa imagem com o próprio Deus, apagando a mancha do pecado. A obra de Jesus Cristo na cruz é essencialmente de reconciliação, e não meramente um sacrifício substitutivo. Para alguns críticos, a noção barthiana de eleição levaria necessariamente a um universalismo; é difícil encontrar uma defesa dessa posição em seus textos. Robinson é mais propensa a considerar a possibilidade de uma salvação universal, mas a mesma pondera a respeito do inferno, que a exegese bíblica não pode simplesmente desconsiderar nos Evangelhos:

Há a questão do inferno, que não é facilmente descartada, já que Jesus fala disso. Um problema, tudo mesmo. Pelo meu entendimento, uma reverência apropriada a Deus, por esta brilhante vestimenta de realidade na qual ele é revelado e oculto, e pelo o mistério único e profundamente sagrado de suas relações com qualquer pessoa — uma reverência apropriada por essas coisas não é consistente com a ideia de que podemos julgar se as outras almas que agradaram a Deus foram feitas participantes deste grande mistério, do grande sacramento. Eu não sei o que fazer com o inferno, mas claramente isso significa que o que nós, mortais, fazemos tem um significado eterno, e isso é certamente consistente com uma postura de reverência para com este mundo, com todos os seus pecados e aflições (ROBINSON, 2008, p, 26).

A alusão a Barth no meio do diálogo mais importante sobre predestinação em Gilead é, de fato, significativa, mas não significa que Robinson esteja absolutamente alinhada com Barth. Na verdade, teologicamente a autora não está preocupada com explicações que busquem esgotar o tema. Em seu ensaio sobre o Credo Apostólico, a ensaísta afirma que “a predestinação é mais interessante para mim porque faz de tudo misterioso. Não sabemos como Deus vai agir ou o que pretende, por meio de nós mesmos e dos outros” (ROBINSON, 2008, p, 24)[23]. O vocábulo mistério é recorrente no léxico de Robinson. Para a escritora, tudo se trata de um grande mistério: as nossas ações, nossos relacionamentos com outros, com nós mesmos, com Deus, nosso propósito e finalidade nesta terra. Julgamento, portanto, é uma grande transgressão, porque violenta o mistério de uma outra vida por meio de presunções precipitadas. John Ames, apesar de toda a bondade de coração e clareza de mente, comete um grande pecado ao julgar a vida de Jack com base naquilo que havia conhecido. Ele não tem uma dimensão completa do mistério. Ames não conhece, de fato, Jack.

Nas páginas finais do livro, Jack finalmente se abre para Ames. Ele também tem uma esposa e um filho[24]. A esposa dele é uma mulher negra, e as legislações estaduais da época não permitiam casamentos interraciais[25]. Jack buscava em Gilead, e na casa do pai, um abrigo para sua família e uma forma de sustento. Infelizmente, não foi capaz de conseguir. Ele decide, então, deixar Gilead para tentar se reencontrar com a esposa. Ames fica perplexo ao ouvir o relato de Jack e com o contraste entre as suas situações — enquanto um temia perder a esposa e filho, o outro já era obrigado a viver privado de sua própria esposa e filho. 

Ames passa a reconsiderar seus preconceitos em relação a Jack, após escutar a sua história. Ele reconhece que as pessoas realmente podem mudar. Nas páginas finais do romance, antes de Jack deixar a cidade, Ames pede para abençoá-lo. Seguindo os versos bíblicos de Números 6, John Ames abençoa John Ames Boughton em sua jornada. É um momento comovente que faz menção ao batismo de Jack, que havia sido feito pelo próprio Ames. No passado, Ames batizou Jack, reconhecendo-o como uma espécie de filho, e lhe dando o seu próprio nome; anos mais tarde, Ames perdoa Jack e se reconcilia com esse filho estrangeiro, o abençoando em sua caminhada de incertezas:

Ele tirou o chapéu, se pôs de joelhos e fechou os olhos e baixou a cabeça, chegando quase a apoiá-la na minha mão. E eu o abençoei da melhor maneira possível, dentro de minhas possibilidades, sejam elas quais forem, repetindo, é claro, a benção do Livro dos Números. “O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti; o Senhor sobre ti levante o Seu rosto e te dê a paz.” Nada poderia ter sido mais bonito do que isso, ou, decerto, nada poderia expressar melhor os meus sentimentos; ou ser mais adequado às circunstâncias. Então, quando ele voltou a abrir os olhos e erguer a cabeça, eu disse: “Senhor, abençoe John Ames Boughton, esse filho e irmão, e esposo e pai amado.” Depois, ele voltou a se sentar e me olhou como se estivesse despertando de um sonho (ROBINSON, 2008, p, 26).

