Crise politique

O vírus, os estados,
os coletivos : interações
semiopolíticas

Franciscu Sedda
Universidade de Cagliari

Publié en ligne le 4 mars 2021
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2021n1.54176
Version PDF

 

 

Premissa

O presente artigo foi publicado inicialmente em italiano em 15 de abril de 20201. Ele foi escrito, por assim dizer, “no calor do momento”, ou, se preferirmos, “ao vivo”, enquanto o evento da pandemia explodia e ia se desenvolvendo. A análise almejava captar a resposta dos diversos Estados-nação, entendidos enquanto atores coletivos, diante de um evento imprevisto (ainda que não totalmente imprevisível) como aquele representado pelo vírus. No momento da tradução do texto para o português, nos pareceu apropriado e útil não atualizar seus conteúdos. Tal escolha responde à intenção de mostrar como este trabalho pretendia (e pretende ainda) falar não apenas da relação entre os Estados-nação e a imprevisibilidade, como também dos limites e das potencialidades de uma análise semiótica feita “em ato”, enquanto o processo que ela pretende investigar acaba de emergir e o horizonte de seu desenvolvimento está ainda aberto, se não totalmente indefinido.



1 F. Sedda, “Il virus, gli stati, i collettivi : interazioni semiopolitiche”, E/C, revista da Associação italiana de estudos semióticos (www.ec-aiss.it). O autor agradece a Micaela Altamirano pela tradução para o português e Paolo Demuru pela leitura, comentários e revisão do texto.

Introdução

O coronavírus se apresentou em nossas vidas como um verdadeiro “acidente”, não só porque seu surgimento não foi humanamente programado, como teriam desejado os teóricos da conspiração que surgem como fungos diante de todo acontecimento trágico e inesperado, mas também porque a extensão de seus efeitos é tal que se apresenta como sem precedentes para a imensa maioria das pessoas que vivem no planeta hoje.

A Covid-19 foi imediatamente interpretada como um fenômeno planetário, porém o curso de seu desenvolvimento e as condições geopolíticas concretas do mundo atual favoreceram uma resposta de base estatal. A coordenação e a liderança assumidas, no plano científico, por entidades transnacionais como a Organização Mundial da Saúde não impediram que a resposta imediata ao vírus tenha sido em muitos aspectos local, evidenciando, entre outras coisas, o problema da função e manutenção das instituições supranacionais, como a União Europeia, e recolocando no centro da discussão o valor da cooperação internacional, tensionada entre explosões de solidariedade e movimentos atribuíveis a formas mais ou menos explícitas de soft power.

 

Se por um lado a crise, ao dar centralidade à ciência e à pesquisa médica, enfatizou a dimensão global e cooperativa da resposta, por outro lado a concretude das escolhas institucionais feitas para enfrentar a ameaça representada pela Covid-19 tornou tangível a desunião do mundo, ou pelo menos suas discordâncias institucionais, as diferenças culturais de governos e sociedades diante do risco. E, especificamente, um risco inesperado, peculiar, invisível, como aquele produzido por um vírus que pode se espalhar de forma assintomática.

É significativo, neste sentido, que no espaço de poucas semanas o debate sobre a Covid-19 tenha acolhido reconstruções histórico-antropológicas sobre a forma como locais e culturas específicas responderam no passado às pandemias. Daí nossa ideia de tentar uma indagação semiótica sobre o tema, que toma como referência o modelo dos regimes de sentido desenvolvido por Eric Landowski em seu livro Interações Arriscadas e em outros trabalhos mais recentes, que aqui adequaremos às nossas exigências2. Utilizaremos, portanto, a grelha de análise que se baseia na oposição entre uma interação programada e uma aleatória e que se desenvolve identificando as posições de uma interação manipulatória (não-aleatória) e outra por ajustamento (não-programada). Explicaremos melhor conceitos e termos no decorrer do artigo ; no entanto, devemos prontamente notar uma diferença com a abordagem landowskiana, que também pode ser lida como uma especificação ou um avanço do modelo : ao passo que este implicitamente se refere a interações entre dois termos, a interação que o acidente pandêmico desencadeou põe em jogo pelo menos três termos. Com efeito, não se limita à relação entre a ação do vírus e a resposta dos Estados, mas convoca, diante e dentro desses últimos, os governados. Em outras palavras, o vírus sempre nos força a redefinir a relação entre governantes e governados e, portanto, a forma do coletivo como um todo.

2 Cf. Interações arriscadas (2005), São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014.

Isso é visto muito claramente na diferença entre respostas ao vírus de tipo programador ou aleatório, por um lado, e respostas manipulatórias ou de ajustamento, por outro. Os dois primeiros, apesar de contrários, nesta conjuntura tendem a estar unidos pelo fato de tratar os governados de forma objetivante : o Estado, diante do vírus, os trata em ambos os casos como um objeto passivo, uma população sobre a qual atuar no caso da programação, ou um conjunto de indivíduos e facções abandonados em sua condição de fragilidade e relativa desorganização no caso da aleatoriedade assumida como modo de ação.

Já nos casos da manipulação e do ajustamento, o vírus é o gatilho para trazer à tona duas outras modulações subjetivantes da relação entre governantes e governados : no caso da manipulação, a instauração do coletivo como povo dotado de uma vontade de coagir ou mobilizar, no caso do ajustamento a instauração de uma cidadania dotada de sensibilidade partilhada e autônoma. O esquema que relatamos abaixo tem como objetivo resumir parte dos resultados que surgirão da análise. No entanto, algumas especificações devem ser feitas.

A primeira é que nosso trabalho tem um objetivo mais exploratório que teórico. Portanto, visa aproveitar “no calor do momento” o arcabouço semiótico para captar aspectos da experiência inesperada na qual estamos imersos. Como se verá, isso significa também permitir que surjam dúvidas e problemas de tipo metodológico e teórico, cujas soluções são apenas sugeridas, hipotetizadas ou adiadas para outro tipo de trabalho.

