Pacto e Exorcismo no cordel  ‘A Mulher que Enganou o Diabo’ Pacto e Exorcismo no cordel  ‘A Mulher que Enganou o Diabo’ Pacto e Exorcismo no cordel  ‘A Mulher que Enganou o DiaboPacto e Exorcismo no cordel ‘A Mulher que Enganou o Diabo’
Pact and Exorcism in the cordel ‘The Woman who deceived the Devil’ 

Alair Matilde Naves
*Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC Minas), Contato: professor.alairnaves@yahoo.com.br 

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Resumo:

Este artigo pretende mostrar uma compreensão possível de pactos com o Diabo e de exorcismos desde o período colonial e situar esta mentalidade presente no cordel ‘A Mulher que enganou o Diabo’, de Manoel D’Almeida Filho. O objetivo é analisar os pactos realizados com o Diabo e verificar a inversão de poder entre a mulher e o Diabo, que é exorcizado ao final da narrativa. O referencial teórico de Laura de Mello e Souza corrobora na discussão e compreensão do contexto histórico colonial, período em que a mentalidade de pactos com o Diabo e de exorcismos povoava o imaginário popular. A teopoética é o viés da compreensão deste trabalho. Antônio Carlos Magalhães e Salma Ferraz fazem o pano de fundo teopoético deste estudo e auxiliam na aproximação entre a teologia e a literatura. A metodologia escolhida é a pesquisa bibliográfica, promovendo a compreensão do imaginário cordelista sobre pactos e exorcismos e a leitura analítica do folheto escolhido. Uma possível forma de exorcismo cultural e literário, imagético e espiritual do Diabo aparece como resultado da enganação promovida pela mulher, e se estabelece por meio do humor, da pilheria e da ridicularização aplicadas ao Tinhoso 

Palavras chave: Cordel; Diabo; Exorcismo; Pacto com o Diabo; Teopoética. 

Abstract

This paper intends to show a possible understanding of pacts with the Devil and exorcisms since the colonial period and to situate this mentality present in cordel ‘The woman who deceived the Devil’, by Manoel D’Almeida Filho. The objective is to analyze the pacts made with the Devil and to verify the inversion of power between the woman and the Devil, who is exorcised at the end of the narrative. The theoretical referential of Laura de Mello e Souza corroborates the discussion and comprehension of the colonial historical context, a period in which the mentality of pacts with the Devil and exorcisms populated the popular imaginary. Theopoetics is the understanding bias of this work. Antônio Carlos Magalhães and Salma Ferraz provide the theopoetic backdrop for this study and help in the approximation between theology and literature. The methodology chosen is bibliographic research, promoting the understanding of the cordel imaginary about pacts and exorcisms and the analytical reading of the chosen leaflet. A possible form of cultural and literary, imagistic and spiritual exorcism of the Devil appears as a result of the deception promoted by the woman, and is established through humor, pilhery and ridicule applied to the Wicked One. 

Keywords: Satan; Devil; John Milton; Paradise Lost. 

Introdução 

Anarrativa do folheto ‘A Mulher que enganou o Diabo’ (ALMEIDA FILHO, 1986) apresenta dois pactos com o Diabo e um exorcismo realizado pela mulher que o engana. O cordelista descreve a história de Maria de Conceição, uma mulher bonita e trabalhadora que se casou com Pedro Botelho, um homem preguiçoso e beberrão que desejava ficar rico. Para alcançar seu intento, Pedro fez um pacto com o Diabo, dando-lhe em troca sua alma. 

Maria, por sua vez, para não perder seu marido, fez uma aposta (novo pacto) com o Diabo por meio de um contrato assinado com sangue, de modo que o Tinhoso deveria realizar sete mandados no prazo de um ano. O Diabo aceitou a aposta com a condição de levar a alma de Pedro e Maria com corpo e tudo.

Dois pactos foram estabelecidos: no primeiro, Pedro Botelho entrega sua alma em troca de riqueza; no segundo, Maria da Conceição pretende livrar a alma de seu marido das unhas do Tinhoso. Ela se coloca de corpo e alma na aposta com o Diabo para livrar Pedro do primeiro pacto. Com sua astúcia, Maria arquiteta um plano a ser cumprido pelo Diabo, estabelecendo em sete mandados nos quais descreve detalhadamente a obra a ser realizada. 

O cordelista deixa subentendido que o Diabo assinou o contrato sem fazer a leitura do mesmo. O Tinhoso estava tão ambicioso por levar Maria com corpo e tudo que acabou sendo enganado e perdeu a aposta dos sete mandados firmados no contrato, por realizar apenas seis. Ao final da trama, Maria da Conceição se livra do Diabo, que derrotado, deu um estouro e voltou para o inferno. Quebrando-se os dois pactos com a perda da aposta, o exorcismo foi realizado. Maria ficou feliz ao lado de Pedro no paraíso construído pelo Diabo. 

O bem e o mal são duas forças antagônicas presentes nos embates em que o Diabo é submetido pelo cordelista. A superação do mal é posta na derrota do Diabo apresentada na narrativa de sua enganação pela mulher. A mulher como a personagem vencedora do duelo com o Diabo recupera a dignidade da figura das mulheres desde Eva, a mulher que foi enganada pela serpente, o mais astuto dos animais na narrativa de Gênesis: 

1 A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse a mulher: “É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?”. 
2 A mulher respondeu-lhe: “Podemos comer do fruto das árvores do jardim. 
3 Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais”. 
4 “Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! 
5 Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal. 
6 A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. (GÊNESIS 3,1-6). 

Eva, enganada pela serpente, apresentou ao seu marido o fruto da árvore proibida, e ele também o comeu. Na narrativa do cordel faz-se uma inversão de poder e de protagonismo, pois no cordel é a mulher que engana a serpente – o Diabo, e salva a alma de seu marido, Pedro Botelho. E ainda, Maria compartilha seus bens com os desvalidos que são levados para sua cidade. 

