O vírus, os estados, os coletivos : interações semiopolíticas

3. O povo a motivar ou mobilizar : as manipulações da Itália
e da Alemanha

Uma outra forma de enfrentar o vírus é definida como manipulação, entendida segundo Landowski como uma ação estratégica que fundamenta a interação na defrontação entre subjetividades, ambas movidas por uma dimensão intencional-motivacional. É o que acontece na maioria dos Estados democráticos e para o qual se dirigem de forma geral mesmo os países que inicialmente sustentaram a lógica do risco. Não podendo ou não querendo implementar medidas puramente repressivas ou tecnocráticas, não conseguindo sustentar uma situação de abertura inicial ao acidente, esses Estados se concentram sobre uma ação de convencimento das pessoas de modo que respeitem uma série de regras de autossegregação, distanciamento, higiene.


3.1. Uma vez feita a Itália, tem que fazer-fazer os italianos

O quanto isso se baseia na capacidade do Estado de fazer-fazer, de convencer seus cidadãos a fazer, é revelado pela enorme quantidade de ação comunicativa e legislativa desenvolvida ad hoc na Itália para inculcar regras que de outra forma, muito provavelmente, não seriam seguidas porque pressupõem uma sensibilidade social adversa em relação às próprias regras e, portanto, à renúncia a um estilo de vida específico. Basta dizer que só no período da Páscoa na Itália foram impostas 13.000 sanções relacionadas ao não cumprimento das regras impostas pelo governo, dados relatados por Sebastiano Messina no La Repubblica de 14 de abril, enquanto na Nova Zelândia, sobre cujo civismo voltaremos adiante, em 8 de abril apenas 45 pessoas foram multadas25. Desta tensão entre manipulação e sensibilidade, mesmo as entidades, no fim das contas, aliviaram as penalidades aos infratores dispondo-se a uma abertura a um regime de adaptação (inclusive normativo) aos hábitos dominantes, que, no entanto, desaguou no caos burocrático das autocertificações e, portanto, na geração de novas tensões, novas incertezas, novas formas de aleatoriedade.

25 Ver I. Artiaco, “Il caso Nuova Zelanda, che in due settimane ha (quasi) sconfitto il Coronavirus”, fanpage.it, 8 de abril de 2020.

A estratégia manipulatória, aliás, mais do que abordar o vírus, se baseia aqui em um jogo simulacral entre governantes e governados : estes últimos tornam-se, efetivamente, alvos de uma comunicação, inicialmente institucional e aos poucos cada vez mais autoproduzida pelas publicações informativas, empresas, particulares, que visam mobilizá-los. E, para isso, os instaura no jogo simulacral como uma subjetividade dotada de intencionalidade e vontade unitária. O resultado é uma ênfase na figura do povo, que pode ser carregada tanto de valores nacionalistas (como no apelo inicial de italianos contra “os chineses”), bem como patrióticas, como na posterior enfatização das virtudes cívicas dos italianos, cujo aplauso coral para o pessoal de saúde, a música compartilhada de varanda em varanda, de tela em tela, seria o aspecto visível.

O mais recente tweet de um dos principais nomes do jornal La Repubblica, Luca Bottura, é um testemunho sintético do quanto essas lógicas foram levadas ao extremo : “Quem está cheio da publicidade motivacional sobre o orgulho italiano, retuite ou coloque um coração #covid19”, que obteve mais de 6.000 curtidas em poucas horas (4 de agosto). O tom sempre irônico de Bottura não diminui essa sensação de estratégia que se tornou excessiva. Principalmente porque o próprio Bottura, com todos os outros nomes do La Repubblica, havia, no ápice da crise, participado dessa ativação do patriotismo italiano, por exemplo, por meio do especial Agora cabe a nós — O momento da unidade.

Por outro lado, dentro de um mesmo Estado a lógica manipulatória pode ser refratada em diferentes níveis e, portanto, evidenciar as tensões internas entre as partes do coletivo que, por razões ideológicas ou territoriais, históricas ou contingentes, se sentem depositárias de uma vontade própria e que, por sua vez, podem instaurar a si mesmas na interação como um povo no povo ou como outro povo. O amargo conflito entre Estado central e a região da Lombardia (e também com a do Vêneto) é, nesse sentido, sintomático. Na verdade, não se trata apenas de uma questão de olhar e de escala analítica, mas do fato que as crises colocam à prova os laços “voluntários” que constituem o Estado-nação, mesmo onde a presença de uma vontade coletiva possa parecer dada e estabelecida.


3.2. Uma vontade distribuída : a Alemanha (e a Nova Zelândia)

Nesse sentido, se mostra interessante o caso da Alemanha, em que o Estado agiu recomendando uma série de restrições que são, no entanto, da competência dos 16 diferentes Länder, os estados que compõem a República Federal, com seus 400 institutos de saúde pública. Isso deu origem a soluções às vezes conflitantes, de modo que, enquanto em Berlim ainda era possível comprar um livro na livraria, não se podia mais fazer piqueniques nos parques, ao passo que em Baden-Württemberg a regra era exatamente oposta. Embora inicialmente estigmatizada sob o olhar exterior como paquidérmica ou anárquica, a situação alemã não só não causou a proliferação do acidente pandêmico, mas se mostrou capaz, a médio prazo, de impelir uma particular forma de resiliência, tal que a complexidade causada pelo acidente foi respondida colocando em movimento um sistema de respostas igualmente complexo e variado.

O caso alemão é interessante para nossa discussão porque é habitado por uma alma dupla. Por um lado, solicita a imaginação de um corpo fortemente organizado, precisamente porque é descentralizado, e disciplinado, precisamente porque é movido por uma vontade que se torna concreta e efetiva. Nesse sentido, surge como a concretização de uma ideia cívica de povo, a qual não é produzida bajulando-o, oferecendo-lhe ad hoc um simulacro positivo ao qual se conformar, apoiado pelo simulacro oposto das sanções que, caso contrário, inevitavelmente se seguiriam (dinâmica nacionalista italiana “da vara e da cenoura”) ; ao contrário, parece ser um “povo” precisamente porque valida a ideia de uma interação bem-sucedida entre uma vontade coletiva e uma vontade distribuída, entre um governo que soberanamente recomenda e aqueles governados que livremente assumem e dão substância a essa vontade : um paradoxo alimentado por um trabalho de motivação mútua que a emergência ressalta, mas não necessariamente cria. Por outro lado, isso nos leva a enxergar no caso alemão um modelo fortemente institucionalizado de ajustamento recíproco. Ou, se se preferir, um modelo de ajustamento entre sensibilidades institucionais.

