Editorial

Aproximações e interpelações diversas da literatura sobre tempo e eternidade, amor e ódio, identidade humana e animalidade, espiritualidade e prática ao fazer teológico. 

As aproximações entre teologia e literatura neste número começam com uma análise da viagem de Dante Alighieri pelo inferno, purgatório e céu apresentada na Divina Comédia. Essa obra, marco intelectual da cultura medieval, para além dos seus aspectos literários continua a mostrar o seu vigor na reflexão teológica não somente pela simbologia que marca o imaginário popular cristão, bem como o ensinamento magisterial recente de Bento XVI e Francisco. As inspirações resultantes dos poemas levam a uma valorização das virtudes cardeais como caminho para a salvação, bem como uma reflexão sobre a ideia de punição e castigo como instrumentos de reflexão para evitar os erros. Leonardo de Souza apresenta ainda a reflexão à luz do ensinamento do Catecismo da Igreja Católica, como um estado espiritual em busca de superar o entendimento de um espaço físico e com um entendimento de tempo cronológico que marca o entendimento das crenças populares. 

As ideias de Kierkegaard também aparecem com frequência nas discussões propostas por vários autores. Paulo Abe em seu artigo, parte da obra Temor e Tremor na Johannes de Silentio, um dos pseudônimos utilizados pelo filósofo dinamarquês discute sobre a dimensão da fé e suas implicações para o mundo ético a partir da experiência de Abraão que nos põe diante das possibilidades do amor e do ódio. Estes dois sentimentos que podem brotar ao refletirmos sobre a atitude de fé incondicional de Abraão, se tornam um convite a “poetizar a fé” ao invés de cair no “pecado” de tentá-la explicar pelas formulações conceituais do “ser” que marcam as reflexões teológicas sistemáticas.

O artigo de Douglas Ferreira Barros e Sorel Celeste Tavarnez, embora não esteja na sequência retoma a discussão sobre o entendimento do amor no pensamento de Kierkegaard, em uma perspectiva comparativa entre o amor entendido como dever cristão em comparação com o sentimento de amor humano. A abordagem filosófica considera as limitações humanas para cumprir tal dever e se abre para a necessidade de uma inspiração divina, ou mesmo de algo sobre-humano que possibilite a concretização de tal dever. Os autores, defendem que não haveria um antagonismo entre esta vivência do amor e a vivência do amor romântico e mesmo da amizade. A prática deste dever cristão, se apresenta ainda como um “autêntico antidoto ao desespero”, mas aponta igualmente para a dimensão prática como um convite que se passe do sentimento ao compromisso, como parte da missão da existência humana.

As reflexões sobre o “ser” das coisas ao nosso redor, considerando o caráter existencial que aponta para o metafísico e consequentemente para o eterno e a eternidade, dimensões importantes para a teologia, são consideradas por Maurício Avoletta Júnior com base nos poemas de Carlos Drummond de Andrade. A inspiração heidegeriana na composição poética, aponta para o que o autor discute como “mística da materialidade”, na qual discute questões como a individualidade e tempo, temas que repetem em outros artigos desse mesmo número.

A reflexão sobre a teopoética, muito cara para esta revista, é retomada e ampliada por Marcio Cappelli com sua proposta de uma Zooteopoética, em uma busca de aproximação entre os temas da animalidade, da religião e da literatura. Na buscar de firmar uma “entrelugar” a partir dessas três temáticas, o autor trabalha com as categorias do divino, humano e animal com aproximações através de autores consagrados como Lévinas, Heidegger, Montaigne, Derrida e principalmente com os poemas de Adília Lopes, para mostrar a capacidade de interação entre a literatura e a religião/teologia. Para além das preocupações doutrinárias e institucionais, este tipo de literatura marcada pela presença dos animais tem um potencial de mediação hermenêutica à medida que apontam para os sentimentos de admiração e de contemplação da natureza, e em especial dos animais, como caminho para se chegar a pensar em Deus. 

Dante Alighieri, e sua obra Vita Nuova será novamente interlocutor uma abordagem sobre o corpo na literatura sacro-erótica. A aproximação com Santa Teresa D’Ávila proposta por Doris Nátia Cavallari e Anne Caroline do Nascimento Ribeiro, busca aprofundar o conceito de “erotismo espiritual”, como “expressão do valor da experiência mística e religiosa” que ultrapassa o entendimento limitante de prazer corpóreo, segundo as autoras sem malícia e sem a conotação sexual. A relação entre erotismo, religião e arte, como dimensões que podem expressar o anseio pela transcendência, levam as considerações sobre os diversos entendimentos como agápico e erótico e os desafios para a espiritualidade.