A segunda questão é que uma visualização mais precisa, melhor do que a aqui apresentada, deveria conseguir dar conta da dimensão dinâmica e complexa das interações políticas em jogo. Deste ponto de vista, o esquema deve ser entendido como um “campo” — saturado de relações, tensões, figuras — dentro do qual operam posicionamentos e movimentos3. Retornaremos a essas questões no item 6.

3 Para um exemplo nosso, veja o campo sociossemiótico construído a partir da oposição entre as posições de “cidadão” e “consumidor”, em Imperfette traduzioni. Semiopolitica delle culture, Roma, Nuova Cultura, 2012, cap. 3.

Todos esses avisos nos dão a oportunidade de retornar a algumas questões teóricas gerais. Em primeiro lugar, o fato de que os quatro regimes — aleatoriedade, ajustamento, manipulação e programação, com as relativas respostas ao risco (negação, convivência, contenção, eliminação), os relativos modos de interação (confusão, responsabilização, motivação, controle) e de formação de coletivos (individualidade, cidadania, povo, população) — na prática acontecem em conjunto e em níveis diversos. Veremos, por exemplo, como cada escolha feita pelas instituições convoca ou implica como pano de fundo alguma pressuposição no que refere à sensibilidade, aos hábitos de seus próprios governantes. É também evidente que os mesmos modos de interação entre vírus, Estados e coletivos estão sujeitos a uma dimensão processual e, portanto, à possibilidade de variar ao longo do tempo, em função das situações e contingências. Daí, por exemplo, a passagem gradual ou repentina entre diferentes lógicas (da aleatoriedade para programação, da manipulação para ajustamento, etc.) ; a sensação geral de estar diante de um processo incerto de ajustamento (não apenas entre sensibilidades mas também entre vontades humanas ou não humanas, como aquela representada pelo vírus) ; a possibilidade de que a própria mutabilidade das escolhas de ação institucional possa provocar um efeito global de aleatoriedade que replica de fato a lógica do acidente que as desencadeou.

No entanto, parece-nos claro que existem dominantes, ou seja, lógicas que de Estado para Estado tendem a se impor como diretrizes na resposta ao vírus e na gestão da relação entre governantes e governados. Essas lógicas são ao mesmo tempo linguagens, ou seja, formas de moldar a resposta ao risco, o modo de interação entre governantes e governados, a forma do coletivo, mas ao mesmo tempo a forma das polaridades, dos pontos que orientam a ação, tendências, transformações. Vamos agora examinar essas dominantes com mais detalhes. Antes, porém, queremos sublinhar que nos concentraremos nas reações imediatas, ou pelo menos relativas aos primeiros momentos da crise, implementadas pelos Estados : nomeadamente, aquelas em que a exposição ao acidente tornou mais evidentes as diferentes modalidades culturais e políticas — ou, como preferimos dizer, semiopolíticas — para lidar com ele4.

4 As presentes elaborações baseiam-se nas múltiplas e fragmentárias visões e leituras induzidas por este tempo de crise. Relataremos apenas aquelas das quais extraímos algumas citações.

1. Entre autoritarismo e tecnocracia :
a programação da China e da Coréia do Sul

China e Coreia do Sul foram os primeiros países a enfrentar o coronavírus e parecem ser os primeiros a conter seus efeitos. Daí uma discussão acalorada sobre os métodos e significados de suas políticas. Na verdade, ambos se situam no campo da programação, ou seja, uma ação que trata os governados como um objeto sobre o qual operar para se contrapor ao risco ; entretanto, esses programas apresentam diferenças cuja análise abre para reflexões mais amplas sobre o tema do controle de dados e da corporeidade, bem como da segurança e da liberdade em um mundo cada vez mais complexo.

 

1.1. A programação autoritária da China

No caso da China, este modo de ação certamente explorou os meios de tecnologia que encontraremos também no modo de ação da Coréia do Sul ou do confinamento que seria posteriormente operado na Itália e em muitos outros países. No entanto, o mais impressionante é que esse modo de ação na China parece agir mais diretamente sobre os corpos. As imagens de pessoas que foram violentamente colocadas em quarentena confirmam essa tendência de agir sobre o controle do corpo ; uma ideia que também é reforçada por ações institucionais de longo prazo na República Popular da China, como a “política do filho único”.

A violenta arregimentação dos corpos encontra apoio, ao mesmo tempo, nas notícias relativas ao tratamento reservado pelo Estado aos médicos que denunciaram a propagação da epidemia. Essa reação inicial, composta de descrédito e censura, reforça a ideia de uma resposta autoritária à crise. Ao mesmo tempo, esta forma de programação projeta sua luz para trás, evidenciando como sua radicalidade é também uma tentativa de remediar uma condição inicial de aleatoriedade, dada não tanto pelo efeito surpresa do vírus como um evento inesperado, mas devido à recusa em reconhecer o inesperado como tal :

No início, seu regime [de Xi Jinping] parecia estar caminhando para uma espiral de crise, interna e internacional. O encobrimento das notícias sobre o contágio em Wuhan, as censuras e as mentiras, a perseguição aos heroicos médicos que deram o alarme : tudo isso determinou uma verdadeira catástrofe, obviamente sanitária, mas também política. Apesar do poder dos meios de censura, o descontentamento e os protestos sobre a má gestão da emergência foram galopantes também dentro da China.5

Assim Federico Rampini reconstrói aquela primeira fase que a ação de programação subsequente tentou ao mesmo tempo superar e esconder, conseguindo até certo ponto fazê-la ser esquecida e transformando o governo chinês, na opinião pública internacional, de culpado pela disseminação de vírus a sujeito virtuoso no confronto e na oferta de apoio a outros países.

5 F. Rampini, “La lezione di Confucio”, Il Venerdì di Repubblica, 27 de março de 2020, p. 22.


1.2. A tecnoprogramação sul-coreana

No caso da Coreia do Sul, a ênfase recai sobre o controle dos corpos por meio da mediação do contact tracing, um sistema de rastreamento algorítmico que reconstrói a rede de contatos de pessoas infectadas tanto por meio de entrevistas como por meio de imagens de câmeras de segurança, dos dados dos cartões de crédito e dos smartfones. Tudo para poder interceptar e isolar mais infectados antes que eles possam espalhar ainda mais o vírus.