Numa perspectiva sociológica, a derrota do Diabo pela astúcia da mulher pode significar a vitória dos oprimidos contra os opressores, desde o período colonial. A cidade construída pelo Diabo e os bens adquiridos por Maria da Conceição, assim como a partilha destes bens com os desvalidos, podem sinalizar a realização do sonho de um paraíso, de uma sociedade justa, igualitária e fraterna, em que todos participam em pé de igualdade e repartem entre si o lucro de seu trabalho. 

Maria da Conceição é um nome de relevância na trama contra o Diabo, por prefigurar a vitória anunciada em Gênesis 3,15, da profecia da descendência da mulher que pisará a cabeça da serpente, imagem associada com frequência a Maria, a mãe de Jesus, Nossa Senhora da Conceição no imaginário popular. Esta associação emerge de uma interpretação mariológica em que é Maria a mulher que esmaga a cabeça da serpente (MURAD, 2011, vd. 02). A versão bíblica que utilizamos neste estudo é da Bíblia Católica Online, citada nas referências. 

1. Pactos com o Diabo

Os pactos com o Diabo fazem parte de negociações estabelecidas com Satanás em busca de riqueza, fama, sucesso, vantagens e prestígio. Segundo Laura de Mello e Souza, (1986), a ideia de adesão ou sujeição ao Diabo remete a um tempo folclórico em que os demônios eram familiares e domésticos, alguns até brincalhões, enredeiros e bons. Esta mentalidade medieval tem influência da mitologia germânica dos gnomos e dos duendes. Na tradição mágica medieval a vontade dos demônios era dominada pelos homens, pois havia uma concepção de demônios familiares. 

A tradição europeia do demônio familiar alcançou o imaginário colonial de tal modo que a figura do Diabo ganhou traços familiares e ambíguos na cultura popular, sendo às vezes amigo e parceiro, outras vezes, vingativo e cruel. Segundo Souza, “Diabos podiam ser invocados a cada instante para ajudar no jogo de cartas, para servirem de coniventes amistosos em desabafos verbais” (SOUZA, 1986, p. 377). 

A partir dos séculos XVI e XVII, a situação se inverteu e o Diabo passou a ser servido. Houve uma inversão de poder, de modo que ser humano deixou de ser servido e se sujeitou ao demônio. As pessoas aderiam e serviam ao Diabo em troca de favores. Percebe-se, portanto, uma mudança de compreensão sobre a ação do Diabo e sua relação com o ser humano, pois “até o século XV, servia ao ser humano, podendo variar o grau de sujeição” (1986, p. 143). 

O etnógrafo e pesquisador pernambucano Mário Souto Maior (1920- 2001) nos ajuda a compreender a presença e a participação do Diabo na cultura popular nordestina. 

E porque Deus e o Diabo participam tanto da linguagem nordestina? Sua secular estrutura religiosa constitui um dos fatores mais importantes dessa participação. Talvez a adversidade da natureza quase sempre madrasta e incerta, o trabalho duro do campo, a injustiça social, o abandono em que vive ainda o nordestino, também sejam responsáveis por essa angústia, por esse desespero. Nos momentos de admiração e de surpresa, de tristeza ou de alegria, é muito comum o uso da parte das mulheres, principalmente, de expressões como “Minha Nossa Senhora!”, “Nossa Mãe do Céu!”, “Santo Deus!”, “Se Deus quiser!”, “Deus é quem sabe...”, “Graças a Deus!” Mas o Diabo e o inferno são muito mais frequentes no diálogo do nordestino “homem”, talvez porque aconteçam mais coisas ruins do que boas em sua vida. E, para desabafar, nada como um “Com todos os diabos”’ já que o Diabo é sinônimo de tudo o que é ruim. (MAIOR, 1975, on-line). 

De acordo com Mário Souto Maior (1975), “Deus” e “Nossa Senhora” também estão presentes na linguagem popular nordestina, especialmente em expressões usadas por parte das mulheres. O “Valei-me Nossa Senhora” é expressivo no cordel ‘A Mulher que enganou o Diabo” (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 5), como apelo de Maria da Conceição para poder vencer o ‘bicho’ – Diabo 

Segundo Souza (1986, p. 249), nos séculos XVI e XVII, se pensava que a existência do Diabo era a prova máxima da existência de Deus. A personificação do Diabo foi uma catarse artística do imaginário coletivo para lhe dar forma e realismo, e para fazer contraponto à perfeição divina. Sua imagem acabou sendo cristalizada nos discursos eruditos e ganhou formatos diversos na cultura popular. A demonização dos negros foi um destes formatos, como podemos ver nos versos de Almeida Filho: 

Maria olhou bem o negro 
E pensou consigo: – “Agora 
Vejo o Diabo em minha frente; 
Valei-me, Nossa Senhora, 
Dai-me força para que 
Vença o ‘bicho’ sem demora”. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 5). 

O denegrimento dos nativos foi uma prática dos colonizadores desde sua chegada. Esta prática foi aplicada também aos nativos do continente africano, trazidos como escravos para o Brasil. 

No período colonial o Diabo era solicitado e invocado com frequência, se fazia uso frequente de recursos às forças demoníacas, apesar de sua aparência repulsiva e aterrorizadora. Muitas invocações eram feitas diretamente ao Diabo, outras vezes as pessoas se valiam das feiticeiras, consideradas pessoas especiais que recebiam os préstimos dos Diabos e mediava a negociação com seus clientes por meio de seus serviços (SOUZA, 1986, p. 252-253). 

Para Maior, o período colonial foi o apogeu do protagonismo do Diabo entre os homens: 

Naquele tempo, o Diabo estava no apogeu de sua fama, respeitado e temido no mundo Inteiro, personagem central de tudo quanto era lenda, estórias e crendices armazenadas desde o começo do mundo. Os tripulantes das caravelas trouxeram para cá estas crenças. Povo muito aventureiro, o português gostava de procurar novas terras, negociar com outros continentes, enriquecendo assim sua herança mística, fortalecendo o que já tinha de mítico no seu mundo Interior onde se uniam o real e o Imaginário. Cada um respeitava o temia o Diabo conforme o uso de sua província. No entanto, era generalizada a crença de que se alguém pronunciasse o nome do Diabo, ele poderia aparecer. (MAIOR, 1975, on-line).