No rastro da Alemanha poderíamos situar com proveito o caso da Nova Zelândia, capaz de merecer o elogio do Washington Post que falou de um sucesso baseado em uma estratégia não de contenção, mas de eliminação do vírus possibilitada pela combinação entre ciência e liderança. O Estado oceânico liderado pela jovem dirigente Jacinda Ardern de fato usufruiu sua condição de insularidade para blindar o país e impor prontamente as medidas restritivas recomendadas pelos cientistas. Essas medidas se tornaram efetivas por meio de um civismo generalizado e da colaboração bipartidária entre a maioria progressista e a oposição conservadora. O exemplo dado pela classe dirigente tornou as duras medidas adotadas ainda mais credíveis. Mesmo o ministro da saúde, David Clark, uma das poucas pessoas flagradas violando o confinamento, renunciou imediatamente e fez uma anistia pública declarando que era “um idiota” — comportamento que lhe rendeu a recusa da renúncia.


3.3. O primado do Estado e da cidadania

O regime manipulatório, em seu conjunto, reafirma a primazia da política estadista, sua capacidade de mobilizar e orientar os coletivos convocando seu nacionalismo ou patriotismo, valendo-se da organização institucional da vontade, potencializando a autoridade e o consenso em torno de um governo ou liderança. Não se trata sempre do mesmo tipo de manipulação, mas em certa medida o que está sempre em jogo é a ideia de uma vontade em ação da qual o Estado é o eixo decisivo.

Poderíamos dizer que no caso do ajustamento, no qual nos concentraremos para concluir esta exploração, é a sensibilidade da cidadania, que já emerge nos casos apenas vislumbrados, que se torna ainda mais central. Como se na passagem da manipulação para o ajustamento, o centro de gravidade mudasse dos governantes para os governados. No entanto, é difícil fazer uma distinção clara e talvez o que realmente caracterize os dois regimes seja o fato de que no segundo a relação entre governantes e governados se apresenta mais dialética e baseada na premissa de uma relação complexa de confiança mútua que, apesar de uma ligação de interdependência, faz da chamada sociedade civil um ator autônomo, dotado de uma sensibilidade que não somente pode ser estimulada, mas ela mesma estimula as escolhas do Estado. Além de ser o controlador dessas escolhas, como sugeriu Harari.

Veremos agora o quão difícil é atingir este último cenário, especialmente em um contexto de crise inesperada como a induzida pela pandemia, mas também como é necessário pensar sobre isso e talvez até mesmo defini-lo como um horizonte a ser perseguido.

4. Sensibilidade a valorizar-se : Grécia, Índia, Suécia

O ajustamento é uma forma de relação paritária, em que duas sensibilidades se realizam explorando juntas as potencialidades uma da outra. Ao passar de relações inter-corpóreas, como a dança, um exemplo clássico no modelo de Landowski, para a política, sua aplicação corre o risco de torná-la um regime “utópico”. Em que termos, de fato, podemos pensar em um governo que se modifica e cresce a partir da transformação da sensibilidade de seus governados ? E como pensar em tal ajustamento diante do acidente, isto é, quando as sensibilidades são convocadas por uma contingência radical ? Vimos como o tema da sensibilidade se insinua em todos os outros regimes. Para dar uma explicação mais detalhada, consideraremos primeiro o caso particular da Grécia, que também nos mostra o quanto as interações se complexificam com o andamento da crise. Veremos depois dois casos, os da Índia e da Suécia, que nos permitirão explorar, de modo mais abrangente, os paradoxos e peculiaridades do ajustamento.

 

4.1. Grécia no espelho da Itália : ajustamento como
modelização analógica ?

Os acontecimentos italianos que analisamos anteriormente nos dão a oportunidade de nos debruçar sobre um caso, o da Grécia, que pelas conexões que estabelece nos permite refletir sobre a ligação entre contágio e ajustamento, ao mesmo tempo em que mostra como o avanço da crise muda ainda mais o foco das relações : ao jogo tríplice entre vírus, Estado e coletivo se some efetivamente a interação entre Estados e entre coletivos, tanto na forma de um olhar que um Estado dirige a outros Estados para decidir o que fazer, quanto pelo modo como um coletivo, espelhando-se em outros coletivos, molda seus humores, suas expectativas, seu comportamento.

As políticas manipulatórias implementadas pela Grécia, semelhantes às da Itália, seriam de fato realizadas, de acordo com alguns analistas, segundo o que poderíamos definir como uma modelização sensível. Filippos Filippidis, pesquisador do Imperial College London, observou no site Greek Reporter :

A Grécia teve, em certo sentido, a sorte de testemunhar o drama enquanto ocorria em um país, a Itália, do qual Atenas se sente próxima, semelhante e familiar. A Europa não levou o caso chinês a sério porque é “muito longe” e “muito diferente”. Em vez disso, para todos os gregos, a Itália era impossível de subestimar. Assim, o governo reagiu de forma mais rápida e eficaz do que a maioria dos parceiros europeus.26

A Grécia, com seu estilo de vida caloroso tão parecido com a Itália, potencialmente difícil de administrar justamente pelo hábito dos corpos em contato, frequentando espaços públicos, teria encontrado no “vivido” italiano o elemento no qual se basear, uma modelização eficaz não apenas para uma compreensão cognitiva de seu valor, mas também para uma consonância mais profunda, uma espécie de con-sentimento capaz de gerar consenso acerca de medidas impopulares.

26 Cf. T. Kokkinidis, “Greece Emerges as International Model for Coronavirus Early Response”, Greek Reporter, 30 de março de 2020.

As manipulações gregas foram certamente eficazes graças à possibilidade de usufruir a antecipação da chegada da crise : um fator aleatório que, aliás, suscita em muitos cientistas a procura de fatores causais atualmente desconhecidos que determinam a temporalidade, intensidade e formas de circulação do vírus que, como lembrou a bióloga Siddhartha Mukherjee, só podem ser obtidas “medindo o vírus dentro das pessoas”27. Fato que renova, ainda que sob a égide da ciência, as tensões entre a privacidade dos corpos e a necessidade de seu controle. Porém, as manipulações gregas, conforme a reconstrução que vimos, encontram um gatilho e uma legitimidade na sintonia “natural” de um coletivo com uma outra experiência.

