Literatura e ética: niilismo e antiniilismo

Apresentação do Dossiê

Jimmy Sudário Cabral
Professor no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Coordenador do Núcleo de Estudos da Religião em Dostoiévski e Tolstói, Nerdt jimmy.sudario@gmail.com  


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O presente dossiê é o resultado das conferências apresentadas no IV Colóquio  Internacional  Literatura  e  ética:  niilismo  e  antiniilismo,  realizado  pelo  Núcleo  de  Estudos  da  Religião  em  Dostoiévski  e  Tolstói,  entre  os  dias  4  e  5  de  julho  de  2023,  no  âmbito  das  ativi-dades  do  Programa  de  Pós-Graduação  em  Ciência  da  Religião  da  Universidade  Federal de Juiz de Fora. 

O  quiasma  entre  niilismo  e  antiniilis-mo, que atravessa a arte e a filosofia, é o fil rouge que entrelaça os artigos do dos-siê  que  o  leitor  tem  em  mãos.  Orbitando  em  torno  de  um  procedimento  poético,  filosófico e literário que procurou subtrair--se do isolamento da consciência, a meta-física do idealismo que Jacobi chamou de niilismo, e indo em direção a uma “palavra maior  que  eu  mesmo”  (Bakhtin,  2017),  o  dossiê busca pensar o significado estético, filosófico e religioso de uma prática antiniilista da escritura filosófica e literária. O verso de Emmanuel Levinas, “o poema é o acto espiritual por excelência”, que abre o artigo A literatura como exercício espiritual em José Tolentino Mendonça, de  Marcio  Cappelli  e  Alex  Villas  Boas,  apresenta-nos o tom de uma escritura que buscou ultrapassar os limites do  “mesmo”,  a  qual,  se  escutarmos  a  leitura  de  Levinas  da  poesia  de  Paul Celan, pode ser definida como um ato poético que escapa aos “li-mites do ser e do não ser”, isto é, o entendimento da “poesia como uma modalidade inaudita do autrament qu’être” (Levinas, 1976, p. 55-56). A evocação do filósofo da ética como filosofia primeira  deixa  explícitos  os  cenários nos quais niilismo e antiniilismo se bifurcam, ora oscilando no interior dos limites metafísicos do ser e do não ser, o niilismo tout court, ora se evadindo no interior de uma escritura que escapa aos limites me-tafísicos da consciência, num roçar, através da palavra poética, de uma alteridade que guarda uma “significação mais antiga que a ontologia e o pensamento do ser” (Levinas, 1976, p. 56). 

Mas a poesia, como o amor do Don Juan de Albert Camus, guarda em si o absurdo, e, como nos faz saber Levinas, leitor de Proust, nela “tout est vertigineusement possible” (Levinas, 1976, p.119). Se a poesia fosse o bastante, as coisas seriam simples demais! A exegese filosófica da arte, proposta por Levinas no artigo de 1948 La realité et son ombre, coloca-nos diante dos limites da arte, o egoísmo do prazer estético, e da necessidade de cultivo do conceito filosófico, esse “músculo do espíri-to” da filosofia (Levinas, 1994, p.127). O ritmo da arte, como confessou Tolstói a Gorki, “embota a inteligência” (Gorki, 1983, p.17), dissolvendo a mais segura das consciências no interior dos mistérios de Sodoma e Gomorra.  No  entanto,  a  “indecisão  conceitual”,  que  é  a  marca  da  es-critura  de  Levinas,  aparece  como  o  princípio  que  deu  vida  aos  “ritmos  narrativos” de uma filosofia atormentada pela “diferença incomensurável da exterioridade” (Nancy, 2013, p.30). A consciência dos limites da arte, a ambiguidade dos seus ritmos narrativos, sinaliza os riscos do simples gozo estético e, ao mesmo tempo, abre a possibilidade de contato com um “realismo superior” – o advento da alteridade, “autrui comme absence et mystère”, a ruptura definitiva com Parmênides (Levinas, 1976, p.123).

Singular  dessubstancialização  do  Eu!  Tornar-se  inteiro  signo, talvez seja isso. Falar a um outro – o poema – pre-cede toda tematização; o poema deixa ao real a alterida-de que a pura imaginação lhe rouba. O poema cede ao outro uma parcela da sua verdade (Levinas, 1976, p. 53).