O corpo, o erotismo, os desejos e identidades como desafios à teologia aparecem no artigo de Orison Marden Bandeira de Melo Junior e Vanessa Riambau Pinheiro ao apresentarem a obra The day he came do autor Nigeriano Amatesiro Dore. As vozes interiores, do seu protagonista, que enfrenta os desafios de sua identidade homossexual, revelando o potencial do discurso literário como questionador dos padrões estabelecidos e legitimados pela esfera legal que considera como crime, pela cultura dominante considerando tal identidade como un-Africannes, bem como pelas instituições religiosas e pela teologização que legitima a homofobia com o discurso sobre o pecado. A obra apresentada é parte da resistência aos discursos impostos como parte do projeto colonizador que impuseram também uma imagem de Deus imposta como sendo a imagem do Deus cristão.

O clássico Alice no país das Maravilhas de Lewis Carroll, servirá de base para Isaac Malheiros e Vanessa Meira tecerem suas reflexões sobre o tempo em paralelo com as reflexões teológicas em torno dos conceitos chronos e kairós, bem como suscita discussões a respeito da tensão entre a efemeridade da vida e o aproveitamento do tempo abordados também por autores como Agostinho e Kierkegaard. Neste texto, a questão da eternidade e da identidade humana, são tratadas não como resultante de um amadurecimento resultante de um processo cronológico, mas acima de tudo como resultante das crises e questionamentos vividos.

A temática da espiritualidade é abordada em conexão com os dramas sociais na busca de construir diálogos sobre o cristianismo na literatura no artigo de César Martins de Souza e Weverton Castro. Os autores discorrem sobre temas como consumismo, violência, guerra e injustiças sociais aparecem nas obras de autores nacionais como Cecília Meireles, Rubem Alves e clássicos como O menino do dedo verde do francês Maurice Druon para mostrar como a literatura pode oferecer instrumentos de reflexão sobre a espiritualidade individual e seus impactos sobre a coletividade, “problematizando a espiritualidade cristã na prática social”, a partir de suas narrativas que por vezes podem justificar práticas que contradizem “as concepções fundamentais da fé que se afirma professar”. Novamente, se constata a preocupação dos autores de aplicarem algo que é próprio da reflexão que é pensar a sua dimensão prática já presente nos questionamentos de Platão sobre os modos de falar sobre os deuses nos poetas antigos como parte da reflexão necessária para a República (Diálogos IV, República II, 379a).

Além dos artigos aqui apresentados resumidamente, o presente fascículo apresenta uma resenha do livro The Art of Bible Translation de autoria de Robert Alter, apresentada por Petterson Brey. Para que a mensagem bíblica possa se manter viva, o desafio de tradução do texto bíblico precisa considerar muitos elementos caros da literatura: estilo poético, metáforas, símbolos e outros elementos que ultrapassam os elementos da gramática e outros aspectos técnicos presentes no trabalho de tradução textual.

Embora a presente edição não tenha um tema comum, os textos que agora são publicados terminam dialogando em especial com Dante Alighieri e Kierkegaard, passando pelas reflexões existencialistas que conectam o humano em seus questionamentos sobre sua individualidade e as possiblidades de pensar o “eterno que entra no tempo”. Como os diversos entendimentos de tempos, afetam o processo de amadurecimento do humano, dos dramas para concretizar sentimentos como o amor e como este passa a interpelar a vivência do que acredita – a fé. Essa condição básica para o fazer teológico pode encontrar diversos “lugares” que lhe sejam base: desde os questionamentos mais subjetivos até as preocupações práticas e éticas na busca da coerência entre o que se professa e o que se busca viver. Emergem temas como a corporeidade, o erotismo, as identidades sexuais que questionam as teologizações estabelecidas. Nesta busca de avançar fronteiras na aproximação entre literatura e teologia, destacamos o passo dado na aproximação que busca incluir outra categoria, a animalidade, e nestas as vozes interpeladoras da natureza expressadas pela produção literária que agora emergem como interpeladores também do fazer teológico.

Antonio Genivaldo Cordeiro de Oliveira – agcoliveira@pucsp.br
Doutor em Ciência da Religião – PUC-SP e professor do PPG em Teologia da PUC-SP
Editor da Teoliterária