Na narrativa de Almeida Filho, temos o intento de Pedro Botelho de ficar rico por meio de um pacto com Satanás, chamando por ele e afirmando, inclusive, seu desejo entregar ao Diabo, além da sua, a alma da própria esposa: 

Se ele me fizesse rico, 
Tão rico como ninguém, 
Além de lhe dar a alma 
Pelo que me fez de bem, 
Para mais recompensá-lo 
Daria a sua também. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 4).  

Sabendo das intenções de seu marido, ao receber a visita do Diabo metamorfoseado em forma de gente, Maria elabora seu plano para enganá-lo e assim resgatar a alma penhorada de Pedro Botelho. É o que veremos a seguir. 

2. Os pactos com o Diabo no cordel escolhido

No cordel A Mulher que enganou o Diabo (1986), Manoel D’Almeida Filho coloca a figura da mulher Maria da Conceição como oponente do Tinhoso, enganando o Diabo para salvar seu marido: 

Segundo uma lenda, até 
O Diabo foi enganado 
Por uma mulher bonita 
Que o deixou desmantelado: 
Trabalhou que quase explode, 
Findou desmoralizado. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 3)

O cordelista situa a condição de Maria, casada com um homem preguiçoso que chamava pelo Tinhoso em vista de um pacto: entregar sua alma em troca de riqueza: 

Apesar de ser bonita 
Casou com um preguiçoso 
Que. Além de não trabalhar, 
Chamava pelo Tinhoso... 
Maria todos os dias 
Reclamava do esposo: 
- Não chame por Satanás, 
Que não precisamos dele. 
O marido respondia: 
- Eu confio tanto nele 
Que, se me desse riqueza, 
Eu daria a alma a ele. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 4). 

O cordelista coloca nos versos a negociação de Pedro Botelho feita diretamente com o Diabo, sem necessidade de mediadores como sinalizado por Souza (1986, p. 252-253). Pedro afirma a Maria sua confiança no Tinhoso e ainda diz que poderia recompensá-lo com a alma dela. Maria chama seu marido de peçonhento e rebate a ameaça de Pedro colocando a mãe dele no intento medonho: 

Maria disse: – Você 
Tem a alma de peçonha, 
Ao invés de dar a minha 
Dê a sua que é medonha 
E mais a de sua mãe, 
Preguiçoso, sem-vergonha! (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 4). 

Por sua vez, Pedro manda Maria se calar-se e afirma que em troca de matéria (bens materiais) o Diabo poderia carregar sua alma; 

Pedro Botelho, o marido 
De Maria, disse: – Pegue 
A língua e soque na boca 
– De me atender não se negue; 
Eu gozando da matéria, 
A alma o Diabo carregue... (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 4) 

Diante da determinação de Pedro, Maria faz dois contrapontos: primeiro contrapõe o marido que tem um bigode que nada vale, e, em seguida diz que o Diabo não pode com ela. O cordelista faz alusão ao ditado popular que diz “com mulher de bigode, nem o Diabo pode”1 . Maria afronta a Pedro: 

Porém Maria gritou: 
– Mal empregado o bigode 
Que você usa no beiço... 
Melhor que fosse num bode 
– Enquanto você se entrega, 
Comigo o Diabo não pode. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 5). 

A figura do Diabo é muito popular na atmosfera religiosa que envolve os poetas populares, segundo Mário Souto Maior: 

Entre a população rural, principalmente, o Diabo é muito temido pelo mal que faz. Se não choveu, se a vaca morreu mordida de cobra, se alguém caiu do cavalo e quebrou a perna, quem leva a culpa é o Diabo. Os poetas populares, nascidos e criados nos brejos, nas caatingas, nos pés de serra, retratam, em seus folhetos, toda a atmosfera religiosa que envolve o nosso homem da zona rural, onde a figura do Diabo é muito popular. (MAIOR, 1975, on-line).

E assume formas e expressões que se consagram na filosofia popular: 

Nos provérbios, que são a sabedoria e a filosofia do povo, o Diabo também não perdeu a vez de mostrar seu espírito maligno, sempre procurando uma maneira de interferir na vida das pessoas. Vamos encontrar muitos provérbios nos quais o Diabo atua como força do Mal: [...] “Quando Deus dá a farinha, o Diabo rasga o saco / Com mulher de bigode, nem o Diabo pode” [...] (MAIOR, 1975, on-line).  

Na certeza de que que o Diabo não poderia consigo, Maria se firmou com sua fé em Deus: 

E digo mais – fique certo 
– Com a fé que tenho em Deus, 
Se o Diabo vier aqui 
Com os falsos planos seus, 
Há de perder o trabalho 
Para os argumentos meus. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 5) 

Mas, Pedro tinha certeza de sua negociação, apesar das discórdias da esposa, e continuava insistente no pacto com o Diabo: 

Então, enquanto Maria 
Do marido discordava, 
Ele sucessivamente 
Pelo Satanás chamava 
Para fazer o negócio 
Da alma que planejava. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 5). 

Valendo-se de sua popularidade, o Diabo aceita a chamada de Pedro e comparece em sua casa metamorfoseado num homem negro. Pedro não estava em casa naquela hora e o capeta acabou-se enrolado nas tramas de sua mulher: 

Um dia a mulher estava 
Fazendo em casa um pudim 
– O Pedro havia saído: 
Foi beber num botequim –, 
Quando apareceu um preto 
Que foi perguntando assim: 
– Dona, me responda se 
Mora aqui Pedro Botelho, 
Pois ele vem me chamando 
Para lhe dar um conselho; 
Assim, venho saber se 
Dessa mata espirra coelho. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 5). 