Trata-se, portanto, de uma programação tecnocrática, que levanta dilemas e expectativas de grande importância, mas resumidas pela diferença que Yuval Noah Harari vê nas formas de ação da China, por um lado, e da Coréia do Sul (mas também de Taiwan e Cingapura) por outro. As várias medidas impostas aos cidadãos pelo governo chinês, incluindo a obrigação de relatar a temperatura corporal, são de fato vistas pelo intelectual israelense como uma possível porta de entrada para uma normalização do rastreamento de dados biométricos e, portanto, como mais um passo na invasão do corpo e sua privacidade, o que pode levar à rastreabilidade de estados de espírito e sensações, bem como à previsibilidade de preferências e comportamentos. O risco é que regimes autoritários, iliberais ou nas mãos de governos de extrema direita, dentre os quais Harari inclui também o Israel de Netanyahu, possam tomar como certas essas formas de controle, que podemos definir infra-corpóreas, mesmo depois de terem voltado à normalidade, não mais pela emergência sanitária, mas com o propósito de monitorar e manipular consensos e consumos.

Onde está, então, a peculiaridade da Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura ? De acordo com Harari,

embora esses países tenham usado aplicativos de rastreamento em certa medida, eles também se concentraram sobre um maior número de testes de saúde, sobre informações corretas e sobre a colaboração de uma opinião pública bem informada.6

Tudo ao contrário da China, que teria simplesmente se concentrado no “monitoramento generalizado e punição severa”. É claro que, mesmo assim, o limite entre uma programação autoritária e uma tecnocrática parece borrado, assim como parece incerta a possibilidade de realizar na prática a medida corretiva proposta por Harari : um acesso aos dados a ponto de permitir a uma população “motivada e consciente” contra-controlar os governantes, examinando o uso adequado dos dados coletados. Voltaremos a alguns desses dilemas ao final deste item.

6 N.Y.Harari, “Il mondo dopo il virus”, Financial Times, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 27 de março de 2020, p. 20.


1.3. Biopolítica e eliminação do risco

Apesar das distinções, e tendo em conta o que outros definiram como os limites do modelo sul-coreano,7 parece-nos que tanto os modos de ação chinês como sul-coreano não prevêem, ou não colocam em primeiro plano, uma intencionalidade, uma sensibilidade ou uma possibilidade de ação inesperada ou inventiva por parte dos próprios governados. Estes são de fato instituídos como uma população, um todo indistinto e quantitativo, função de uma ação governamental — misto de “estado policial” e de “tecnoburocracia” — que em troca desse tratamento objetivante garante a saúde, a vida mesmo, ao coletivo. Estamos, portanto, no campo da biopolítica e diante de uma tentativa de eliminar o risco inerente não só à relação entre o vírus e o coletivo, mas também o relativo à interação entre governantes e governados : em troca da segurança em relação ao vírus, estes cedem parcial ou plenamente sua capacidade de agir e sentir com autonomia.

7 Cf. J. Won Sonn, “I limiti del modello sudcoreano”, The Conversation, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 27 de março de 2020, pp. 29-30.


1.4. Sensibilidades presumidas ou induzidas

Certamente, se esse regime de ação e interação pode ser eficaz e se pode pensar em colocá-lo em prática, é também porque pressupõe uma sensibilidade que se conforma com ele quase naturalmente, que o baseia a priori e o torna eficaz em ato.

Bastará simplesmente acenar a todos os discursos sobre a ética coletiva da China nutrida pelo senso de harmonia confucionista como prática incorporada e valor dominante ; ou à normalização do controle algorítmico em uma sociedade como a sul-coreana que fez da fusão entre o vivido e a tecnologia um dos símbolos de seu surgimento no cenário global, a ponto de se falar do vício em tecnologia como uma verdadeira doença nacional.

A programação e a sensibilidade, portanto, perseguem-se e buscam apoiar uma à outra. O fato é que a programação é aqui a dominante, usufruindo uma sensibilidade implícita ou talvez instaurando-a ao mesmo tempo em que a evoca como pressuposto das escolhas do governo.


1.5. Contágio chauvinista

Interessante ainda é como esses programas chineses e sul-coreanos, também pelo tempo recorde de enfrentamento e contenção do vírus, geraram de imediato debates e posicionamentos em cadeia no resto do mundo.

A China, por exemplo, prestou-se a ser uma fonte de evocação por parte das forças políticas europeias que, embora não aspirem abertamente a cenários autoritários, têm, no entanto, aproveitando-se dos sucessos chineses para defender um modelo de Estado forte e seguro, dotado de plenos poderes para poder intervir na vida dos cidadãos e também no fechamento rígido das fronteiras.

Não se deve banalizar o fato que aqueles que podem explorar o modelo chinês de gestão do vírus são os mesmos que provavelmente apontaram a China e os chineses à zombaria pública nos estágios iniciais da crise, a fim de despertar e capitalizar em um sentido nacionalista a fobia pelo outro “infectado” que vem de fora. Os mecanismos discursivos do populismo xenófobo exploram igualmente bem tanto o conflito em direção a uma alteridade decididamente móvel e situacional (pense na Liga antigamente nortista contra os sulistas, depois separatista contra os italianos, depois cristã contra os muçulmanos, depois italiana contra os migrantes, então, novamente italiana contra os chineses etc.) quanto o contágio de chauvinismo mútuo : ou seja, a possibilidade de validar o sucesso doméstico no espelho dos sucessos de outros nacionalismos xenófobos, de validar a própria identidade política como o caso local-nacional de um tipo de identidade política bem-sucedida ao redor do mundo, isto é, em outras esferas locais-nacionais.