27 S. Mukherjee, “Il virus fuori e dentro di noi”, The New Yorker, 26 de março 2020, p. 25.

Essa naturalidade remete, em um nível superficial, ao mecanismo da metáfora narrativa que faz da história de uns a parábola eficaz para os outros ; em profundidade, ao invés disso, a situação questiona um raciocínio analógico não verbal, não representacional28, que nos permite apreender a estrutura que sustenta esse jogo (mediado) entre sensibilidades : ou seja, uma analogia do tipo “se eles são como nós e tiveram de fechar tudo, então devemos também fechar (embora isso vá contra a nossa sensibilidade e de momento não pareça necessário fazê-lo)”.

28 Cf. P. Fabbri, La svolta semiotica, Bari, Laterza, 1998 ; I. Pezzini (org.), Semiotic efficacity and the effectiveness of the text. From effects to affects, Turnhout, Brepols, 2001 ; G. Marrone, Corpi sociali, Torino, Einaudi, 2001.

O caso da Grécia no espelho da Itália, portanto, nos permite pensar quanto e como no momento do risco muitas escolhas quanto à modalidade de ação (ou um certo nível de escolha) ocorrem por meio de uma modelização analógica, que alguns também poderiam definir como inconsciente : um corpo social ajusta-se ao outro, encontrando na trama de estereótipos, imagens, histórias, experiências alheias, na correlação profunda com elas, a forma efetiva de redefinir sua própria sensibilidade.

Há, no entanto, um aspecto a sublinhar : a Grécia pode mudar sem que isso mude a Itália. Essa, portanto, parece ser mais uma influência unilateral do que um ajustamento recíproco : um contágio no sentido estrito ao invés de um contágio no sentido semiótico. Sendo assim, tentemos observar outros casos que podem nos aproximar da ideia semiótica de ajustamento.


4.2. Ajustamento como compaixão : a Índia de Modi
no espelho de Gandhi

No universo da política, pode-se se talvez vislumbrar uma forma de ajustamento — ou, pelo menos, uma de suas dimensões — sob o aspecto de um ajustamento mal sucedido. É o caso da Índia, onde o governo Modi decretou repentinamente o fechamento do país, dando apenas quatro horas de prévio aviso, desencadeando a fuga em massa de trabalhadores pendulares das cidades para o campo e colocando em dificuldade multidões de pessoas pobres que de repente se viram sem nada para viver. O que alguns observadores criticaram foi a falta de compaixão da parte do governo nacionalista hindu, uma categoria moral, individual, que pressupõe não apenas a capacidade de sentir o sentir do outro, mas também de antecipar as consequências de suas próprias ações :

A Índia poderia aprender com países como Coréia do Sul e Taiwan, que lutaram contra o vírus sem fechar completamente o país. Precisamos considerar a possibilidade de um passo atrás. O Estado não tem a compaixão, a capacidade e a vontade de apoiar a todos, ricos e pobres. Não há melhor momento para lembrar Mahatma Gandhi. Quando estamos em dúvida e confusos, aconselhava, precisamos pensar na pessoa mais vulnerável que conhecemos e nos perguntar se nossas medidas vão melhorar sua vida e torná-la mais livre.29

Não é por acaso que esta concepção de um Estado capaz de sentimentos morais, bem como de um comportamento ditado por uma capacidade de prever, ou melhor, de pré-sentir imaginativamente o sentimento dos outros, surge de forma tão explícita no contexto indiano e em conexão com a figura de Gandhi que atribuía à individualidade do Estado as mesmas características morais da individualidade pessoal.

Num contexto alimentado por esta sensibilidade ideológica, face a uma programação que se expõe de forma tão brutal às imagens do drama dos corpos em fuga ou famintos, o questionamento da (in)sensibilidade do Estado e das suas escolhas leva a acolher a possibilidade de uma política que deve saber modificar a si mesma baseada em um sentir popular ao mesmo tempo imaginado, compartilhado e em devir.

Pode ser útil notar, extraindo outro fragmento da massa de posições desencadeadas pela crise do coronavírus, que a categoria da compaixão também foi questionada por Barack Obama em discurso dirigido a administradores locais dos EUA. A frase que se espalhou pelo mundo — “Speak the truth. Speak it clearly. Speak it with compassion. Speak it with empathy for what folks are going through” — parece salientar uma abordagem da crise em que os governantes devem saber modificar sua própria atitude em relação ao sentir das pessoas a fim de poderem alcançar objetivos comuns. O corpo político e o corpo da cidadania se veriam então envolvidos em um trabalho de ajustamento recíproco.

Além disso, essa compaixão é a causa e o efeito de um discurso verdadeiro, claro e sem distorções (“the biggest mistake any of us can make in these situations is to misinform”) sobre a própria crise. Se esta afirmação obviamente joga para derrubar os traços da posição falsa, vaga e distorcida de Trump, ao mesmo tempo parece ressaltar que apenas um modo de ação capaz de entrar em uma interação de ajustamento sensível pode efetivamente se abrir para outros regimes, como o da manipulação.

29 H. Mander, “L’India si è fermata e i più poveri moriranno”, The Indian Express, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 27 de março 2020, pp. 27-28.

De maneira mais geral, e como logo veremos, o ajustamento na política parece se correlacionar dentro do discurso político não apenas com o tema da compaixão, mas também com o da confiança mútua. Para compreendê-lo, vamos voltar mais uma vez às ações do governo indiano diante do vírus e de sua própria comunidade. Arundhati Roy descreveu sua forma e seu sentido da seguinte maneira : “Os métodos de Modi definitivamente dão a impressão de que ele considera os cidadãos uma força hostil que não pode ser confiável e à qual se deve emboscar de repente”30. Vemos aqui, em negativo, as qualidades que fazem um ajustamento. E também podemos ver como uma conduta política incapaz de entrar em um regime de ajustamento parece se recompensar com um investimento na interação aleatória. Isso nos leva de volta ao comportamento errático de Trump e Bolsonaro, mas, ao mesmo tempo, abre uma questão teórica de grande importância.

30 A. Roy, “L’altra pandemia”, Financial Times, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 10 de abril 2020, p. 18.


4.3. Ajustamento e aleatoriedade : diferença ou complementaridade ?

Do ponto de vista do modelo landowskiano, o ajustamento e a álea estão efetivamente em uma relação de complementaridade, ao passo que essas reflexões parecem colocá-los em uma relação de contradição.

Uma primeira explicação desse efeito óptico é que essa aleatoriedade é frequentemente vista por seus críticos, como Roy e Mander no caso da Índia, como resultado de uma programação. Veremos melhor ao concluir, quando, ao falar das posições complexas oferecidas pelo modelo, situaremos o caso indiano (mas o raciocínio talvez seja válido também para os casos de Trump e Bolsonaro) no âmbito da programação do risco, de sua calculada exploração caótica-acidental. Desse ponto de vista, o ajustamento sensível proposto por seus observadores críticos aparece como uma tentativa de contradizer essa lógica que superficialmente mostra-se aleatória, mas que em maior profundidade seria programada.