Maria, depois de reconhecer que o visitante era o próprio Diabo em pessoa, se apressa em resolver a questão e afirma que é responsável pelos negócios de seu marido: 

Respondeu: – O meu marido 
Não está. Diga o que quer, 
Posso lhe atender por ele, 
Faço tudo o que puder. 
Disse o preto: – Não, senhora. 
Não me entendo com mulher! 
Maria disse: – Por quê? 
Se você compareceu 
E só se entende com Pedro, 
A viagem já perdeu, 
Porque os negócios dele 
Quem resolve aqui sou eu. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 6). 

O Diabo aceita o desafio de se entender com mulher e revela o negocio que vem realizar com Pedro: 

O negro disse: – O negócio 
Era somente com ele 
Mas como a senhora acha 
Que pode se montar nele, 
É para lhe dar riqueza 
Em troca da alma dele. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 6). 

Foi então, que Maria propôs ao diabo um novo pacto por meio de um contrato assinado com sangue: 

Maria, mais uma vez 
Usando o sexto sentido, 
Entendeu perfeitamente 
As intenções do bandido; 
Armou-se para enganá-lo 
E não perder o marido. 
Então disse: – Muito bem, 
Vamos fazer uma aposta 
Escrita em um documento; 
Com os termos da proposta 
Nossa assinatura em sangue 
No contrato fica posta. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 6). 

Em sua astúcia, a mulher garantiu num documento, escriturado e selado com sangue. A assinatura selada com sangue seria sua garantia da vida. Em seguida, afirma a garantia do pacto: 

Cada um guarda uma cópia 
Como se fosse um retrato 
Do que foi escriturado, 
Porém quem quebrar o trato 
Perderá todo o direito 
Pelo que tem no contrato. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 6). 

O Diabo, por sua vez, aceita a aposta, mas coloca uma condição a mais: levar junto Maria com corpo e tudo. Ele não esconde seu interesse pelo corpo da mulher: 

O preto disse: – Eu aceito 
Mas com uma condição: 
Que a sua alma também 
Entre nessa transação, 
Para poder completar 
A minha satisfação. 
Você é muito bonita, 
Tem a pele de veludo. 
Preciso da sua alma 
Para fazer um estudo; 
Ganhando a aposta, vou 
Levá-la com corpo e tudo. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 7) 

Durante a negociação, Maria desconjura da contraproposta do Diabo, mas aceita, fazendo-lhe a ameaça de que não poderá quebrar o contrato: 

Maria respondeu: – Sim, 
Suas ideias imundas 
Serão aceitas, embora 
Sejam as mais vagabundas; 
Porém, quebrando o contrato, 
Você vai para as profundas... (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 7). 

A noção de ‘ideias vagabundas’ alcança a dimensão do desejo sexual presente na contraproposta do Diabo, situação que se repete em outras estrofes. Maria relembra as condições do contrato que não pode ser quebrado. O Diabo autoriza o registro no papel e debocha dando certeza de ganhar a causa, e diz que ainda sairá em vantagem ganhando as duas almas: 

O preto disse: – Querida, 
Não se afobe, fique calma, 
Vou fazer seus mandados 
Para ganhar sua alma; 
Quando chegar no inferno 
Receberá muita palma... 
Pode escrever o contrato 
Que não me recuso a nada, 
Quero ganhar duas almas 
Somente numa jogada; 
Assim, vou “matar dois coelhos 
Com uma só cajadada”. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 7). 

A mulher lavra o contrato com o Diabo, colocando sua alma na aposta para livrar a alma de seu marido, dada anteriormente em troca de riqueza. O preço do contrato e sua garantia é a assinatura feita com sangue. Uma restrição foi registrada: a clausula de perda do trato no caso de descumprimento por parte do Diabo. 

Você tem que me fazer 
Por força de obrigação 
Sete mandados num ano, 
Sem fazer reclamação; 
Faltando um, perde tudo 
Sem ter indenização. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 7). 

Em pensamento, Maria reflete e estabelece sua intenção de derrotar o inimigo com seu pacto firmado num contrato escrito: 

Ouvindo, agora, Maria 
Pensou um pouco consigo, 
Disse de si para si: 
“Estou correndo perigo, 
Porém jamais cairei 
Na boca do inimigo”. 
Vou lhe mostrar, negro ousado, 
Que de mim você não zomba; 
Vai trabalhar sem descanso 
Sem ganhar uma pitomba 
E, quando perder o trato,
Estoura como uma bomba. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 8). 

Ela escreve e assina o contrato e em seguida manda o Diabo assinar também. Ele assina sem duvidar no lugar que Maria manda: 

Com o sangue de um dedo seu 
Fez o contrato e assinou; 
O preto assinou também 
Onde Maria mandou, 
Também com sangue de um dedo 
Que no momento furou. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 8) 

O segundo pacto é firmado! Segundo Almeida Filho (1986, p. 9), o Diabo demonstra pressa em começar seu trabalho depois que o documento foi assinado: “Quero trabalhar, fazer tudo sem demora para receber as almas que ganhar, e cair fora.” E a mulher reafirma que não acredita no cumprimento dos sete mandados por parte do Diabo: 

Maria disse: – Não acho 
Que seja tão fácil assim: 
Você tem um ano para 
Trabalhar só para mim: 
Não creio que faça os sete
Mandados até o fim... (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 9). 

O Diabo afirma que nada e ninguém poderá impedi-lo de cumprir o pacto e ganhar a aposta, a não ser Jesus, nomeado pelo cordelista com letras garrafais: 

O negro disse: – Eu duvido 
Que alguém possa procurar 
Um trabalho tão difícil 
Que eu não venha executar: 
Só se fosse O HOMEM GRANDE 
Pra me desmoralizar. 
Porém acredito que 
Pelo menos dessa vez 
O HOMEM não se intrometa 
No trato que a gente fez, 
Pois vou fazer os mandados 
Todos em menos de um mês. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 9). 

O Diabo teve pressa de cumprir os mandados para levar sua recompensa, mas Maria disse que precisava comunicar sua negociação ao marido. 

A mulher disse: – Não tenha 
Tanta pressa desse jeito, 
Espere por meu esposo 
Que lhe merece respeito; 
Ele precisa saber 
O negócio que foi feito. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 10). 