Pensemos na eficácia desse jogo de espelhos comunicativo — dado pela evocação de seus respectivos sucessos — entre o Front National de Le Pen, a Lega de Salvini, o alt-right de Trump, a extrema direita de Bolsonaro, no âmbito do qual Steve Bannon age como embaixador de uma espécie de “internacional paradoxal” da direita, baseada na primazia dos Estados Unidos sobre as outras nações. Trata-se de um uso dos simulacros de uma ideologia comum, ou mesmo do contato direto entre formações, funcional a um contágio semiótico : a possibilidade de infundir, por intermédio do simulacro, humores e sensações positivas em torno da própria posição ideológica, ativando na opinião pública uma profecia que visa sua própria “autorrealização” por meio da construção de uma analogia com os sucessos já obtido pelos outros.


1.6. Vigiar ou proteger : inovação tecnológica
e a esquerda globalista

Por outro lado, o papel e o significado do modelo sul-coreano são diferentes. Este, como dito anteriormente, demanda uma reflexão sobre os limites da relação entre democracia e tecnologia. Se por um lado, de fato, aparenta a enésima frente em que as liberdades civis e a privacidade parecem poder ceder, por outro nutre as expectativas de uma democracia à altura da complexidade do mundo de hoje. Uma democracia que encontra na inovação tecnológica a resposta aos males da contemporaneidade, inclusive os causados pela própria tecnologia.

Esse modelo poderia estar associado, no Ocidente, ao que podemos definir de esquerda globalista ou talvez, de forma mais neutra, àquela parte da classe dirigente que, transitando transversalmente pelos diferentes níveis de governança territorial, estatal ou supranacional, vê a política como um prática técnico-administrativa e encontra nas ferramentas informáticas-estatísticas (aplicadas tanto à segurança quanto à economia) um meio para responder de forma objetiva e competente aos desafios que se colocam a um mundo ao mesmo tempo heterogêneo e interconectado.

A alternativa que a resposta ao risco da Coréia do Sul coloca diante de nós poderia ser resumida, misturando Foucault e Harari, na fórmula supervisionar ou proteger. O mito ou o projeto de uma tecnologia sob controle humano, institucional, capaz tanto em situações de emergência quanto no cotidiano de aprimorar as possibilidades dos cidadãos e do governo — por exemplo, protegendo o coletivo de vírus e ataques ou agilizando a burocracia e facilitando processos de tomada de decisão — em vez de tornar eles e seus dados vítimas do apetite das multinacionais ou das próprias forças políticas.


1.7. Serendipidade ?

Concluindo esta incursão no contexto da programação, vale a pena retornar à reação imediata ao acidente produzido pelo coronavírus. Os países do Extremo Oriente nos colocam diante da aleatoriedade desse tipo de evento em sua forma mais pura. Vimos como a China inicialmente negou a si mesma e à comunidade internacional o significado e a dimensão do que estava acontecendo, tornando, posteriormente, uma rígida programação a forma mais eficaz para se recuperar tanto em termos sanitários quanto de credibilidade (pelo menos em termos de gestão da crise) perante a opinião pública internacional.

O caso sul-coreano, por outro lado, nos expõe a outro tipo de situação que evidencia o vínculo complexo e o limite incerto entre a previsibilidade das crises e a aleatoriedade dos eventos. A resposta rápida e eficaz da Coreia do Sul dependeu também do fato de todo o sistema de prevenção desenvolvido pelo Estado após as crises da SARS de 2003 e da MERS de 2005 ter sido testado com uma simulação em dezembro mesmo. O vírus, portanto, encontrou a Coreia do Sul à sua espera. Um golpe de sorte ou uma demonstração de que os apelos científicos, que durante anos alertaram sobre nos prepararmos para uma pandemia global, poderiam realmente prevenir o risco ? É inevitável ver neste evento um certo grau de serendipidade, mas também a confirmação secular do lema Ajuda-te que o céu te ajudará.

 

2. Exposição, confusão, indiferença : formas da aleatoriedade
na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Brasil

Do lado oposto do modelo e das formas de lidar com o inesperado, temos uma resposta ao acidente do vírus que realmente segue, imita ou reproduz sua lógica. É uma modalidade de interação, com o vírus e com os governantes, muitas vezes retraída, mas não menos relevante justamente por se situar sob a égide da aleatoriedade.

No entanto, sob este rótulo se situam modos parcialmente diferentes de ação e significação. Para compreender seu alcance, é necessário antes de tudo sublinhar a diferença entre acidentes programados e acidentes involuntários : enquanto os primeiros seguem a lógica acidental do vírus ao mesmo tempo que tentam direcioná-la a um resultado esperado, os últimos parecem evitar assumir o modo de ação do vírus como seu, mas acabam, na verdade, reproduzindo seus efeitos. Em outras palavras, no primeiro caso o risco inerente é levado em conta na interação entre humanos e vírus, no segundo acaba por se expor (e expor os governados) ao risco do vírus justamente por ser negado ou subestimado.


2.1. O risco programado da Grã-Bretanha de Boris Johnson

Uma forma de risco programado é o inicialmente previsto pela Grã-Bretanha, ou seja, a ideia de Boris Johnson de dar rédea solta ao coronavírus, mesmo à custa de inúmeras mortes, para alcançar rapidamente aquela imunidade disseminada que entrou no jargão popular por meio da imagem da imunidade de rebanho. Um risco assumido abertamente a fim de garantir a estabilidade do tecido socioeconômico britânico. Esse regime de interação pode ser reconduzido àquela forma de aleatoriedade que Landowski chama de probabilidade matemática.8 A aposta inicial de Boris Johnson foi, na verdade, baseada em um cálculo, tanto sobre os efeitos potenciais do vírus na população quanto sobre sua curva evolutiva e, ainda, sobre as consequências socioeconômicas relacionadas. É, portanto, numa forma de aposta em um cenário e não noutro e, desta forma, nas relativas relações custo/benefício, que o risco pode ser assumido e ao mesmo tempo transformado em uma forma de programação.