Tornar-se inteiro signo, a fim de “conservar o rastro de todas as vo-zes  que  me  atravessam”  (DERRIDA,  2018,  p.  47),  é  o  movimento  de  uma  escritura  que  cede  ao  outro  a  palavra,  inscrevendo  na  realidade  uma experiência (singular dessubstancialização do eu) que torna inope-rante  o  niilismo  de  uma  consciência  presa  aos  limites  do  ser  e  do  não  ser, o gesto antiniilista da escritura que confronta o narcisismo metafísico do idealismo e neutraliza as ideias escritas sob o prisma “do subsolo”.

O  artigo  de  Gérard  Bensussan,  La  philosophie  est  un  nihilisme, oferece,  a  partir  de  uma  leitura  das  teses  de  Jacobi,  uma  genealogia  do  niilismo  que  demonstra  como  o  golpe  especulativo  do  idealismo  se  encontra no fundamento da determinação da filosofia como niilismo. A partir da ideia filosófica e literária de “interrupção do conatus” (le cona-tus interruptus),  Bensussan  aprofunda  a  compreensão  levinasiana  de  desinteressamento  e  reconhece,  nas  variadas  formas  de  “poéticas  do  involuntário”, a materialização de uma escritura antiniilista. 

Partindo  da  singularidade  da  experiência  de  Nietzsche  do  niilismo,  Andrea  Potestà  nos  faz  ver  como  o  conceito  nietzschiano  de  errânciapode traduzir os modos como o niilismo aparece na escritura literária, criando um ethos do niilismo que contamina a palavra filosófica. Nos ras-tros de Heidegger e Jean-Luc Nancy e da exigência nietzschiana de um “dizer errante” da linguagem, Potestà nos oferece uma leitura do niilismo como o ethos necessário da escritura, afirmando a errância como o lugar da experiência filosófica e literária.

A leitura de Maria Clara Bingemer da escritura de Etty Hillesum traduz o testemunho e a errância de uma jovem judia executada em Auschwitz, em novembro de 1943. A experiência de Hillesum com a literatura, que ofereceu os caminhos de mediação e de descoberta da sua vida interior, traduz  a  dessubstancialização  que  se  tornou  “signo”  de  uma  escritura  que nasceu da curiosidade insaciável pela alteridade. A “relação entre a literatura e a vida”, o contato com o mistério da realidade, traduz, como mostra Bingemer, o cerne da compreensão levinasiana do poema como ato espiritual por excelência.

O  artigo  de  Marcio  Cappelli  e  Alex  Villas  Boas,  A literatura como exercício espiritual em José Tolentino de Mendonça,demonstracomo a  literatura  pode  ser  o  veículo  de  uma  espiritualidade  que  interrompe  a  autorreferencialidade  da  teologia  tradicional.  A  partir  da  poética  de  Mendonça,  a  poesia  é  apresentada  como  um  “exercício  espiritual”  no  qual “mística e literatura se encontram”. A experiência de uma mística da nudez, que não deixa de evocar o desinteressamento levinasiano, apa-rece como resultado de uma prática poética que “nos adentra sempre na experiência do inominável, no silêncio da vida nua”.

Tolstói e a escritura do niilismo, de Jimmy Sudário Cabral, analisa a presença e o significado do niilismo na arte e no pensamento de Tolstói. Em diálogo com as teses de Bensussan, no artigo La philosophie est un nihilisme, Cabral argumenta que a criteriologia filosófica de Jacobi, a sua definição do idealismo como um niilismo, alcança o essencial do que se pode chamar de niilismo de Tolstói. 

Referências

BAKHTIN,M. Notas  sobre  literatura,  cultura  e  ciências  humanas. Organização, tradução, posfácio e notas: Paulo Bezerra. Notas da  edição  russa:  Serguei  Botcharov.  São  Paulo:  Editora  34,  2017. 

DERRIDA,  J.  Essa estranha instituição chamada literatura:  uma  entre-vista com Jacques Derrida. Belo Horizonte: UFMG, 2014.GÓRKI, M. Leão Tolstói. Tradução de Rubens Pereira dos Santos. São Paulo: Perspectiva, 1983 

LÉVINAS, E. La réalité et son ombre. In: LÉVINAS, E. Les imprévus de l’histoire. Montpellier: Fata Morgana, 1994. p. 107-127.LÉVINAS, E. Noms props. Paris: Fata Morgana, 1976

NANCY, J.-L., Préface. L’intrigue littéraire de Lévinas. In: NANCY, J.-L.– COHEN-LÉVINAS, D. (Orgs). Eros, littérature et philosophie iné-dits, III. Paris: Imec-Grasset, 2013, p. 9-30.