Em segundo lugar, deve-se notar que, de um certo ponto de vista, embora de modo diverso, os regimes interacionais da responsabilização e da confusão deixam entrever um espaço de complementaridade baseado em uma osmose, ou em um certo grau de reversibilidade, entre governantes e governados. Ou seja, a lógica da confiança mútua, que veremos exaltada no caso seguinte, e aquela de uma confiança difusa, embora em nossa análise pareçam claramente distintas, em outros casos, e a partir de outras perspectivas, poderiam em certa medida se conjungir. Claro, pode-se dizer facilmente que a confusão é apenas uma ficção de osmose que reforça o poder absolutista do líder, ou que a confiança mútua da responsabilização não derruba realmente as distâncias entre governados e governantes. Porém, se pensarmos no modo como, nas formas de controle, o poder se dá como esfera completamente separada, ou como, na motivação, a ação parte resolutamente dos governantes, então a aproximação ou sobreposição entre governantes e governados — que a partir do dialogismo da responsabilização pode chegar à mística da unidade própria da confusão — pode se tornar mais perceptível e plausível, pelo menos como um efeito de sentido produzido por meio das diferentes práticas discursivas.

Em terceiro lugar, o próprio tema da individualidade, que nos casos analisados tende a formas de isolamento esclerótico e conflituoso, em outros aspectos e em outros casos, está, ao invés disso, na base da própria ideia de responsabilidade : a ideia de cidadão ativo, enquanto informado, autônomo, responsável por suas escolhas e por isso mesmo detentor de algum poder e participante dos processos transformadores do coletivo, é um clássico que não precisa ser aprofundado aqui.

Assim, mesmo um exame rápido mostra como o espaço, aqui disjuntivo, entre ajustamento e a aleatoriedade poderia ser ocupado conjuntamente em outro lugar.

Retomando positivamente o tema do ajustamento veremos agora um exemplo que nos leva a pensar a cidadania como uma força dotada de uma autonomia responsável e dialógica, capaz de fundar com o governo, com aqueles que ocupam temporariamente o seu cargo, um regime de ajustamento. Ou, como diremos, de co-cidadania.


4.4. Ajustamento como crescimento da responsabilidade compartilhada : a Suécia

Se poderia pensar que o único ator estatal que real e voluntariamente praticou um ajustamento com a chegada do vírus é a Suécia. O Estado efetivamente interveio deixando quase todas as atividades sociais abertas, mas recomendando às pessoas um certo tipo de comportamento prudencial. Essa escolha foi feita e valorizada não apenas com base em uma série de opiniões científicas : ela decorre de uma tradição cultural anti-quarentena e de uma sensibilidade social compartilhada, que informa tanto o campo da proxêmica entre os indivíduos, a normal gestão do espaço público, as relações inter-geracionais e entre a cidade e o campo, bem como a diferente concepção da relação riscos / benefícios que sustenta o senso comum (laico, senão ateu) da maioria da população sueca31. A partir daqui, partindo desse pressuposto de uma sensibilidade a que as escolhas político-sanitárias devem se conformar, desenvolve-se uma estratégia baseada na ideia de “ajustamentos progressivos” entre as necessidades de saúde e as de estabilidade socioeconômica do país, a ser construída mais uma vez a partir da reação situacional às exigências e contingências do momento.

É claro que podem surgir dúvidas e objeções de que uma pura sensibilidade reativa32 esteja em jogo aqui e, portanto, que alavancar uma sensibilidade coletiva atestada nada mais é do que uma forma mais sutil de programação. Isso não pode ser descartado e nos leva de volta, em termos gerais, ao fato de que todo regime de sentido é habitado por tensões contraditórias que o empurram para outros regimes33.

31 Cf. S. Modeo, “Ma perché la Svezia ha lasciato tutto aperto per il Coronavirus, per settimane ?”, Corriere della Sera, 2 de abril 2020.

32 Interações arriscadas, op. cit., pp. 51-52.

33 Ibid., pp. 82-85.

Vale, portanto, voltar à questão inicial : em que termos podemos pensar um governo que se modifica e cresce a partir da transformação da sensibilidade de seus governados ? Já se disse que essa utopia é exatamente o que se condensa no apelo populista à democracia direta, à possibilidade de governantes e governados estarem em uma espécie de simbiose transformadora contínua. Landowski acertadamente criticou a possibilidade de que se trate de um verdadeiro “ajustamento”34, assim como nós, anteriormente, havíamos mostrado que a tradução para a prática desse modelo na verdade impossibilita o processo decisório próprio da política35. O ajustamento populista, portanto, parece estar reduzido ou a uma “retórica”, um apelo instrumental ao sentimento do povo que recai de fato nos regimes manipulatórios, ou à sua programação, talvez apoiada na leitura algorítmica de tendências online e, portanto, na possibilidade de “sintonizar-se” sobre os humores coletivos36.

34 “Politiques de la sémiotique », art. cit.

35 Cf. F. Sedda, “L’emersione del nuovo o l’elogio della semplicità. Da Berlusconi a Papa Francesco, passando per Bersani, Grillo e Renzi”, in I. Pezzini e L. Spaziante (orgs.), Corpi mediali. Semiotica e contemporaneità, Pisa, ETS, 2014.

36 F. Sedda e P. Demuru, “Da cosa si riconosce il populismo. Ipotesi semiopolitiche”, Actes Sémiotiques, 121, 2018 ; id., “La rivoluzione del linguaggio social-ista”, art. cit. ; id., “Social-ismo. Forme dell’espressione politica nell’era del populismo digitale”, art. cit.

Contudo, levando o raciocínio às suas consequências extremas, deve-se observar que as condições de interação entre governantes e governados implementadas pelas redes sociais permitem de fato um jogo contínuo de ajustamento de sensibilidade recíproco, em que se faz a distinção entre quem influencia e quem é influenciado basicamente indiscernível. Certamente, pode-se reclamar que hoje essa nova dinâmica se apresenta a nós como opaca em suas modalidades profundas ; que mais do que uma relação entre sensibilidades, aparece como um contágio entre humores ; e, sobretudo, que é evidente que o “potencial” que este ajustamento atinge é muitas vezes “negativo” e “destrutivo”. Também no caso da Covid-19, por exemplo, a relação entre redes e política, entre fake news, enxames de opiniões, ações políticas, tem favorecido preconceitos anti-chineses ou chauvinismos anti-solidariedade e anti-europeus. Não há, portanto, espaço para um ajustamento positivo no campo político ? A questão do crescimento das responsabilidades e capacidades coletivas, ligadas à capacidade de inovação política e à rotatividade da classe dirigente, poderia fornecer uma contrapartida positiva que, embora seja mais teórica do que prática, ainda encontra nos países escandinavos algumas possibilidades de exemplificação, também reforçadas pela taxa de felicidade individual e apreço pela política, que é constantemente medida em lugares como a Suécia ou a Dinamarca.