8 Interações arriscadas, op. cit., pp. 78-80.

No entanto, isso não seria possível sem uma modelização matemática que, mesmo partindo do curso de epidemias anteriores, torna tais apostas pensáveis e minimamente críveis. Bruno Latour, escrevendo no Le Monde, enfatizou o papel constitutivo da estatística nesta crise9. Com sua abordagem usual, ele argumentou efetivamente que o vírus se constitui como um fenômeno pandêmico justamente pela possibilidade, agora disponível, de medir global e instantaneamente sua evolução. Ao mesmo tempo, torna-se um ator unitário, socialmente identificável mesmo fora dos circuitos científicos, graças às imagens das curvas de evolução e dos gráficos de disseminação que, sendo relançados de mídia em mídia, tornam sua existência e sua ação perceptíveis a nível popular, tanto em escala global, bem como de modo desagregado em outra escala. Ampliando o campo, seria possível comparar esse papel da modelização matemática relativa ao vírus aos modelos usados na área financeira para fazer apostas para o futuro. Na verdade, o mercado financeiro há muito aposta no risco, como no caso da compra de derivativos ou de investimentos na possibilidade de ocorrência de desastres naturais de diversos tipos.

9 “La crise sanitaire incite à se préparer à la mutation climatique”, Le Monde, 25 de março de 2020.

Nesse sentido, não é de se estranhar que uma certa potencialidade, uma certa lógica economicista e de alguma forma darwinista aplicada ao coronavírus, seja levada em consideração e talvez mesmo inicialmente aplicada : essa é efetivamente parte da sensibilidade liberal e das forças conservadoras que mais abertamente encarnam seu espírito.

Certamente é por acaso, mas a suposição dessa sensibilidade aberta ao risco se materializou em máximo grau no momento em que Boris Johnson foi internado na terapia intensiva por causa do coronavírus. Essa incorporação do risco se oferece ao olhar coletivo, a posteriori, como uma cadeia de causa e efeito : o indivíduo que hipotetizou uma exposição coletiva ao vírus o contraiu. Obviamente, essa reconstrução narrativa pode resultar tanto nas formas de retaliação irônica quanto nas de um heroísmo que aproxima os poderosos das pessoas comuns que lutam contra o vírus na linha de frente — médicos, enfermeiros, voluntários etc. O alcance democratizador do vírus encontra aqui, precisamente onde aparentava mais evidente uma sensibilidade elitista, senão cínica, uma aparente confirmação narrativa. Na realidade, esse evento único oculta a ambiguidade inerente ao próprio estatuto democratizante do vírus. Se é verdadeiro que todos estamos expostos, é igualmente verdade que a Covid-19 fez explodir as contradições planetárias e tornou evidentes as pequenas e grandes desigualdades sociais que marcam o presente10, como demonstram os estudos que nos EUA atestam a maior incidência do vírus entre minorias afro-americanas e latinas mais pobres em comparação com a população branca11.

10 “Le impreviste rivoluzione del Covid-19”, in A. Guigoni e R. Ferrari (orgs.), Pandemia 2020. La vita quotidiana in Italia con il Covid-19, Danyang, M&J Publishing House, 2020.

11 I.X. Kendi, “What the Racial Data Show”, The Atlantic, 6 de abril de 2020.


2.2. O caos e o acaso : a propagação do risco nos EUA de Trump
e no Brasil de Bolsonaro

Dentre aqueles os quais chamamos riscos involuntários poderia incluir as atitudes dos EUA de Donald Trump e do Brasil de Jair Bolsonaro, assim como as da China no início da crise. No entanto, o estatuto da natureza involuntária deste risco não isenta os governos de responsabilidades, mas, se possível, enfatiza o seu papel. Precisamente porque o risco do qual o vírus é portador não é considerado real, ele é a causa de uma condição saturada de incertezas e um prenúncio de novos acidentes. Poderíamos, portanto, dizer que enfrentamos um risco involuntário, mas causado. Tanto Trump como Bolsonaro não dando crédito ao vírus e seu perigo, não tendo posto em prática uma estratégia clara de contenção, de fato se prestam à acusação de terem favorecido sua disseminação. Vamos reiterar : aqui está precisamente a ausência de um agir programático ou estratégico, mas também poderia se dizer de um agir claro, para fazer a diferença e nos conduzir no campo da lógica do acidente.

O que precisa ser focalizado é que essa condição de aleatoriedade não se refere simplesmente à disseminação do vírus entre a população, mas remete a uma condição político-institucional mais ampla. Em outras palavras, esses atores políticos transferem o sentido da aleatoriedade a que o vírus expõe a população ao nível do funcionamento da sociedade como um todo : ao fazer isso, sua própria conduta torna-se “o vírus” que provoca novos acidentes semiopolíticos.

No caso de Trump, a crítica a esse modo de (in)ação levou a uma série de reviravoltas já clássicas, completadas por tweets autocongratulatórios (e contraditórios) sobre suas habilidades de tomada de decisão. Como escreveu Ed Yong,

Convencer um país inteiro a ficar em casa voluntariamente por semanas não é fácil, e visto que não havia diretrizes claras da Casa Branca, os prefeitos, os governadores e os empregadores tiveram que decidir por si próprios. (...) uma coordenação bem definida é essencial (...). Em vez disso, Trump muitas vezes minimizou a gravidade da situação, dizendo aos cidadãos que “tudo está sob controle” quando não era o caso, e alegando que as infecções estavam “caindo quase a zero” quando na realidade estavam aumentando. Ele até propôs o uso de medicamentos que ainda necessitam ter sua eficácia comprovada.12

Igualmente no caso do presidente brasileiro, estamos diante de uma série de acidentes em cascata — não apenas aqueles relacionados à propagação do vírus, mas também os de origem institucional causados pela (não) gestão da pandemia em curso. Essa múltipla “acidentalidade” é representada de maneira icástica pelas imagens do presidente apertando a mão e tirando selfies com seus apoiadores, enquanto vários estados da República federativa já haviam ordenado o isolamento em casa para seus cidadãos, gestos que geraram acusações de cientistas (“É uma loucura. Não há justificativa para esse tipo de comportamento” ; “Ele está fazendo uma aposta perigosa ...” ; “Tudo o que ele diz e faz tem forte impacto nas pessoas ...” ; “Precisamos de um discurso unitário”; “Está confundindo as pessoas”13) e os relativos enxames de polêmica online e protestos ruidosos das varandas — os chamados panelaços.