Maria afirma que a alma de Pedro estaria agora empenhada no segundo pacto, o contrato assinado com sangue. Com isso, o primeiro pacto feito por Pedro seria anulado e por isso ele precisaria tomar conhecimento do segundo trato. 

Embora que ele não ponha 
A colher no nosso prato, 
Porém está com alma 
Empenhada no contrato: 
Por isso tem que saber 
Os termos do nosso trato. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 10). 

Enquanto dialogavam, Pedro retornou do botequim, se deparou com aquela cena e interrogou: “O que quer este tição com a gente (1986, p. 10). A pergunta de Pedro denota o preconceito presente na narrativa, mentalidade presente desde o período colonial. Curiosamente, depois de o contrato ser assinado pelo Diabo é que o Pedro foi informado. Por isso, Maria, dirigindo-se ao seu marido, apresenta-lhe o contratante e o contrato. Diante da pergunta do marido, ela revela quem é o visitante e afirma que assumiu a negociação com o Capiroto: 

Ela respondeu: – Querido, 
Necessita bater palma, 
Ele só veio atender 
Os seus chamados com calma 
Para fazê-lo bem rico 
E depois levar sua alma. 
Porém pode sossegar 
Que não lhe corre perigo 
– O negro é o Capiroto, 
O mais cruel inimigo –, 
Mas não tenha nenhum medo, 
Deixe o negócio comigo. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 11). 

Ela revela o novo pacto que inclui sua própria alma no negócio: 

Ele diz que, além da sua, 
Quer a minha alma também, 
Mas fechamos um contrato 
Que pelo qual ele tem 
De fazer sete mandados, 
Se quiser se sair bem. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 11). 

Em seguida, Maria assegura a Pedro a certeza de que se sairá como vencedora da aposta e adverte que Satanás não fará o que nenhum Diabo faz: 

Porém eu tenho certeza: 
Mesmo sendo Satanás; 
Ele nunca vai fazer 
O que nenhum diabo faz; 
Assim, vai sair correndo 
Para nos deixar em paz. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 11) 

Pedro ficou satisfeito e deu todo o aval para que Maria desse prosseguimento ao cumprimento do contrato. Ela tem segurança na negociação com o Tisnado e demonstra sua força e coragem na interlocução com ele ao longo da narrativa. Segundo o cordelista, este foi o nome assinado pelo Diabo no contrato (1986, p. 11). 

Ao estabelecer seus mandados, Maria confunde o Diabo com elogios que o deixam todo derretido. O Diabo, o ser do caos e da confusão, no desejo de levar as duas almas para o inferno, nem percebe a astúcia da mulher. Ela relembra-o várias vezes de que poderá perder o contrato se não cumprir todos os mandados. 

A certa altura da narrativa, o Diabo inclui no diálogo a fruta que Adão comeu – o cordelista usa fruta para fazer alusão ao sexo, objeto de desejo do Diabo: 

Você vai mesmo em seu corpo 
Pois em você tudo é meu, 
Mas não pense que me engana 
Com a maçã que escondeu; 
Você vai ter que me dar 
A fruta que Adão comeu. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 20). 

Maria contrapõe diretamente o próprio Diabo e sua intenção indecente e manda que ele coma a maçã da própria mãe: 

Maria disse: – Atrevido, 
Sua intenção é medonha, 
Porém você vai comer 
Uma coisa que nem sonha: 
A maçã da sua mãe, 
Descarado, sem vergonha! (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 20). 

Ao final da trama, a mulher ironiza a ignorância do Diabo depois de enganá-lo com sua astúcia: 

Maria disse: – Está vendo 
Que você não sabe nada? 
Para ganhar uma alma 
Recebeu uma chamada, 
Veio atrás do meu marido, 
Caiu na minha cilada. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24). 

Dois pactos foram estabelecidos. O segundo anulou o primeiro. Como apenas seis mandados foram realizados, o não cumprimento do sétimo mandado levou à quebra do contrato e, consequentemente, do segundo pacto, assinado com sangue. O Diabo perdeu a aposta, resultando num exorcismo que o fez explodir e voltar para o inferno. É o que veremos no próximo tópico. 

3. O exorcismo literário por meio da ironia e do humor 

O poder que uma obra literária tem de exercer sobre o imaginário popular, a convicção de que o mal é vencido pelo bem quando o Diabo é chacoteado e ridicularizado na trama dos versos seria a possibilidade de um exorcismo literário. As representações diabólicas não podem mais aterrorizar, pelo contrário, se tornam motivo de riso, de zombaria e de galhofa. Segundo Magalhães (2012), houve um processo crescente de interiorização do mal na literatura, de modo que a personificação do mal na figura do Diabo passa ser transferida cada vez mais para o ser humano. A insatisfação e a ambiguidade da condição humana assumem o palco da literatura e passam a ser motivos literários. O Diabo passa a ser ridicularizado e ironizado como uma personificação humana domesticada pelo ser humano, pois nesta perspectiva é o natural que importa, não mais o sobrenatural (MAGALHÃES, 2012). 

Em seu livro The Screwtape Letters (As Cartas do Coisa-Ruim), traduzido como Cartas de um diabo a seu aprendiz (2009), Clive Staples Lewis coloca a seguinte epígrafe atribuída a Martinho Lutero: “A melhor forma de correr com o Diabo, se ele não se rende aos textos das Escrituras é zombar e caçoar dele, pois o mesmo não suporta o escárnio” (LEWIS, 2009, p. 4). Para Magalhães (2012), esta seria a melhor forma de exorcismo. O humor e especialmente a gargalhada, a pilheria, se tornam formas de exorcismo. A gargalhada exorcista está na graça da risada aplicada contra o poder opressor do mal, nesse caso o Diabo. 