Tudo isso considerado — portanto sem subestimar as imperfeições e contradições que também habitam o contexto escandinavo —, a Suécia pode legitimamente aparecer como um caso de ajustamento, alimentado em particular pela confiança mútua entre governantes e governados que estabelece a possibilidade de que a crise leve ao exaltar o potencial cívico e político, a capacidade de representação e inovação recíproca, formas cada vez mais desenvolvidas de crescimento ao mesmo tempo interdependente e autônomo entre governos e governados, em vez de ver o país desmoronar sob o peso do inesperado e da emergência.

5. Orientar-se na complexidade

5.1. Dinâmicas em andamento e bússolas semiopolíticas

O que acabamos de dizer não exclui, é claro, que a Suécia possa passar do campo do ajustamento para o da manipulação (mas isso não seria também, naquele contexto, um sinal de ajustamento ?), tal como na Itália já se pensa uma estratégia de ajustamento para permitir uma reabertura parcial das atividades. Da mesma forma, vimos como certos países podem aproveitar a crise para passar de situações manipulatórias a outras de tipo programatório, como no caso da Hungria, levantando a suspeita fundamentada de que tal programação mire no pleno estabelecimento puro e simples de políticas autoritárias, bem mais que na segurança sanitária. Por fim, não é impensável que certos Estados possam recair, por escolha ou por incapacidade, em uma situação caótica, em que a lógica do acidente se impõe. O temor que surge cada vez que se pensa que a reabertura das atividades possa desencadear “segundas ondas” do vírus remete a este tipo de imprevisibilidade — ou seja, à impossibilidade de prever o ressurgimento ou não daquela situação inesperada que deu vida à crise.

Isso nos permite reiterar que as quatro modalidades principais que usamos para descrever o campo de interações desencadeadas pelo vírus não devem ser entendidas como identidades fixas, mas como posições relativas, polaridades que orientam escolhas e movimentos, um pouco como pontos cardeais em uma bússola. Na prática, porém, essas modalidades não só se sucedem, mas, como vimos, coexistem e se estratificam, definindo hierarquias ou articulações locais, ou vão compor uma arquitetura em que uma das modalidades é utilizada para apoiar outras.


5.2. Respostas ao risco

Dadas essas premissas, vamos, então, tentar traçar um quadro resumido. Ou melhor, dar forma à nossa bússola. Em primeiro lugar, vimos como se apresentam quatro maneiras de lidar com o risco. Vamos alinhá-las começando com a abordagem que maximiza o risco.

A escolha mais arriscada é aquela que podemos definir negação e que com vários graus e formas vimos em ação nas escolhas de Bolsonaro e Trump : negar o risco, deixando que o acaso, o acidente, representado pelo vírus, possa provocar mais aleatoriedade, tanto a nível sanitário como a nível da sociedade em geral.

A segunda escolha é o que podemos definir como convivência : um regime que se abre a uma forma de ajustamento entre os atores humanos e o ator não humano representado pelo vírus, que vimos praticada na Suécia. O vírus surge, assim, como uma força cuja presença não é totalmente incompatível com aquela outra força representada pela vida socioeconômica do país. Essa segunda força deve ser capaz de se modular em correlação com a arriscada presença do vírus.

A terceira escolha, praticada por exemplo na Itália, subverte esse conjunto de forças. Podemos defini-la contenção. O vírus é uma presença, mas o risco de sua circulação deve ser contido sacrificando a força da vida socioeconômica, a chamada “normalidade”. O bloqueio da maioria das atividades econômicas e o confinamento dos corpos nas próprias casas passam a ser a forma de minimizar o risco sem que isso signifique pensar em eliminá-lo, já que a contenção visa antes “ganhar tempo”, como se costuma dizer, principalmente em vista da identificação de uma vacina.

O quarto modo de ação pode ser chamado de eliminação. A atitude visa eliminar por completo o risco, mesmo ao custo, como vimos ao falar da China, de sacrificar as liberdades mínimas e básicas, como a intangibilidade do próprio corpo, a expressão do dissenso, o sigilo dos próprios dados vitais. Embora esta modalidade de resposta possa, em certas condições, maximizar a segurança em relação ao risco representado pelo vírus, ela afeta, no entanto, outros valores cuja preservação, na esfera democrática, se considera imprescindível, mesmo em contextos de crise.


5.3. Modos de interação entre governantes e governados

A essas quatro formas de resposta ao risco representado pelo vírus correspondem quatro modos de interação entre governantes e governados.

No caso da eliminação, a forma de interação é o controle, ou seja, o tratamento dos governados como uma totalidade indistinta e um objeto passivo sobre o qual atuar para melhor administrar o risco, custe o que custar. No caso da contenção, podemos falar de motivação37 : o governo, e as instituições em geral, produzem uma série de ações (legislativas, comunicativas etc.) para convencer os cidadãos a fazerem algo que, de outra forma, provavelmente não fariam.

No caso da convivência a modalidade de interação pode ser definida como responsabilização : os governantes contam mais com recomendações do que com ordens, confiam na capacidade de agir de forma autônoma e responsável por parte dos governados, incluindo aqueles governados muito particulares que são os atores delegados localmente para exercer poder e tomar decisões (como os Estados dentro das Repúblicas federais, ou as Regiões, ou os institutos de saúde pública ...).

37 O termo “motivação” (assim como os a seguir, “convivência” etc.) tem obviamente equivalentes que podem enfatizar tal ou outro aspecto : vimos, por exemplo, como no caso da manipulação também poderíamos falar de “mobilização”. No entanto, esse termo associado à ideia de contenção pode parecer incongruente, enquanto a motivação indica melhor o acionamento de uma vontade, como a de ficar em casa, que de outra forma permaneceria inativa ou ausente.

