Antonio Genivaldo Cordeiro de Oliveira
Editor da Teoliterária. Doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP e Professor do PPG em Teologia da PUC-SP. ORCID: 0000-0002-2076-6973. Contato:agcoliveira@pucsp.br/genoli73@gmail.com
O presente número da Teoliterária traz o dossiê das conferências apresentadas no IV Colóquio Internacional “Literatura e ética: niilismo e antiniilismo” que buscou “pensar o significado estético, filosófico e religioso de uma prática antiniilista da escritura”. Nos artigos diversos são trazidas discussões que incluem temas da música contemporânea de Bob Dylan, da poesia brasileira de Augusto dos Anjos, de romances de Marilynne Robinson, das Estórias de Fadas de John Ronald Reuel Tolkien e das discussões sobre o artivismo indígena de Jaider Esbell, perpassadas pelas interações com o entendimento divino próprio do entendimento ocidental judaico-cristão, desafiado pelas diversas leituras desses autores.
Diante deste quadro geral do presente número, poderíamos nos perguntar se este não seria uma continuação da “velha divergência” - palaià diaphorá entre filosofia e poesia, incluindo o entendimento do divino, consequente a teologia, considerada– no Livro X da República de Platão. Nas discussões desta obra estavam consideradas as questões da existência humana e sua relação com o “Divino” presentes nas tragédias gregas, buscando um entendimento da razão, próprio do pensar filosófico. Também eram consideradas a participação dos aedos, os que cantavam os grandes feitos dos homens e dos deuses. Questionavam-se as “mentiras forjadas” na busca de depurar os elementos mitológicos que poderiam corromper o êthos inspirador da organização e governo da pólis, bem como da alma humana que anseia por justiça[1].
A interação entre o pensamento metafísico e o poético, incluindo as discussões sobre o divino e as implicações práticas, marcam, portanto, a longa história do pensamento ocidental com diferentes interações entre a filosofia, a produção literária e as teologias. As discussões do Dossiê que tem sua apresentação própria (pags. 12-16), trazem elementos para se repensar o niilismo e seus expoentes. O ensaio de Gérard Bensussan, La philosophie est un nihilisme, com base nas poeta inglês, Samuel Taylor Coleridge, apresenta a necessidade da “suspensão voluntária da não crença” e de uma “fé poética”, para que se possa produzir ou mesmo ler uma obra literária e demais obras de arte que demandam a contemplação e a imaginação. Este questionamento é aprofundado no artigo de Andrea Potestà ao tratar o niilismo nietzschiano a partir da “errância em um deserto infinito”. Portanto, de ser um conceito puramente racional, Nietzsche usa uma metáfora, a linguagem da ficção para considerar a possibilidade de se “abandonar ao desespero”. O resgate do entendimento histórico do niilismo, no contexto da literatura russa contextualiza a implicação ética e social que implicava esta posição. A consequente “fadiga da vida” resultante da opção niietzchiana, é reconsiderada a partir da posição do filósofo Jean-Luc Nancy ao resgatar o entendimento teológico do conceito ex nihilo, aberto tanto à “absoluta falta de sentido” quanto à “possibilidade do ser”. No artigo Tolstói e a escritura do niilismo, Jimmy Sudário Cabral, dialoga com os dois autores anteriores sobre as interações entre as experiências filosóficas, artísticas e literárias e suas possíveis contribuições para o questionamento prático de como viver? O contexto da modernidade que se impunha à literatura russa, vivido por Tolstói, são contrapostos às inspirações de Simone Weil.
A abertura a posição da total “possibilidade de ser” é aprofundada no artigo de Maria Clara Lucchetti Bingemer, Etty Hillesum: Teopoética E Testemunho, e por Marcio Cappelli e Alex Villas Boas, em A literatura como exercício espiritual em José Tolentino de Mendonça. No primeiro caso, Bingemer, apresenta a teopoética testemunhal de Etty e sua vida de oração, empatia e compaixão com a dolorosa experiência no campo de Westerbork até sua morte, na câmara de gás no campo de Auschwitz. Seus escritos revelam como a inspiração divina a levou ao crescente amor pelo seu povo, partilhando o “destino de massa” no sofrimento, embora individualmente pudesse ter gozado de privilégios. O ato de ajoelhar-se diante de Deus, mesmo quando este parece não responder ao sofrimento de seu povo eleito, abre horizonte para um entendimento distinto do Deus onipotente, onipresente, onisciente da teologia convencional, a um “Deus fraco e impotente, que sofre com a vítima em vez de aniquilar o carrasco”. Seus escritos, revelam a interação do judaísmo e do cristianismo, especialmente na utilização das metáforas do trigo que cresce (Mateus 13), da chuva que cai (Isaías 55) e dos lírios do campo (Lucas 12; Mateus 6). No segundo, Capelli e Vilas Boas, discutem o “Elogio da Sede”, do cardeal José Tolentino Mendonça, como exemplo da aproximação entre poesia e mística dentro da dinâmica dos exercícios espirituais, em discussão que inclui a práxis da vida cristã e exemplo de que a literatura pode ser uma ferramenta para o evangelho ao mostrar como “o poema abraça aquela impureza que o mundo repudia”, próprio da mensagem cristã, tal como Jesus fez e ensinou.