A inversão de poderes, de papeis e de lugares é um recurso literário característico nos cenários em que o bem vence o mal mediante a ridicularização e o riso, de modo que o fraco derrota o mais forte. É o que ocorre no caso da Mulher que enganou o Diabo (ALMEIDA FILHO, 1986). O Diabo e a Mulher tornam-se figurações típicas da inversão de papeis e de poderes num cenário em que o Diabo, representação da força do mal, está envolvido nas tramas de uma mulher, nesse caso representação da fragilidade humana. O Diabo passa pela vexa de ser ridicularizado e enganado por uma mulher, tornando-se objeto da gargalhada dos leitores do cordel. 

Na narrativa construída por Almeida Filho, a mulher Maria faz um trato com o Diabo em que ele deve cumprir sete mandados em troca de sua alma e da alma de seu marido. O Diabo cumpriu seis mandados e realizou as obras planejadas pela mulher. Mas, no sétimo mandado, com sua astúcia, Maria ordena ao Diabo algo impossível para um Demônio: construir uma catedral católica em que caiba todos os santos da união apostólica, com altares para todos, sendo maior o primeiro para celebrar o santo Sacrifício do Cordeiro, mais uma torre com um bonito cruzeiro (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 21). 

Neste último mandado o Diabo se viu logrado, pois estaria construindo a própria ruína. O leitor poderia tirar destes versos sua conclusão e soltar suas risadas: “O Diabo se ferrou!”. O Diabo perde sua força no desenrolar da narrativa e as gargalhadas dos leitores se tornam a melhor forma de afugentar maligno. A ironia e o humor colocado pelo cordelista nos seus versos se configura como exorcismo do Diabo. Segundo Bernardino Leers, “o povo tem sua própria arma para resistir e defender-se: o Humor. O senso de humor é a capacidade de rir”, (LEERS, 2007, p. 57). 

De acordo com Leers (2007), a crueldade da vida é relativizada pelo riso, e o próprio riso se torna uma contribuição para a formação e construção da moral no meio do povo. Atormentados pelos sofrimentos do tempo presente na vida cotidiana e ameaçado pelos castigos da eternidade, não restou ao povo pobre e sofrido senão dominar o medo subjugando as próprias imagens nas sendas do imaginário. A válvula de escape alcançou seu próprio suspiro no humor. Na dureza da vida o povo simples vai fazendo seu caminho; “pelejando para viver e sobreviver, mostra um paradoxo curioso, misturando o sofrimento e a festa, a tragédia e a satisfação da vida e a leveza do riso”, (LEERS, 2007, p. 55). 

Nada melhor do que uma boa risada para escapar ás atrocidades de uma vida dura. 

Atrás da irreverência, zombaria e até mesmo malicia do humor popular, não está a intenção de ofender pessoas, aliás ausentes, mas a oportunidade de descarregar sua memória e abafar pelas risadas suas amarguras do passado. (LEERS, 2007, p. 59).

Exorcizam-se os males e se ameniza o sofrimento, diminui o peso da vida e traz de volta a esperança de uma situação melhor, e que já se experimenta melhor já no ato do riso, da gargalhada, da galhofa: 

Rir de piadas é mais do que uma libertação da prisão. Significa, também, respirar de novo, reassumir a vida livre e renovar sua esperança de felicidade partilhada com os outros. É uma renascença da coragem de enfrentar a repressão, ou, ao menos aguentá-la, porque, por ora, não tem solução convivencial melhor. (LEERS, 2007, p. 61).  

Afastando o enredo do mal se aproxima a possibilidade de conscientização para uma condição melhor, na mudança de espírito por meio do humor se abre um caminho de resistência, de superação e de esperança. Não é só o Diabo que é exorcizado, mas toda a constelação do mal que o acompanha. 

O povo pobre e simples tem uma incrível facilidade de rir dos próprios fracassos e de ver o cômico em situações difíceis, cria piadas com Jesus e São Pedro, castiga os abusos dos malvados, ironiza e ridiculariza o Diabo para se ver livre das tentações. O príncipe das trevas perde sua força ao ser zombado nas espertezas do povo simples. É um povo que tem coragem de brigar com Deus, de ameaçar os santos e de empacotar o Diabo amarrando-o dentro do saco. 

Na continua luta / peleja entre o bem e o mal presente na realidade do Céu e Inferno na religião tradicional, o ser humano busca se equilibrar entre suas virtudes e seus pecados. Para escapar do Inferno e seus demônios e torturas e entrar no Céu, o imaginário cria conjunturas imagéticas do bem que vence o mal, destronando o Diabo e dando a vitória aos protegidos de Deus. 

Histórias bem-humoradas brotam da alma do povo e enchem o mercado nos versos dos cantadores populares, cantorias que se tornam narrativas impressionantes nos folhetos dos cordelistas. O mais importante não é se os leitores acreditam ou não nas histórias que são contadas, mas a realidade de que o humor colocado nos versos dá às narrativas sua finalidade de aliviar e libertar as pessoas de seus medos e tensões; a capacidade de exorcizar com riso e humor os males desta vida e o seu próprio autor: o Diabo. 

No imaginário bem-humorado se resgata a esperança, se alimenta a fé, se equilibra a vida: “Rir não só liberta o ser humano na terra, mas é mais um passo para perseverar, pois abre um horizonte de vida mais atraente”, (LEERS, 2007, p. 90). 

Na narrativa cordelista, objeto deste artigo, a astúcia e esperteza da Mulher (o bem) e a ridicularização do Diabo (o mal) em sua bobice e ignorância, criam um cenário de embate em que a situação de poder se inverte, relativiza-se o poder do Tinhoso e é dada a vitória à Maria. O Diabo apresentado como um trouxa interesseiro provoca o humor dos leitores e é exorcizado por meio da vexa e pelas risadas num cenário em que é enganado por uma mulher. O leitor individual se vê transportado para dentro da trama dos versos, identificando-se com a esperteza da mulher e assumindo o lugar de comando contra o Maligno. A coletividade também se identifica no sonho de uma sociedade nova em que o sofrimento é superado com a imagem do paraíso que Maria fez o Diabo construir com seus mandados. 