No caso de negação, a forma da interação é a confusão, termo que merece uma explicação mais detalhada. Por um lado, tende a enfatizar um dos efeitos que vimos emergir de uma ação de negação do risco : as posições negacionistas são de fato posições vagas e vacilantes, que tendem a se contradizer; daí o efeito confuso que introjetam nas pessoas sobre as respostas ao risco. Confusão que também se fortalece quando, em uma sociedade democrática e interconectada, as pessoas, por meio dos canais de comunicação, percebem alternativas credíveis de escolha em relação às indicadas pelos detentores do poder. No entanto, mais profundamente, a ideia de confusão nos parece indicar a tendência dos governantes “negacionistas” de criar uma relação de confusão entre eles e seus governados (ou pelo menos uma parte deles). Resulta a geração de uma confiança que faz dos líderes — que não por acaso aqui mais do que alhures se apresentam no cenário social com nome próprio (América “de Trump”, Brasil “de Bolsonaro) e corporeidade exposta38 — o espelho dos humores e expectativas coletivas. A confusão é, portanto, tanto uma modalidade, desejada e procurada, de interação quanto o efeito paradoxal dessa interação que, ao negar o risco, o maximiza.


5.4. Figuras do coletivo

Chegamos agora às figuras do coletivo que resultam dessas diferentes formas de responder ao risco e construir a relação entre governantes e governados.

No caso da eliminação-controle, trata-se de um coletivo tratado como população, ou como uma corporeidade nua, uma totalidade qualitativamente indistinta que, portanto, se presta a ser tratada “numericamente”, despojando os corpos de qualquer individualidade (pensemos também, neste sentido, nas diferenças relativas ao anonimato dos mortos, isto é, à sua redução a números, que se alastrou na opinião pública do Estados democráticos).

No caso da contenção-motivação, o coletivo se estabelece como um povo, ou como um sujeito dotado de uma vontade unitária a ser mobilizada, inclusive por um discurso de sedução que incentive a corresponder a uma imagem positiva de si projetada por meio de práticas discursivas institucionais e não institucionais.

38 Cf. P. Demuru e F. Sedda, “Social-ismo. Forme dell’espressione politica nell’era del populismo digitale”, art. cit.

No caso do vínculo convivência-responsabilização temos a cidadania, sobre a qual é necessário discorrer um pouco mais. Através da distinção entre povo e cidadania nos focamos efetivamente, seguindo Benveniste, não somente a sublinhar a diferença entre demos e civitas, isto é, entre uma totalidade em certa medida compacta (e, portanto, mais estática) e uma difundida (e, portanto, mais dinâmica), mas acima de tudo para traduzir civis não apenas como “cidadão”, mas mais exatamente como “concidadão”39. Esta interpretação benvenistiana enfatiza, no interior da civitas, a dimensão da reciprocidade, ou melhor, de um coletivo fruto de uma coparticipação que é ao mesmo tempo responsabilizante e afetivamente marcada. (Ver a conexão que Benveniste estabelece com a raiz sânscrita ?eva e o termo grego philos, ambos ligados ao sentimento e ao ideal da amizade). Por estas razões, a ideia de cidadania — ou, melhor, de co-cidadania — parece-nos referir a essa dimensão sensível própria do ajustamento. Pode-se dizer, portanto, que se o demos é portador de uma vontade, por mais apaixonada que seja, a civitas é portadora de uma sensibilidade, ainda que conscientemente assumida.

39 Cf. E. Benveniste, Le vocabulaire des institutions indoeuropeennes. 1. Economie, parenté, societé, Paris, Minuit,1969, pp. 258-259.

No caso da conexão negação-confusão, podemos falar do surgimento da figura da individualidade. Este termo, como já vimos, refere-se em particular ao coletivo como conjunto de elementos em conflito, não comunicante, separados, como tais arautos de uma condição exponencialmente arriscada, tanto no que diz respeito ao vírus quanto no que diz respeito à relação dos governados com o poder, bem como ainda nas relações internas do próprio coletivo.


5.5. Agenciamentos complexos

O fato de que o campo semiopolítico possa se orientar de acordo com essas polaridades não impede ventos do sudeste e passagens para noroeste. Ou, dito em outras palavras, que se pode e deve pensar em posições complexas. Limitemo-nos a dois âmbitos e a alguns exemplos : aquele que combina programação e acidente, por um lado, e aquele que mistura manipulação e ajustamento, por outro.

Vimos no caso da Grã-Bretanha como se pode imaginar um risco programado (que segundo algumas revelações recentes parece ter sido hipotetizado também por Trump) : assumir o risco como eixo de sua estratégia, justificando-o dentro de uma cadeia específica de previsões e ações / paixões. Resumindo em nossas próprias palavras, “muita gente vai morrer, vamos chorar pelos nossos entes queridos, mas vamos sair mais cedo e não sacrificaremos nossas vidas e nossa economia”.

Podemos, no entanto, também falar de uma programação do risco. Se trata de uma posição escorregadia porque obviamente remete a todas as narrativas conspiracionistas e conspiratórias sobre algum planejamento e disseminação direcionada do vírus. No entanto, também caem neste campo as hipóteses sobre o uso instrumental que um governo pode fazer da presença do vírus no âmbito da coletividade. Arundhati Roy, por exemplo, denunciou abertamente o governo de Narendra Modi de ter explorado o vírus, inclusive por meio da mídia e fundações por ele controladas, para fins de enriquecimento, de fortalecimento da própria liderança narcisista, bem como para aprofundar preconceitos anti-muçulmanos dentro da Índia, sobre o qual em boa parte se baseia sua aprovação :

A mídia do regime inseriu a história da Covid-19 na campanha venenosa que rea- lizam sem parar contra os muçulmanos. Eles descobriram que uma organização chamada Tablighi jamaat, que organizou um comício em Nova Delhi antes do anúncio do bloqueio total, “está espalhando o contágio por toda parte”. Usando essa notícia para culpar e demonizar os muçulmanos. O tom geral [da história] sugere que eles inventaram o vírus e estão deliberadamente espalhando-o como uma forma de jihad.40

Em outras palavras, este como tantos outros exemplos, nos lembra que o vírus e o risco que ele representa podem se tornar uma ferramenta dentro de uma ação programada para outros fins.

40 A. Roy, “L’altra pandemia”, Financial Times, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 10 de abril 2020, p. 20.

Vimos que pode haver cruzamentos entre programação (controle) e manipulação (motivação), como no caso da Coréia do Sul e de outros países que, embora operando com um forte controle tecnológico, ainda assim perseguiram o caminho de informar e motivar seus cidadãos. Mais difícil é encontrar neste momento uma posição que pressupõe ajustamento e aleatoriedade, justamente porque as análises realizadas até aqui nos levaram a associar o primeiro a um sentido de responsabilização e o segundo a um sentido de confusão. No entanto, os modelos também são úteis quando deixam posições vazias, o que por sua vez pode nos ajudar a ver o que acontece diante de fenômenos vagos, ambíguos, paradoxais, inéditos e menos fáceis de apreender.