Na sessão artigos diversos, Carlos Ribeiro Caldas Filho e Felipe Anunciação em seu artigo, Recepção do texto bíblico em Man gave name to all the animals de Bob Dylan, faz o que ele chama de “’triálogo’ crítico entre literatura, música e a teologia” que não se limita ao estudo da letra como tem sido comum nas análises publicadas, mas traz o diferencial de analisar a música em sua composição técnica, unida à exegese do texto bíblico inspiracional da composição abordada. Este artigo se mostra como mais um prolongamento da “velha divergência” que incluía a crítica aos aedos, os cantores que interpretavam os feitos dos homens e dos deuses.
Em Makunaima e Melquisedeque: Preocupações Teológicas Decoloniais, William Rezende Quintal e Carolina Bezerra de Souza mostram a ambiguidade da figura de Melquisedeque para justificar a autoridade sacerdotal de Jesus, tal como abordado na Epístola aos Hebreus em sua intrínseca. Esse personagem bíblico do primeiro Testamento é resgatado, recuperando a figura de Abraão, para defender um sacerdócio que não tivesse a linhagem levítica. Isso é possível graças à metodologia de leitura bíblica de Wilhelm Egger, com uma preocupação decolonial capaz de ajudar no resgate dos discursos dos oprimidos, muitas vezes apropriados por discursos dominadores que incluem a “violência simbólica”. Jaider Esbell, “artivista indígena, xamã e profeta”, resgata a figura de “Makunaima”, não como “um preguiçoso deitado em sua rede”, mas como a figura do anti-herói que permite o resgate da “ancestralidade coletiva” que encarna uma “ética do cuidado”, capaz de oferecer uma inspiração de resistência e pôr em diálogo as mitologias de povos originários como os macuxis, e a tradição judaico-cristã.
Thiago Franciscono artigo O mistério do coração humano: ficção e teologia, baseado no romance Gilead de Marilynne Robinson, mostra pensadores cristãos como Agostinho e sua influência nos pensadores protestantes João Calvino, Jonathan Edwards, Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer em vários de seus temas teológicos: destino, predestinação e graça como parte de dramas familiares contemporâneos.
O artigo A Presença da Religiosidade em Augusto dos Anjos, escrito por Miguel Costa, discute o contexto histórico da temática religiosa que marca a obra deste poeta brasileiro, levou a questionamentos sobre a marca de elementos religiosos em sua produção literária. A análise apresentada de um de seus poemas com a figura do cordeiro e a dimensão sacrificial, como parte da teologia do perdão ou da expiação dos pecados humanos como imagem possível da condenação de Jesus e das reflexões teológicas de sua morte e paralelos históricos, como os traçados por Augusto dos Anjos.
No texto, A Terra das Fadas, de John Ronald Reuel Tolkien: Feéria como a “terra média” entre o mundo dos sentidos e o mundo das ideias, Diego Genu Klautau mostra como o consagrado autor de O Hobbit ou em O Senhor dos Anéis, foi marcado por uma compreensão de mundo resultante da longa tradição religiosa e filosófica católica, em conexão com a capacidade criativa e imaginativa, para formar imagens que podem alcançar ou promover formas universais de abstração. A análise mostra “a capacidade humana de contribuir artisticamente para o enriquecimento e o florescimento da obra divina, no exercício da fantasia”.
A partir desta exposição podemos retomar a discussão da “velha divergência” que acabou por contrapor o pensamento metafísico, incluindo as discussões do divino que posteriormente se concentrou nas formulações teológicas cristãs e seu distanciamento do poético. Como nas discussões mais aprofundadas de Paulo Marchelli (2017) e, Maria da Penha villela-Petit (2003),mencionadas anteriormente, isso se deve a “leituras caricaturadas” da discussão sobre o tema. O resgate da dimensão prática, ou a preocupação com a formação de um ethos crítico, que busca depurar imagens incompatíveis com o divino que podem ser construídas em todos os tempos e tradições teológicas têm neste núme-ro mais uma contribuição na busca de interação entre o pensar filosófico, teológico e suas interações com as produções literárias.
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1. Para maior aprofundamento deste tema indicamos os seguintes textos: MARCHELLI, Paulo. Uma revisão sobre a antiga divergência entre filosofia e poesia</b>. In A Palo Seco – Escritos de Filosofia e Literatura, São Cristóvão-SE: GeFeLit, n. 9, p., 2017. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/apaloseco/article/view/8080. Acesso em: 23 dez. 2023. p. 08–23; VILLELA-PETIT, Maria da Penha. Platão e a poesia na república. In kriterion, Belo Horizonte, nº 107, Jun/2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/kr/a/wjBXRMpDK7nPDjcT7ZCVhTn/#. Acesso em: 23 dez. 2023. p.51-71.