Jack, o reprovado por natureza, predestinado a uma vida de vergonha, desonra, delinquência, crueldade e egoísmo; Ames, por sua vez, o homem que viveu sempre perante Deus, reportando os seus atos e agindo de maneira digna, honrada e decente — um eleito para a santificação. No desfecho de Gilead, as posições iniciais de cada um deles nada importam, pois ambos são transformados e reconciliados em Deus para a glória de Deus. Orações foram respondidas. Tudo pode ser novo.

Considerações finais

Evidentemente, este artigo não pretende esgotar as possibilidades de discussão teológica na obra de Marilynne Robinson. Como afirmado em outro momento, o esforço aqui é meramente introdutório; mais ainda, é uma tentativa de provocar interesse e suscitar questões pertinentes a respeito de uma autora ainda não devidamente conhecida e academicamente investigada em território brasileiro. Apenas dois romances de Robinson foram publicados em português no Brasil. Nenhuma coletânea de ensaio da autora está disponível em português. Apesar de ser mundialmente celebrada, e ser uma poucas vozes a ecoar de maneira tão contundente o discurso teológico em sua produção literária, não há investigações acadêmicas a respeito de Robinson no Brasil, nem mesmo nos campos que investigam as relações entre cristianismo e literatura. Este artigo, portanto, pretende preencher uma lacuna e incentivar que outros sejam produzidos na mesma linha.

Os dois tópicos investigados ao longo do texto são relevantes tanto para as discussões dentro da teologia reformada, quanto para a obra de Robinson. O tema da imagem de Deus, dentro da teologia calvinista, ainda é um desafio; infelizmente, é comum caracterizações da teologia de Calvino como se fosse exclusivamente (e obsessivamente) preocupada com o tema da predestinação. Robinson, em seus ensaios e na figura de John Ames, apresenta uma nova versão de Calvino: eticamente radical em sua defesa do oprimido, profundamente solidário com todos os homens, e encantado com as belezas e profundidades de toda extensão do cosmos. A teologia calvinista é uma chave hermenêutica, potente e ainda relevante, para discussões ontológicas. O mistério do ser humano pode ser contemplado (mas nunca desvendado) na busca pela compreensão do próprio Deus — ou da própria fé, como diria Barth.

As polêmicas em torno do tema da predestinação, e a contribuição inestimável de Karl Barth ao tema, também foram investigadas neste artigo porque surgem na obra de Robinson como problemas concretos — e não meras abstrações — nas vidas de Jack, Lila e John Ames. O questionamento de Jack é pertinente não apenas como provocação teológica; é da própria história de vida que o personagem fala quando questiona o estado de sua alma, quando tenta compreender um Deus eterno e soberano e ainda capaz de mudar e tornar tudo novo. Nesse sentido, Gilead é um romance que não apenas discute teologia, mas que se engaja na teologia, entendendo-a como essencial para a vida real das pessoas; uma obra que afirma a ficção como terreno fértil para que o relacionamento entre Deus e os homens se torne, se não completamente inteligível, ao menos plenamente admirável.

Referências 

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ALTER, Robert e KERMODE, Frank. Guia Literário da Bíblia. Tradução de Raul Fiker e Gilson César Cardoso. São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1997.

BARTH, Karl. Dogmática eclesiástica: seleção e introdução de Helmut Gollwitzer. Tradução de Airton Williams. São Paulo: Editora Fonte Editorial, 2017.

BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão. Tradução de Vera Kikuti. 4º edição. São Paulo: Editora Fonte Editorial, 2012.

CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã — Tomo II, Livros III e lV. Tradução de Elaine C. Sartorelli e Omayr J. de Moraes Jr. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2004.

MCCORMACK, Bruce. Graça e ser: o papel da eleição graciosa de Deus na ontologia teológica de Karl Barth. In: Manual de Cambridge para Karl Barth. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Campinas, São Paulo: Aldersgate, 2023.

ROBINSSON, Marilynne. Além da Mente. Tradução de Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011.

ROBINSSON, Marilynne. Gilead. Tradução de Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005.