Finalmente, parece útil recordar a posição complexa que combina motivação e ajustamento. Um bom exemplo disso é o discurso proferido em 11 de abril pelo presidente alemão Frank Walter Steinmeier, que foi amplamente divulgado por seu contraste com a tão repetida metáfora de “estar em guerra” e o apelo contextual à solidariedade europeia e internacional :

Peço a todos vocês [alemães] que continuem a confiar — pois aqueles que governam nos níveis federal e regional estão cientes de que têm uma grande responsabilidade. No entanto, as decisões sobre o que fazer, quando e como as restrições podem ser abrandadas não dependem apenas de políticos e especialistas. Em vez disso, elas dependem de todos nós, da nossa paciência e disciplina, agora, em um momento em que isso pesa mais do que nunca. O grande esforço que estamos a fazer nestes dias, não o fazemos porque existe uma mão de ferro para nos obrigar, mas porque somos uma democracia vital com cidadãos responsáveis. Uma democracia na qual confiamos uns nos outros para ouvir fatos e argumentos, para agir com bom senso, para fazer a coisa certa. Uma democracia, em que cada vida conta e em que cada um tem um papel indispensável : do trabalhador da saúde ao chanceler federal, do Comitê Científico aos pilares visíveis e invisíveis da sociedade, aos caixas de supermercado, aos motoristas de ônibus e caminhões, em padarias, no campo ou na coleta de lixo. Vocês estão se superando. Sou grato a vocês. E é claro que sei que todos nós desejamos a normalidade. Mas o que isso significa ? Só voltar o mais rápido possível à velha rotina, aos velhos hábitos ? Não, o mundo será diferente. Como vai ser ? Depende de nós. Vamos aproveitar as experiências, as boas e as más, que todos nós temos, todos os dias, nesta crise.41

Nesta longa passagem, volta uma evidente estratégia de motivação, mas também o apelo à responsabilização, à confiança mútua e à capacidade de mudar, governantes e governados, por meio da crise, de alguma forma “graças” a ela. Parece-nos um bom exemplo, entre muitos, de como uma sensibilidade motivada e uma motivação sensível podem se cruzar e o risco pode se tornar não apenas um inimigo a ser negado ou derrotado, mas uma presença por meio da qual repensar as muitas relações que marcaram o presente que acaba de passar e convocar todos a produzir novos presentes. Um verdadeiro teste para a humanidade.

41 A tradução completa (para o italiano) está disponível no seguinte site : https://www.ilfoglio.it/esteri/2020/04/13/news/un-banco-di-prova-per-la-nostra-umanita-il-discorso-di-frankwalter-steinmeier-312759/.

Referências bibliográficas

1. Obras de semiótica e antropologia

Benveniste, Emile, Le vocabulaire des institutions indo-européennes. 1. Economie, parenté, societé, Paris, Minuit,1969.

Demuru, Paolo, Essere in gioco. Calcio e cultura tra Brasile e Italia, Bologna, Bononia University Press, 2014.

— “Simboli nazionali, regimi di interazione e populismo mediatico : prospettive sociosemiotiche”, Estudos semióticos, 15, 1, 2019.

— e Franciscu Sedda, “Il corpo social-ista”, Actes Sémiotiques, 123, 2020.

Fabbri, Paolo, La svolta semiotica, Roma-Bari, Laterza, 1998.

Landowski, Eric, Interações arriscadas (2005), São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014.

— “Politiques de la sémiotique”, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 1, 2019.

Lotman, Juri M., Testo e contesto. Semiotica dell’arte e della cultura, Roma-Bari, Laterza, 1980.

Marrone, Gianfranco, Corpi sociali, Torino, Einaudi, 2001.

Pezzini, Isabella (org.), Semiotic efficacity and the effectiveness of the text. From effects to affects, Turnhout, Brepols, 2001.

Rosenau, James, Turbulence in World Politics. A Theory of Change and Continuity, Princeton, Princeton University Press, 1990.

Sedda, Franciscu, Imperfette traduzioni. Semiopolitica delle culture, Roma, Nuova Cultura, 2012.

— “L’emersione del nuovo o l’elogio della semplicità. Da Berlusconi a Papa Francesco, passando per Bersani, Grillo e Renzi”, in I. Pezzini e L. Spaziante (orgs.), Corpi mediali. Semiotica e contemporaneità, Pisa, ETS, 2014.

— “Le impreviste rivoluzione del Covid-19”, in A. Guigoni e R. Ferrari (orgs.), Pandemia 2020. La vita quotidiana in Italia con il Covid-19, Danyang, M&J Publishing House, 2020.

— e Paolo Demuru “Da cosa si riconosce il populismo. Ipotesi semiopolitiche”, Actes Sémiotiques, 121, 2018.

— e Paolo Demuru, “La rivoluzione del linguaggio social-ista : umori, rumori, sparate, provocazioni”, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 1, 2019.

— e Paolo Demuru, “Social-ismo. Forme dell’espressione politica nell’era del populismo digitale”, Carte semiotiche. Rivista internazionale di Semiotica e Teoria dell’Immagine-Annali, 6, 2020.

2. Artigos de imprensa

Artiaco, I., “Il caso Nuova Zelanda, che in due settimane ha (quasi) sconfitto il Coronavirus”, fanpage.it, 8 de abril de 2020.

Harari, N.Y., “Il mondo dopo il virus”, Financial Times (trad. it. in Internazionale, 1351, 27 de marzo de 2020, pp. 18-21).

Havelock, N., “New Zealand isn’t just flattening it’s coronavirus curve, it’s squashing it”, The Washington Post, 7 de abril de 2020.

Kendi, I.X., “What the Racial Data Show”, The Atlantic, 6 de abril de 2020.

Kokkinidis, T., “Greece Emerges as International Model for Coronavirus Early Response”, Greek Reporter, 30 de marzo de 2020.

Latour, B., “La crise sanitaire incite à se préparer à la mutation climatique’”, Le Monde, 25 de março de 2020.

Mander, H., “L’India si è fermata e i più poveri moriranno”, The Indian Express (trad. it. in Internazionale, 1351, 27 de marzo de 2020, pp. 27-28).

Modeo, S., “Ma perché la Svezia ha lasciato tutto aperto per il Coronavirus, per settimane?”, Corriere della Sera, 2 de abril de 2020.