Diante do sétimo mandado, o ‘mandado importante’ nomeado pela mulher, o Diabo muda sua feição, e os versos do cordelista criam uma situação engraçada em que as risadas se aplicam contra o Tinhoso: 

O negro ficou tremendo 
De beiço branco amarelo 
E disse: – Estou desgraçado, 
Careca, roto, banguelo; 
Caí numa armadilha, 
Sei que perdi o duelo. 
Sei que não posso fazer 
Um trabalho tão imundo, 
Não vou perder meu conceito 
Porque não sou vagabundo; 
Nem mesmo se fosse por 
Todas as almas do mundo. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 22). 

O sétimo mandado inclui um cruzeiro no alto da torre da Catedral. A cruz é o símbolo poderoso contra o Diabo, chamada por ele mesmo de gancho de dois paus. 

Também conscientemente 
Em dois paus eu não me escancho 
Para não me arrepender, 
Não vou amarrar garrancho2
Quem faz aquela armadilha 
Finda pregado no gancho. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 22). 

O Diabo se diz enganado e traído na boa fé. Ele entrega os pontos e se reconhece enganado pela mulher. 

Entrego os pontos, porém 
Sei que fui bem enganado 
Na boa fé, fui traído; 
Trabalhei como um danado 
E, para a minha desgraça, 
Fiz um contrato assinado. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 22). 

Ao se ver derrotado pelas manhas da mulher, o Diabo diz que aprendeu uma lição: 

Isso é bom para que eu 
Não acredite em mulher 
Que para ser vencedora 
Faz tudo quanto puder, 
Nem mesmo o Diabo se livra 
Das manhas que uma tiver. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 22) 

Ao final da história, vem o merecido prêmio da aposta vencida para Maria e Pedro. O Diabo reconhece seu próprio fracasso e exalta a vencedora. Se nos versos anteriores ele afirmou não ser vagabundo, agora se autoafirma como um maluco convencido e assume que chegou a hora de ir embora: 

Vou embora sem rancor 
Sentindo o corpo doer, 
Pelo trabalho que fiz 
Nada pude merecer; 
Mesmo em todas as batalhas 
Vence quem pode vencer. 
Agora, dona Maria, 
Fique com o seu marido, 
Desfrutando o que ganhou 
De um maluco convencido; 
Por tudo que você fez 
O prêmio é merecido. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 23). 

Maria manda o Diabo de volta para o inferno: “Com suas tramas malditas vá se estourar no inferno!” (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24). O exorcismo se dá pela astúcia da mulher, que além de enganá-lo na cilada do sétimo mandado, o chamou de ignorante e o mandou de volta para o Inferno:

Maria disse: – Está vendo 
Que você não sabe de nada? 
Para ganhar uma alma 
Recebeu uma chamada, 
Veio atrás do meu marido, 
Caiu na minha cilada. 
Você perdeu a batalha 
Para as forças do Eterno 
Porque você será sempre 
Do Divino um subalterno, 
Com suas tramas malditas 
Vá se estourar no inferno! (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24) 

A mulher coloca o Diabo no lugar dele, como subalterno do Divino, e ordena com firmeza que vá se estourar no inferno. A estrofe seguinte denota o cumprimento daquele exorcismo: 

O negro deu um estouro 
Que a terra toda tremeu, 
Um cheiro forte de enxofre 
Pela casa rescendeu; 
No meio do fumaceiro 
Ele desapareceu. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24). 

A ênfase dada pelo cordelista ao tremor da terra e o cheiro forte de enxofre que se espalha pela casa toda confirma, no imaginário popular, de que se tratava realmente de algo do além, o negro que ali estava era o próprio Satanás. O estouro é a abertura do fenômeno sobrenatural, cujo desfecho se dá no desaparecimento do Diabo no meio do fumaceiro. O cheiro do enxofre é o enfeite da cena do exorcismo realizado pela mulher 

Depois da expulsão do Diabo, Maria tem seus bens multiplicados e vive feliz ao lado de Pedro e de seus protegidos, 

Maria ficou feliz 
Com os bens adquiridos 
E repartiu tudo com 
Todos os seus protegidos, 
Que desde aquele dia 
Não foram mais desvalidos. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24). 

Maria e Pedro inauguram uma nova sociedade, organizada sob uma nova ordem social em que todos trabalham e os lucros são repartidos entre todos: 

Agora todos unidos 
Satisfeitos trabalhavam 
Em uma sociedade 
Que todos participavam 
Em partes iguais dos lucros 
Que seus produtos lhes davam. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24). 

O plano arquitetado por Maria da Conceição foi realizado pelo Diabo. Pedro Botelho acabou ficando rico ao lado de sua esposa. O Diabo perdeu a aposta registrada no contrato assinado com sangue. O cordelista confirma o sucesso do exorcismo e a imunidade contra todas as desgraças diabólicas numa última estrofe de sete versos, inscrevendo nela seu acróstico: 

Assim o casal ficou 
Libertado do Tinhoso 
Maria muito feliz 
Entre os braços do esposo, 
Imune contra as desgraças, 
Dando louvores e graças 
A Deus Todo-Poderoso. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24). 

Os dois pactos foram quebrados e o exorcismo foi realizado com sucesso. O bem venceu o mal e o sonho de uma nova sociedade foi realizado. 

Conclusão

Na religiosidade popular, o nome de Maria da Conceição pode fazer referência a Nossa Senhora da Conceição, a protetora dos desvalidos, que em sua imagem, aparece pisando a cabeça da serpente, símbolo do Diabo. O cordelista coloca sua personagem como o nome de Maria da Conceição, não sem propósito. Este título aplicado à Mãe de Jesus coloca a mulher Maria da Conceição como aquela que vence o Diabo. 

Maria é a mulher do bem que foi capaz de levar o Diabo a realizar obras do bem, como narram os versos do cordel. Ao levar o Capiroto a fazer boas obras, mesmo que pelo interesse dele de levar as duas almas para o inferno, Maria promove o maior engano ao Diabo: um ser do mal realizando um plano do bem. Um destaque interessante neste plano do bem é a dimensão humana e social alcançada pela obra arquitetada pela mulher; a acolhida dos desvalidos do mundo inteiro que são recolhidos e levados para a cidade planejada e construída. 