ROBINSSON, Marilynne. Home. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2008.

ROBINSSON, Marilynne. Jack. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2020.

ROBINSSON, Marilynne. Lila. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2014.

ROBINSSON, Marilynne. The Death of Adam: Essays on Modern Thought. Nova Iorque: Picador, 1998.

ROBINSSON, Marilynne. The Givenness of Things. Nova Iorque: ‎Virago, 2015.

ROBINSSON, Marilynne. When I Was a Child I Read Books. Nova Iorque: ‎Farrar, Straus and Giroux, 2012.

ROBINSSON, Marilynne. Credo. Harvard Divinity School: Harvard Divinity Bulletin, 2008 (disponível em: https://bulletin.hds.harvard.edu/credo/).

STEINER, George. Nenhuma paixão desperdiçada.  Tradução de Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018.

SMITH, James K.A. Cartas a um jovem calvinista. Tradução de Daniel Vieira, Paulo Dib, Rodrigo Rosa e Victor Bimbato. Brasília: Editora Monergismo, 2014.

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Notas

[1] O crítico literário Robert Alter afirma que o texto bíblico é formado por uma enorme heterogeneidade literária, sendo composto por “historiografia, narrativas ficcionais e muita mistura de ambos, listas de leis, profecias tanto em verso como em prosa, obras aforísticas e de meditação, poemas de culto e devoção, hinos de lamentação e vitória, poemas de amor, tábuas genealógicas, contos etiológicos e muito mais” (ALTER, 1997, p, 24).

[2] Northrop Frye mostra em seu Código dos códigos: a Bíblia e a literatura (2004) que as raízes da imaginação literária ocidental nos últimos dois mil anos estão no texto bíblico.

[3] O crítico George Steiner afirma que “nossas críticas de textos, nossos empenhos de passar da letra para o espírito são herdeiros diretos das textualidades da teologia judaico-cristã e da exegética bíblico-patrística” (STEINER, 2018, p, 55).

[4] Ao longo deste artigo, sempre que alguma citação de Robinson não tiver tradução disponível em português, apresentaremos uma tradução nossa no corpo do texto e o trecho original no rodapé.

[5] Dietrich Bonhoeffer, ensaio presente na obra The Death of Adam (1998). “Great theology is always a kind of giant and intricate poetry, like epic or saga. It is written for those who know the tale already, the urgent messages and the dying words, and who attend to its retelling with a special alertness, because the story has a claim on them and they on it. Theology is also close to the spoken voice. It evokes sermon, sacrament, and liturgy, and, of course, Scripture itself, with all its echoes of song and legend and prayer. It earns its authority by winning assent and recognition, in the manner of poetry but with the difference that the assent seems to be to ultimate truth, however oblique or fragmentary the suggestion of it. Theology is written for the small community of those who would think of reading it. So it need not define freighted words like “faith” or “grace” but may instead reveal what they contain. To the degree that it does them any justice, its community of readers will say yes, enjoying the insight as their own and affirming it in that way. Theology may proceed in the manner of a philosophical treatise or a piece of textual criticism, but it always begins by assuming major terms. And all of them, being imbedded in Scripture and tradition, behave altogether differently from discursive language. To compound the problem, Christian thinkers since Jesus have valued paradox as if it were resolution. So theology is never finally anything but theology, words about God, proceeding from the assumptions that God exists and that we know about him in a way that allows us to speak about him.” 

[6] Psalm 8, ensaio presente na obra The Death of Adam (1998). “The strategy of the Psalmist is to close the infinite distance between God and humankind by confounding all notions of scale. If the great heavens are the work of God’s fingers, what is small and mortal man? The poem answers its own question this way: Man is crowned with honor and glory.”

[7] Cosmology, ensaio presente na obra When I Was a Child, I Read Books (2012). “What are we, after all? Why are we such mysteries to ourselves?”

[8] Son of Adam, Son of Man, ensaio presente em The Givenness of Things (2015). “What a thing is a man!”

[9] Psalm 8, ensaio presente na obra The Death of Adam (1998). “What is man?” is asked in awe — that God should be intrigued or enchanted by him, or loyal to him. Any sufficient answer would go some way toward answering “What is God?””

[10] Robinson afirma que as correntes neodarwinianas, que argumentam que o ser humano é uma espécie de primata egoísta, são um discurso paracientífico – pois fazem alegações a respeito da natureza humana apresentando pouca ou nenhuma prova científica ou filosófica para tais alegações. 