O acidente nesses casos se apresenta como ação pessoal — em franco contraste com as escolhas adotadas por outros atores institucionais legitimados e determinados a seguir as diretrizes ditadas pela OMS e pelo discurso científico — que gera incerteza sobre a conduta individual a se manter diante do vírus ; ou como ação política que gera contradições entre partes do corpo social que se encontram profundamente divididas sobre o significado do vírus e sobre como lidar com ele. Em ambas as situações, o que resulta é, portanto, uma sensação de caos que expõe novamente ao acaso.

12 E. Yong, “La superpotenza malata”, The Atlantic, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 3 de abril de 2020, p. 22.

13 Cf. T. e D. Phillips, “Bolsonaro dragging Brazil towards coronavirus calamity, experts fear”, The Guardian, 12 de abril de 2020.


2.3. Absolutismo de retorno

Se esse caos é politicamente sustentável, é somente graças a dois pressupostos. O primeiro é que a mutabilidade arbitrária das decisões desses líderes, tão forte a ponto de fazer suas ações parecerem provocações deliberadas, é parte fundamental daquela estética política “fora da caixa” que favoreceu seu surgimento e aprovação14. Isso permite caracterizar esse regime político, segundo uma fórmula inteligente de Landowski, como uma forma de absolutismo15. Ou melhor ainda, diríamos, um absolutismo de retorno, em que os “príncipes”, por mais que eleitos democraticamente, elevam o “capricho” a um estilo de governo, bem como a uma causa ou a uma consequência da própria aprovação. De tudo isso resulta um estado de contínua ameaça do acidente — real ou potencial.

14 F. Sedda e P. Demuru, “La rivoluzione del linguaggio social-ista : umori, rumori, sparate, provocazioni”, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 1, 2019 ; ids, “Social-ismo. Forme dell’espressione politica nell’era del populismo digitale”, Carte semiotiche-Annali, 6, 2020.

15 E. Landowski, “Politiques de la sémiotique”, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 1, 2019.

No entanto, isso não teria acontecido se o correspondente desta forma de vida não fosse a transposição da expectativa religiosa para o campo político que Juri Lotman, estudando o estatuto divino e o comportamento errático dos czares, definiu como o confiar a si mesmo um poder que assim ganha um estatuto “divino”, oposto ao modelo contratual de relação entre governantes e governados que funda uma ideia “laica” de política16. Não entraremos aqui nas complexas hipóteses sobre as condições históricas, culturais, psicológicas que podem favorecer o surgimento dessa relação. No entanto, é interessante observar como a lógica dos seguidores fanáticos — aqueles que se tornam quase indistinguíveis dos bots — repropõe no mundo contemporâneo a ideia de uma devoção unilateral, uma confiança quase cega no “imperador” do momento. No Brasil, Marvel Pereira, colunista do jornal O Globo, chegou a acusar Bolsonaro de atuar como “um líder místico que leva seus seguidores ao suicídio coletivo”17.

16 Cf. J.M. Lotman, Testo e contesto. Semiotica dell’arte e della cultura, Roma-Bari, Laterza, 1980.

17 In T. e D. Phillips, art. cit.

A crise da pandemia, como ocorre na maioria das crises percebidas como um “ataque de fora”, pode reacender essa dinâmica de confiança : não é por acaso que a aprovação imediata ao presidente Trump, empenhado em um trabalho árduo de comunicação para rotular a Covid-19 como um “vírus chinês”, se mostrou em crescimento. Além disso, essa dinâmica pode facilmente estender-se a quem se coloca na posição de agente da “salvação” coletiva, como pareceram atestar as inesperadas formas de enamoramento e seguimento nas redes sociais que no momento da crise envolveram a figura até então anódina do chefe do governo italiano Giuseppe Conte.

Permanece, no entanto, a questão se é possível pensar um acidente político do tipo positivo. As reflexões recentes de Landowski parecem não deixar espaço para essa possibilidade18. Entretanto, não é difícil pensar em figuras de líderes políticos que basearam sua carga carismática na inventividade e em um estilo de ação política em muitos aspectos imprevisível, capaz de surpreender e desconcertar tanto seus adversários quanto seus seguidores. Um caso emblemático é certamente o de Gandhi, não surpreendentemente lembrado como contraexemplo por comentaristas sobre as estratégias de Modi e seu governo diante da chegada do vírus à Índia. Voltaremos a isso falando sobre as formas de ajustamento sensível diante do risco e da crise.

18 “Politiques de la sémiotique”, art. cit.


2.4. Rebanhos, facções, indivíduos : formas do caos

Deixando em aberto as considerações teóricas mais gerais e voltando ao nosso percurso relativo à gestão semiopolítica do coronavírus, é preciso dizer que o risco e o acidente também podem ser gerados por incompetência, indecisão, incapacidade de agir, como talvez tenha acontecido na Espanha : nesses casos, como veremos, ainda estamos inseridos em uma tentativa de manipulação, isto é, de uma ação estratégica que, no entanto, falha. Os casos da Grã-Bretanha, do Brasil e dos EUA nos parecem nada mais do que uma manipulação fracassada ou ineficaz. Estes, na verdade, ao se exporem ao risco, geram não apenas mais incidentes semiopolíticos, mas articulam, de modo correlato, uma identidade específica dos respectivos governados.

No caso da Grã-Bretanha, a escolha da ação, surgida enquanto os demais estados envolvidos no combate ao vírus optaram por formas de programação ou manipulação, parece remeter a uma ideia de excepcionalidade que vem sendo marcada e impulsionada pela recente conclusão do processo Brexit. Também aqui, portanto, uma sensibilidade — um estado humoral e, ao mesmo tempo, mental — parece fazer parte da escolha do modo de interação : no entanto, parece ainda mais profundamente referir-se a uma lógica posicional e opositiva, a uma busca por distinção. Sobre o nome a ser dado ao coletivo resultante nos debruçaremos mais adiante. No entanto, é preciso já dizer que na lógica do acidente as figuras que tornam o coletivo concebível tendem a se pluralizar mais facilmente, em consonância com sua natureza intimamente elusiva e polimórfica.