Maria da Conceição se vale da ajuda de Deus e Nossa Senhora, mostra sua capacidade de superar os próprios limites e os limites de seu marido, e, revela sua astúcia ao vencer o Diabo. Ao levar o Diabo a realizar boas obras, Maria promove uma inversão de poderes e põe o Diabo a perder, pois acaba realizando o contrário do que faria. 

Esta inversão, por si, pode configurar uma espécie de exorcismo, no qual o Diabo não percebe antecipadamente a astúcia da mulher. Além disso, o humor e a risada dos leitores diante da enganação do Diabo esvaziam seu potencial de causar medo e terror. Por meio da ridicularização, da vexa e das risadas dos leitores o Diabo é exorcizado e se torna uma figura pitoresca que pode ser enganado por uma mulher. Assim, como dizem os próprios versos “mesmo em todas as batalhas vence quem pode vencer” (ALMEIDA FILHO, 1986, p.23). E conforme o desfecho da narrativa, o Diabo não pode! 

Alcançamos com o exposto até aqui a possibilidade de um exorcismo literário do Diabo na literatura de cordel por meio da ridicularização de sua figura. A partir da compreensão de Salma Ferraz (2012) e Antônio Carlos de Mello Magalhães (2009) podemos concluir que o cordel A mulher que enganou o Diabo, de Manoel D’Almeida Filho sinaliza a força simbólica do mal presente no mundo e demonstra que é o bem que vence a contenda por meio da astúcia da mulher e das gargalhadas dos leitores. 

Seguindo o pensamento de Magalhães, os oponentes do Diabo nas narrativas de cordel o ridicularizam ao agir com astúcia e enfrentá-lo com coragem e fé, é porque o próprio Diabo deixou de ser o protagonista do mal no universo imaginário e moral dos leitores. Assim, pode ser confrontado e vencido, pode ser banido para o Inferno e virar motivo de chacota e de risadas na poesia dos versos. 

Numa perspectiva sociológica, a derrota do Diabo pela astúcia da mulher pode significar a vitória dos oprimidos contra os opressores, desde o período colonial. A cidade construída pelo Diabo e os bens adquiridos por Maria da Conceição, assim como a partilha destes bens com os desvalidos, podem sinalizar a realização do sonho de um paraíso, de uma sociedade justa, igualitária e fraterna, em que todos participam em pé de igualdade e repartem entre si o lucro de seu trabalho. Esta perspectiva poderá ser objeto de outro empreendimento. 

Referências

ACADEMIA BRASILEIRA DE LITERATURA DE CORDEL. Disponível em: . Acesso em setembro de 2016. 

ALMEIDA FILHO, Manoel d’. A mulher que enganou o Diabo. São Paulo. Editora Luzeiro Limitada, 19863 . 

ANDERS, Valentim. et al. (2001-2021). Etimología de Exorcismo. Disponível em: . Acesso em: 07 jul. 2021. 

FERRAZ, Salma. As malasartes de Lúcifer: Textos críticos de teologia e literatura. Londrina: EDUEL, 2012. 

FUNDAÇÃO CASA RUI BARBOSA. Disponível em: . Acesso em setembro de 2016. GÊNESIS. In: Bíblia Católica Online. Capítulos 1 – 3. Disponível em: . Acesso em junho de 2020. 

LEERS, Bernardino. Rigorismo moral e humor popular. São Paulo: Paulinas, 2007. 

LEWIS, Clive Staples. The Screwtape Letters: Cartas de um diabo a seu aprendiz. Tradutor: Lemos, Juliana. Editora: WMF Martins Fontes. Edição: 2ª. São Paulo. 2009. 

MAGALHÃES, ACM., and BRANDÃO, E. O Diabo na arte e no imaginário ocidental. In: MAGALHÃES, ACM., et al. (Orgs). O demoníaco na literatura [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2012. pp. 277- 290. ISBN 978-85-7879-188-9. [E-book].

MAGALHÃES, Antônio Carlos de Melo. Deus no espelho das palavras: Teologia e literatura em diálogo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2009. 

MAIOR, Mário Souto. O diabo na cultura popular. Publicado na Revista Ele Ela nº 75 de julho de 1975. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2021. 

MATOS, Edilene. O imaginário na literatura de cordel. Salvador: Edições Macunaíma, 1986. 

MURAD, Afonso. O trem da mariologia. Vídeo 2: Introdução à Maria na Bíblia. In: . Canal Youtube: 14 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 07 jul. 2021. 

NAVES, Alair Matilde. Representações do diabo no cordel de Manoel D’almeida Filho. Dissertação (Mestrado). Belo Horizonte: Departamento de ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2019. 

NOGUEIRA, ID., and SILVA, AH. Termos e expressões do coloquial do cotidiano da zona rural no Brasil central no século XX / Ismael David Nogueira. Goiânia: Gráfica UFG, 2017. 157p. 

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de santa cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. – São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 

Notas

[1]  Não encontramos referência segura para este provérbio brasileiro, citado no site português https://pt.wikiquote.org/wiki/Prov%C3%A9rbios_brasileiros. Percebe-se uma compreensão comum de que se trata de um ditado popular denotativo do estilo de uma mulher brava, que não dá trela para ninguém e nem leva desaforo para casa; tipo de mulher independente, mulher que não liga para opinião alheia, mulher que se vira sozinha e não depende da ajuda de ninguém. 

[2] Curiosidade do dicionário de Termos e expressões do coloquial do cotidiano da zona rural no Brasil central no século XX, o verbete Garrancho pode assumir uma dupla significação: 1. Companhia indesejada, 2. gravetos de madeira. (NOGUEIRA, 2017, p. 81). A expressão amarrar garrancho, pode assumir o sentido de trabalho perdido. Por outro lado, a presença da cruz é indesejada pelo Diabo.