[11] Son of Adam, Son of Man, ensaio presente na obra The Givenness of Things (2015). “The divine image in us, despite all, is an act of God, immune to our sacrilege.”

[12]Open Thy Hand Wide: Moses and the Origins of American Liberalism, ensaio presente na obra When I Was a Child, I Read Books (2012). “In Old Testament monotheism, uniquely, it is humankind who introduce evil into the created order, that same humankind who are made in the image of God and whom God loves.”

[13] Gilead é o nome da cidade ficcional no interior do estado do Iowa, onde se passa a história do romance. Na Bíblia, Gileade é o nome de uma cidade montanhosa, ao sul de Israel, que possuía uma espécie de erva medicinal muito usada para cura. Robinson faz uma alusão à cidade bíblica ao colocar a sua Gilead como um lugar de regeneração.

[14] “So I have spent my life watching, not to see beyond the world, merely to see, great mystery, what is plainly before my eyes. I think the concept of transcendence is based on a misreading of creation. With all respect to heaven, the scene of miracle is here, among us.”

[15] Segundo Santo Agostinho, o mal é um mistério, não existe de fato, mas apenas como uma privação ou depravação do bem. Em Livre arbítrio (1995), o teólogo discute mais detalhadamente esta questão.

[16] O tema do sofrimento é melhor trabalhado no terceiro livro da série, Lila (2014), em que acompanhamos a história da esposa de John Ames, e sua peregrinação cheia de misérias, privações e violências, até a chegada em Gilead.

[17] Jack se torna um dos personagens mais importantes de Robinson. Em Home (2008), a história de seu retorno ao lar é narrada pela perspectiva de Glória, sua irmã; em Jack (2021), último livro da série, a história de vida do personagem, durante os anos fora de casa, é relatada.

[18] Confissão de Fé de Westminster: Artigo terceiro — Capítulo IX: Do livre-arbítrio. 

[19] Confissão de Fé de Westminster: Artigo quarto — Capítulo X: Da vocação eficaz. 

[20] Sobre a tese da dupla predestinação em Calvino — Institutas da Religião Cristã (2009), segundo tomo, livro 3, capítulo XXIV.

[21] No ensaio Graça e ser: o papel da eleição graciosa de Deus na ontologia teológica de Karl Barth, de Bruce McCormack, presente no livro Manual de Cambridge para Karl Barth (2023), excelente livro introdutório aos diversos aspectos, polêmicas e diálogos possíveis da obra de Barth.

[22] Obviamente, este artigo não pretende discutir profundamente as divergências e convergências entre a teologia reformada tradicional e Karl Barth; o interesse aqui é mostrar como essas tensões estão presentes de forma consciente em Gilead. Na verdade, mostrar como uma discussão teológica milenar aparece em um romance contemporâneo, nos dilemas pessoais dos próprios personagens.

[23] O próprio Calvino, a despeito de afirmar a eleição para a condenação, também reconhece o imenso mistério que é a doutrina da predestinação: “A primeira coisa é que se lembrem de que, quando querem saber os segredos da predestinação, penetram no santuário da sabedoria divina, no qual todo aquele que entra com ousadia não encontra como satisfazer sua curiosidade e mete-se num labirinto do qual não pode sair” (CALVINO, 2009, p, 377).

[24] A história de Jack e seu casamento com Della é narrada no quarto livro da série, Jack (2020).

[25] Gilead é também um romance bastante político. Neste artigo, não foi possível abordar essas questões, mas o romance discute a questão racial na história estadunidense com bastante eficácia e compaixão. O avô de Ames, por exemplo, era um abolicionista militante, que defendia que o Reino de Deus não poderia jamais comungar ou aceitar a escravidão; quando Ames era criança, uma igreja de pessoas negras é queimada em Gilead, evento que afasta grande parte da população negra da cidade; quando Jack revela estar ilegalmente casado com uma mulher negra, a obra acrescenta mais uma camada na discussão racial, já que a esposa dele, Della, também advém de uma família religiosa, e que também não aceita o casamento. É também o seu relacionamento (sofrido) com uma mulher negra que promove uma mudança radical no caráter de Jack — mostrando, mais uma vez, a maneira misteriosa como reconciliação e transformação acontecem na vida de uma pessoa.