 

No caso do Brasil, o caos gerado parece tratar o coletivo como um conjunto de facções : o que na época de Lula era Um País de todos, um país de todas as partes que o compunham, já com Bolsonaro encontra-se articulado segundo um modelo polarizador que se reproduz em vários níveis19. As ações de Bolsonaro diante do vírus parecem confirmar e reforçar essa modelagem paradoxal do coletivo, unido sobretudo por sua conflituosa desunião. Certamente não se pode descartar que o atual presidente, pelo menos inicialmente, quisesse se entregar àquela sensibilidade cotidiana, generalizada, que faz do contato e do saber “ter o jeito” se virar uma tendencia de fundo da forma de vida dos brasileiros20. Um saber viver que mesmo nas condições mais difíceis euforiza a liberdade e a estetização das vivencias cotidianas, tornando plausível, senão popular, deixar as coisas seguirem por si mesmas na direção certa, talvez sob a proteção divina, como atestam os encontros evangélicos que enquanto transgrediam todas as regras de distanciamento faziam da oração um instrumento de salvação do vírus.

19 Cf. P. Demuru, “Simboli nazionali, regimi di interazione e populismo mediatico : prospettive sociosemiotiche”, Estudos semióticos, 15, 1, 2019 ; F. Sedda e P.Demuru, “La rivoluzione del linguaggio social-ista”, art. cit.

20 Cf. P. Demuru, Essere in gioco. Calcio e cultura tra Brasile e Italia, Bologna, Bononia University Press, 2014.

No caso dos Estados Unidos, a forma do coletivo estabelecida pelas ações de Trump parece referir-se, ainda mais do que a um corpo social fragmentado segundo uma lógica partidária, a uma ideia de sociedade formada por uma série de indivíduos essencialmente livres para determinar o modo de ação adequada para sua proteção. É muito fácil corroborar com essa abordagem lembrando as imagens de estadunidenses fazendo fila em frente às lojas de armas, mais do que em frente aos supermercados, com o avanço do medo do vírus. Embora esses exemplos brasileiros e americanos sejam certamente parciais e banais, remetem a uma força dos estereótipos ; à sua capacidade de condensar ideologias e estilos de vida difundidos, que em condições de crise podem ser politicamente ativados ou oferecer suporte a determinadas políticas. Não é difícil, de fato, ver o confiar no divino ou na força das armas como um correlativo do investimento no risco. Ou ainda mais precisamente, se nos permitem utilizar esse termo, um incitamento involuntário ao risco : correr riscos acreditando que se protege.

Os casos da Grã-Bretanha, do Brasil e dos EUA nos mostram que, onde a lógica do risco prevalece, a individualidade passa a ser uma característica dominante. Porém, onde é reconduzida a uma dimensão programática, assume uma forma totalizante, ao passo que, onde sustenta a lógica do risco, assume uma fragmentação. Portanto, pode-se dizer que, no caso da Grã-Bretanha, estamos diante de um individualismo holístico, enquanto nos Estados Unidos e no Brasil estamos diante de um individualismo partitivo. No que tange ao nível atorial, no caso da Grã-Bretanha, essa dinâmica se resolve na oscilação entre a imagem do império, uma figura nostalgicamente removida do debate sobre a excepcionalidade britânica e seu papel planetário, e a imagem, mais prosaica e talvez mais correta, do rebanho, uma massa indistinta mas pronta a seguir o seu pastor, sempre de acordo com o estereótipo, já que a ideia seria desmentida por quem tem uma cultura agro-pastoril (ou pelo menos viu o cartoon britânico Shaun a ovelha). Nos outros dois casos, ao invés disso, nos deparamos com as facções brasileiras e com os indivíduos estadunidenses : formas de uma fragmentação que agudizando o conflito social, temendo um retorno ao estado de anarquia, tornam a figura de um líder leviatã ainda mais indispensável.

A situação não é paradoxal visto que se o caos foi semioticamente associado à ideia de uma massa tendencialmente amorfa, como aquela que o senso comum associa ao rebanho, por outro lado ele tem um equivalente menos evidente na individualização extrema, conflitante, não comunicante, como mostramos em nossa análise semiopolítica da descrição do campo de concentração de Primo Levi21.

21 Cf. Imperfette traduzioni. Semiopolitica delle culture, Roma, Nuova Cultura, 2012.


2.5. Negacionismo e vagueza

A lógica do acidente, como vimos, é dominada por figuras “individualistas”. No entanto, o que nos parece mais relevante aqui, como já antecipamos, é que a dimensão caótica acidental é dada, mais ainda do que pela entrada repentina do vírus nas várias semiosferas, pela resposta oferecida diante do vírus : uma resposta que quando não esteve ausente, foi vaga ou vacilante.

Pensemos nas recentes intenções de Trump de reabrir os EUA sem nem mesmo ter respeitado um verdadeiro confinamento e enquanto o país apresentava o maior número de contágios do mundo. A atitude trumpiana em relação ao vírus rima em profundidade com o que o presidente dos Estados Unidos sustentou com relação à questão da emergência climática : um substancial negacionismo alimentado, em momentos, por reviravoltas desorientadoras. A crise induzida pela pandemia também destacou as escolhas feitas por Trump em questões sanitárias : o escritório de preparação para pandemias, que fazia parte do conselho de segurança nacional, foi fechado por seu governo em 2018.

Quando o vírus chegou aos EUA, o fato mais surpreendente não foi, portanto, a chegada da pandemia em si, mas a incapacidade do país mais avançado do mundo de oferecer as respostas mais basilares : “Que um país na vanguarda do campo da biomedicina como os Estados Unidos falhasse em criar um teste diagnóstico muito simples era, literalmente, inimaginável”22. Ou, para citar Alexandra Phelan, da Universidade de Georgetown : “Nenhuma simulação, até onde eu sei, considerou a possibilidade de que havia problemas com os testes”23.