Mukherjee, S., “Il virus fuori e dentro di noi”, The New Yorker (trad. it. in Internazionale, 1353, 10 de abril de 2020, pp. 24-28).

Nicastro, A., “Coronavirus, perché la Grecia ha così pochi morti e contagi?”, Corriere della Sera, 8 de abril de 2020.

Oltermann, P., “Germany’s devolved logic is helping it win the coronavirus race”, The Guardian, 5 de abril de 2020.

Phillips, T. e D. Phillips, “Bolsonaro dragging Brazil towards coronavirus calamity, experts fear”, The Guardian, 12 de abril de 2020.

Rampini, F., “La lezione di Confucio”, Il Venerdì di Repubblica, 27 de marzo de 2020, pp. 22-23.

Roy, A., “L’altra pandemia”, Financial Times (trad. it. in Internazionale, 1353, 10 de abril de 2020, pp. 16-20).

Won Sonn, Jung, “I limiti del modello sudcoreano”, The Conversation (trad. it. in Internazionale, 1351, 27 de março de 2020, pp. 29-30).

Yong, E., “La superpotenza malata”, The Atlantic (trad. it in Internazionale, 1352, 3 de abril de 2020, pp. 19-22).

 

25 Ver I. Artiaco, “Il caso Nuova Zelanda, che in due settimane ha (quasi) sconfitto il Coronavirus”, fanpage.it, 8 de abril de 2020.

26 Cf. T. Kokkinidis, “Greece Emerges as International Model for Coronavirus Early Response”, Greek Reporter, 30 de março de 2020.

27 S. Mukherjee, “Il virus fuori e dentro di noi”, The New Yorker, 26 de março 2020, p. 25.

28 Cf. P. Fabbri, La svolta semiotica, Bari, Laterza, 1998 ; I. Pezzini (org.), Semiotic efficacity and the effectiveness of the text. From effects to affects, Turnhout, Brepols, 2001 ; G. Marrone, Corpi sociali, Torino, Einaudi, 2001.

29 H. Mander, “L’India si è fermata e i più poveri moriranno”, The Indian Express, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 27 de março 2020, pp. 27-28.

30 A. Roy, “L’altra pandemia”, Financial Times, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 10 de abril 2020, p. 18.

31 Cf. S. Modeo, “Ma perché la Svezia ha lasciato tutto aperto per il Coronavirus, per settimane ?”, Corriere della Sera, 2 de abril 2020.

32 Interações arriscadas, op. cit., pp. 51-52.

33 Ibid., pp. 82-85.

34 “Politiques de la sémiotique », art. cit.

35 Cf. F. Sedda, “L’emersione del nuovo o l’elogio della semplicità. Da Berlusconi a Papa Francesco, passando per Bersani, Grillo e Renzi”, in I. Pezzini e L. Spaziante (orgs.), Corpi mediali. Semiotica e contemporaneità, Pisa, ETS, 2014.

36 F. Sedda e P. Demuru, “Da cosa si riconosce il populismo. Ipotesi semiopolitiche”, Actes Sémiotiques, 121, 2018 ; id., “La rivoluzione del linguaggio social-ista”, art. cit. ; id., “Social-ismo. Forme dell’espressione politica nell’era del populismo digitale”, art. cit.

37 O termo “motivação” (assim como os a seguir, “convivência” etc.) tem obviamente equivalentes que podem enfatizar tal ou outro aspecto : vimos, por exemplo, como no caso da manipulação também poderíamos falar de “mobilização”. No entanto, esse termo associado à ideia de contenção pode parecer incongruente, enquanto a motivação indica melhor o acionamento de uma vontade, como a de ficar em casa, que de outra forma permaneceria inativa ou ausente.

38 Cf. P. Demuru e F. Sedda, “Social-ismo. Forme dell’espressione politica nell’era del populismo digitale”, art. cit.

39 Cf. E. Benveniste, Le vocabulaire des institutions indoeuropeennes. 1. Economie, parenté, societé, Paris, Minuit,1969, pp. 258-259.

40 A. Roy, “L’altra pandemia”, Financial Times, trad. nossa, a partir da tradução italiana in Internazionale, 10 de abril 2020, p. 20.

 

________________

Palavras chave : acaso, acidente, ajustamento, cidadania, confiança, controle, convivência, motivação, negacionismo, povo, programação, responsabilização.

Mots clefs : accident, ajustement, citoyenneté, confiance, contrôle, hasard, motivation, négationnisme, peuple, programmation, responsabilisation, vivre-ensemble.

Auteurs cités : Emile Benveniste, Paolo Demuru, Paolo Fabbri, Eric Landowski, Jurij Lotman, Gianfranco Marrone, Isabella Pezzini.


Plan :

Premissa

Introdução

1. Entre autoritarismo e tecnocracia: a programação da China e da Coréia do Sul

1.1. A programação autoritária da China

1.2. A tecnoprogramação sul-coreana

1.3. Biopolítica e eliminação do risco

1.4. Sensibilidades presumidas ou induzidas

1.5. Contágio chauvinista

1.6. Vigiar ou proteger : inovação tecnológica e a esquerda globalista

1.7. Serendipidade ?

2. Exposição, confusão, indiferença : formas da aleatoriedade na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Brasil

2.1. O risco programado da Grã-Bretanha de Boris Johnson

2.2. O caos e o acaso : a propagação do risco nos EUA de Trump e no Brasil de Bolsonaro

2.3. Absolutismo de retorno

2.4. Rebanhos, facções, indivíduos : formas do caos

2.5. Negacionismo e vagueza

3. O povo a motivar ou mobilizar : as manipulações da Itália e da Alemanha

3.1. Uma vez feita a Itália, tem que fazer-fazer os italianos

3.2. Uma vontade distribuída : a Alemanha (e a Nova Zelândia)

3.3. O primado do Estado e da cidadania

4. Sensibilidade a valorizar-se : Grécia, Índia, Suécia

4.1. Grécia no espelho da Itália : ajustamento como modelização analógica ?

4.2. Ajustamento como compaixão : a Índia de Modi no espelho de Gandhi

4.3. Ajustamento e aleatoriedade : diferença ou complementaridade ?

4.4. Ajustamento como crescimento da responsabilidade compartilhada : a Suécia

5. Orientar-se na complexidade

5.1. Dinâmicas em andamento e bússolas semiopolíticas

5.2. Respostas ao risco

5.3. Modos de interação entre governantes e governados

5.4. Figuras do coletivo

5.5. Agenciamentos complexos

 

< Page 1