Uma releitura atenta do culturalismo jurídico de Miguel Reale:

como conciliar o relativismo do processo histórico-cultural com as “invariantes axiológicas” da pessoa humana?

Autores

DOI:

https://doi.org/10.23925/ddem.v.1.n.7.61701

Palavras-chave:

Culturalismo Jurídico, Teoria Tridimensional do Direito, Valores, Holocausto, Tribunal de Nuremberg

Resumo

Uma das maiores preocupações de Miguel Reale, ao expor sua teoria tridimensional do direito, foi a de sublinhar seu aspecto histórico-cultural. Mostrou que o fenômeno jurídico só pode ser compreendido se inserido num contexto histórico de determinada cultura. A obra do jurista Miguel Reale pode ser melhor entendida dentro desta premissa: as normas jurídicas mudam no tempo e no espaço, pois mudam os valores, mudam os fatos e os três polos mutuamente se implicam numa dialética de implicação e polaridade, num processo histórico-cultural. Ora, isto significa dizer que os valores são relativos. É a primeira posição do jurista alemão Gustav Radbruch (1878-1949), que negava a existência de valores absolutos. Em vida de Radbruch se desencadeou o movimento nazista que produziu o Holocausto, em nome de uma pretensa superioridade racial dos arianos contra judeus, eslavos e ciganos. Em 1948, como reação contra o escândalo que foi a abertura dos campos de extermínio pelos aliados vencedores e depois do cinismo mostrado pelos criminosos de guerra no tribunal de Nuremberg, declarando que cumpriram as leis vigentes em seu país e portanto eram todos inocentes, ganhou corpo a ideia de se redigir uma “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, afirmando que os Direitos Humanos existem porque os seres humanos estão dotados de uma natureza comum, apesar das diversidades culturais. O antropólogo norte-americano David Bidney mostrou a impossibilidade de manter o relativismo cultural e ao mesmo tempo promover os Direitos Universais do Homem. Sua obra teve larga repercussão. Como conciliar, então, uma metodologia histórico-cultural relativista, como parece ser a de Reale, com a ideia de Direitos Humanos Universais? Reale lança mão de uma distinção: existem as chamadas “invariantes axiológicas”, os valores permanentes que defendem a dignidade da Pessoa Humana, na classificação do que é bom e do que é mau, do que é moral e do que é imoral, do que é justo e do que é injusto, como categorias estáveis, acima das diferenças culturais no espaço e no tempo. Poder-se-ia ver nisso a afirmação de algo permanente em uma teoria que pressupõe a mutabilidade? Haveria em tais invariantes axiológicas algo como um jusnaturalismo implícito na mente do jusfilósofo paulista? Para tudo esclarecer, cremos que é preciso se ampliar o cenário, buscando uma visão de diferenciação entre o permanente e o transitório, em matéria de valores. Daí tentarmos mostrar neste artigo que se vai ler que as invariantes axiológicas coexistem com valores e normas variáveis, em momentos históricos diferentes de uma mesma cultura. Chega-se então à concepção cíclica da história de Gianbattista Vico (1668-1744). Precisa Reale: “Pode-se dizer que é na Filosofia de Vico que o conceito de Humanidade (Humanitas) atinge sua plena concreção, como uma força una e diretora da História, como força a que tão somente a Providência transcende. Dessarte, o progresso do Direito se insere na História ideal do gênero humano.” (REALE, 2002, p. 124). Sabemos que para o filósofo napolitano as nações cumprem um percurso, passando de uma fase “mítica”, em que tudo se explica pela ação divina imediata sobre o mundo humano, para uma fase “heroica”, em que surgem os grandes vultos da humanidade, fundando impérios e codificando ordenamentos jurídicos por sua própria inteligência e vontade, para finalmente chegar a uma fase propriamente “humana”, em que todos participam, enquanto seres humanos da elaboração das leis. São as fases mítica ou teocrática; heroica ou aristocrática e por fim a fase simplesmente humana ou democrática.  Se tal democracia degenerar em anarquia, os governos em demagogia, a Providência, para salvar aquela nação, fa-la-á voltar à fase primitiva mítica, o que Vico chamava de “barbárie ritrovata”. (=barbárie reencontrada). É a visão dos “corsi e ricorsi’ da história, contida no famoso livro Scienza Nuova, de 1725. A concepção cíclica, não linear, da História, tal como a de Vico, tem o mérito de reconhecer a diversidade cultural, sem correr o risco de quebrar a unidade do gênero humano, quebra que representaria pavoroso retrocesso, depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Vemos então a possível conciliação dos valores imutáveis, com o relativismo dos valores, em diferentes fases da história de uma cultura, bem ao modo de Vico.   Para ilustrar, acrescentamos um texto do célebre naturalista alemão Carlos Frederico Von Martius (1794-1868), que nos visitou na época do Primeiro Reinado, e que além de ter estudado nossa fauna e nossa riquíssima flora, conviveu com os indígenas - que ainda aqui havia, em muito grande quantidade, escrevendo sobre o seu direito. (VON MARTIUS, 1982).

Biografia do Autor

Cláudio De Cicco, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, São Paulo, SP

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1963); Mestre em Teoria da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1974); Doutor em Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1979); Livre-Docente em Filosofia do Direito pela mesma Universidade (1985); Professor Associado em Filosofia do Direito pela mesma Universidade de São Paulo(1987); Mestre em Teoria Geral do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994); Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995). Leciona, desde 1979, na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no curso de graduação, Teoria Geral do Estado e Ciência Política e, no curso de pós-graduação "stricto sensu", Teoria Geral do Direito e do Estado e Filosofia do Direito. É autor de vários artigos e livros sobre os temas de história do direito, história do pensamento jurídico, história das ideias políticas, ética e história da cultura social e jurídica nas seguintes revistas: Revista Brasileira de Filosofia (IBF);Revista Thesis da Faculdade Cantareira de São Paulo); Revista Jurídica O Letrado (IASP). 

Referências

BIDNEY, David. Theoretical Anthropology. Nova York, Schocken Books, 1970, 2ª ed.

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Publicado

2023-05-11