22 E. Yong, “La superpotenza malata”, art. cit., p. 20.

23 Citado por E. Yong, art.cit.

Daí aquela cadeia de erros, para usarmos os termos de Yong, e, então, aquele caos em cascata, aquela imprevisibilidade causada, a qual mencionamos antes. Se tratava, portanto, de uma espécie de serendipidade negativa, inversa àquela positiva sul-coreana ? Ou um caos politicamente induzido pelas escolhas negativas de Trump e sua administração ? Este não é o lugar para responder. Afinal, também hipotetizar ou comprovar uma correlação entre as escolhas de Trump e a crise em que o coronavírus lançou os EUA — no momento o lugar com mais infectados do mundo — não implica, pelo menos no curto prazo, perda de credibilidade e aprovação do atual presidente aos olhos de seus eleitores, seus “fiéis”.

O que nos parece útil aqui é aproveitar esse caso para refletir mais profundamente sobre a dinâmica da imprevisibilidade. Parece-nos que esse cenário nos oferece uma forma de irmos além do paralelismo com as mudanças climáticas : perante estas, o que nos assusta não é tanto que o tempo mude ou que possam ocorrer catástrofes atmosféricas, mas mais sutilmente o fato de não existir (mais) um ritmo reconhecível em suas transformações. Não nos habituamos a tempo à ideia de que “já não existem mais estações amenas” de forma que hoje nos parece que num dia, todos os dias, todas as estações podem acontecer. É assim mesmo ? Provavelmente não, mas a percepção de que os eventos carecem de previsibilidade — aquela previsibilidade que os torna controláveis cognitivamente, emocionalmente, praticamente — nos dá uma sensação de acidente constante. O mesmo vale para a turbulenta instabilidade das esferas políticas (e geopolíticas) que explodiram desde o fim da ordem criada pela Guerra Fria24. No entanto, nada se comparado às atitudes erráticas de alguns dos principais líderes atuais, como precisamente Trump ou Bolsonaro, tornadas ainda mais evidentes pelo caso Covid-19 : quanto mais seu agir e comunicar criam ou transmitem um sentimento de instabilidade subjacente, mais a imprevisibilidade tende a se tornar uma presença constante e um ator importante na vida de seus cidadãos e do planeta como um todo.

24 Cf. J. Rosenau, Turbulence in World Politics. A Theory of Change and Continuity, Princeton, Princeton University Press, 1990.


1 F. Sedda, “Il virus, gli stati, i collettivi : interazioni semiopolitiche”, E/C, revista da Associação italiana de estudos semióticos (www.ec-aiss.it). O autor agradece a Micaela Altamirano pela tradução para o português e Paolo Demuru pela leitura, comentários e revisão do texto.

2 Cf. Interações arriscadas (2005), São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014.

3 Para um exemplo nosso, veja o campo sociossemiótico construído a partir da oposição entre as posições de “cidadão” e “consumidor”, em Imperfette traduzioni. Semiopolitica delle culture, Roma, Nuova Cultura, 2012, cap. 3.

4 As presentes elaborações baseiam-se nas múltiplas e fragmentárias visões e leituras induzidas por este tempo de crise. Relataremos apenas aquelas das quais extraímos algumas citações.

5 F. Rampini, “La lezione di Confucio”, Il Venerdì di Repubblica, 27 de março de 2020, p. 22.

6 N.Y.Harari, “Il mondo dopo il virus”, Financial Times, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 27 de março de 2020, p. 20.

7 Cf. J. Won Sonn, “I limiti del modello sudcoreano”, The Conversation, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 27 de março de 2020, pp. 29-30.

8 Interações arriscadas, op. cit., pp. 78-80.

9 “La crise sanitaire incite à se préparer à la mutation climatique”, Le Monde, 25 de março de 2020.

10 “Le impreviste rivoluzione del Covid-19”, in A. Guigoni e R. Ferrari (orgs.), Pandemia 2020. La vita quotidiana in Italia con il Covid-19, Danyang, M&J Publishing House, 2020.

11 I.X. Kendi, “What the Racial Data Show”, The Atlantic, 6 de abril de 2020.

12 E. Yong, “La superpotenza malata”, The Atlantic, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 3 de abril de 2020, p. 22.

13 Cf. T. e D. Phillips, “Bolsonaro dragging Brazil towards coronavirus calamity, experts fear”, The Guardian, 12 de abril de 2020.

14 F. Sedda e P. Demuru, “La rivoluzione del linguaggio social-ista : umori, rumori, sparate, provocazioni”, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 1, 2019 ; ids, “Social-ismo. Forme dell’espressione politica nell’era del populismo digitale”, Carte semiotiche-Annali, 6, 2020.

15 E. Landowski, “Politiques de la sémiotique”, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 1, 2019.

16 Cf. J.M. Lotman, Testo e contesto. Semiotica dell’arte e della cultura, Roma-Bari, Laterza, 1980.

17 In T. e D. Phillips, art. cit.

18 “Politiques de la sémiotique”, art. cit.

19 Cf. P. Demuru, “Simboli nazionali, regimi di interazione e populismo mediatico : prospettive sociosemiotiche”, Estudos semióticos, 15, 1, 2019 ; F. Sedda e P.Demuru, “La rivoluzione del linguaggio social-ista”, art. cit.

20 Cf. P. Demuru, Essere in gioco. Calcio e cultura tra Brasile e Italia, Bologna, Bononia University Press, 2014.

21 Cf. Imperfette traduzioni. Semiopolitica delle culture, Roma, Nuova Cultura, 2012.

22 E. Yong, “La superpotenza malata”, art. cit., p. 20.

23 Citado por E. Yong, art.cit.

24 Cf. J. Rosenau, Turbulence in World Politics. A Theory of Change and Continuity, Princeton, Princeton University Press, 1990.

 

Page 2 >