César Martins de Souza
Doutor e Pós-Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia e do Campus de Bragança, ambos da UFPA. Contato: cesarmartinsouza@yahoo.com.b
Weverton Castro
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (UEP). Professor da Faculdade Adventista da Amazônia. Contato: everton.castro@faama.edu.br
Resumo: As obras literárias trazem entretenimento, conhecimento e reflexão ao possibilitar aos leitores adentrar em universos diferentes de suas próprias realidades. No presente artigo se constroi um diálogo com a literatura para pensar sobre as relações desta com o cristianismo, a partir dos estudos sobre espiritualidade, problemáticas sociais e concepções cristãs em obras que se mantêm atuais mesmo em temporalidades posteriores. A literatura permite aprofundar o olhar sobre o cristianismo em narrativas que nem sempre possuem a intenção religiosa, mas que olham para temáticas muito presentes na religiosidade cristã. Assim, em obras consagradas da literatura brasileira e universal, evidencia-se que trazem debates sobre o aprofundamento da espiritualidade a partir da literatura, bem como sobre problemas sociais, como a violência e a disseminação do ódio na sociedade, expondo contradições e paradoxos de discursos que se apoiam no cristianismo para apregoar ideias contrárias aos ensinamentos de Cristo presentes nos evangelhos.
Palavras-chave: literatura; cristianismo; espiritualidade; problemas sociais
Abstract: Literary works propitiate entertainment, knowledge and reflection by enabling readers to enter universes different from their own realities. In the present article, a panoramic reading is sought, strolling through several works, for construct an analysis to think about the relations between literature and Christianity, which bring debates about spirituality, social problems and Christian conceptions in works that remain current even in later temporalities. Literature brings the possibility of deepening the look at Christianity in narratives that do not always have a religious intention, but that look at themes that are very present in Christian religiosity. Thus, especially in consecrated works of literature Brazilian and universal, it is evident that the works bring debates on the deepening of spirituality from literature, as well as on social problems, such as violence and the spread of hatred in society, exposing contradictions and paradoxes of speeches that are based on Christianity to proclaim ideas contrary to the teachings of Christ present in the gospels.
Keywords: literature; christianity; spirituality; social problems
O presente artigo pretende adentrar no entrelaçamento entre a espiritualidade e concepções do cristianismo em obras literárias, considerando a complexidade das relações humanas e cosmologias que se (des)encontram entre ideologias, crenças, realidades diversas, problemas sociais e práticas culturais que se tornam ainda mais densas quando se lança um olhar a partir de um prisma que enfoca construções artísticas no uso das palavras.
Este texto é resultado de um projeto que estuda temáticas do cristianismo presentes na literatura, considerando narrativas que olharam para suas sociedades e suas temporalidades. Assim, é possível pensar a literatura e as dinâmicas da realidade social relacionadas ao cristianismo em uma construção que reúne disciplinas como as Ciências da Religião, Teologia, Teoria Literária, História, Antropologia, Filosofia, para problematizar a complexidade e os paradoxos trazidos por obras escritas em diferentes temporalidades.
A literatura traz temporalidades e atemporalidades que estendem seus significados ao longo de diferentes períodos históricos e a mantém viva não apenas nas memórias, mas no cotidiano de várias gerações de leitores e leitoras que choram, ficam alegres ou indignados e são convidados à reflexão pela pena, caneta ou teclado de pessoas que pensam para além das amarras de seu tempo e de suas sociedades, sem, todavia, ser deslocadas deles (BAKHTIN, 1994).
O olhar panorâmico que lançamos neste texto se difere de outros em que nos detivemos em obras específicas, pois o objetivo agora é construir uma visão geral sobre as inter-relações entre a literatura e o cristianismo e como, para além dos livros sagrados, as narrativas trazem os leitores para o centro de reflexões sobre espiritualidade e os problemas sociais, de modo a poderem problematizar diversos aspectos presentes em suas crenças.
Em uma conhecida obra, o teólogo/filósofo, o pensador Rubem Alves (2019, p. 36-37), provoca os leitores a transformarem em oferta a Deus, a beleza das artes presente nas músicas, pinturas e obras literárias, muitas vezes marcadas por uma inerente espiritualidade que trazem a formosura da natureza em conjunção com a possibilidade de reflexões sobre a complexidade da fé, a partir de ângulos geralmente pouco enfocados no cotidiano.
Assim, no presente artigo se utiliza o método bibliográfico que mergulha na análise dos livros para entender uma problemática (SEVERINO, 2013), como no presente texto sobre as relações entre a literatura e a espiritualidade em diversas obras, de diferentes períodos. A partir deste método podemos construir diálogos e reflexões sobre temáticas cristãs em obras literárias, pois estas trazem questões que permitem pensar sobre o cristianismo e sobre as problemáticas sociais que se entrelaçam na construção da espiritualidade.
O padre Fábio de Melo, em um livro denominado Crer ou não crer (MELO; KARNAL, 2017), afirma que sua espiritualidade não se aprofunda somente na leitura da Bíblia ou de livros do cristianismo, e nem apenas nas atividades que desenvolve na igreja. Em um livro que se constitui em um debate entre ele e o historiador Leandro Karnal, Melo desafia seus leitores a um encontro com o sagrado em diferentes linguagens, como nas obras literárias, de modo que convida os cristãos a lançarem um olhar de aprofundamento sobre suas relações com o divino/sagrado em outros campos, como o literário, em um processo espiritual que seria vivenciado por cada indivíduo. Melo reconhece então que uma parte considerável de sua compreensão e de suas falas sobre o cristianismo advém de leituras de obras não necessariamente de cunho religioso, como as literárias:
A própria literatura, por exemplo. Às vezes eu percebo que muito do meu discurso cristão deriva das obras que tive a oportunidade de ler – e que não foram escritas com intenções religiosas. Chego à conclusão de que existe nessas histórias uma verdade humana que me coloca diante daquilo que é mais sagrado (MELO; KARNAL, 2017, p. 75)
Ao longo do livro, o autor incita a uma experiência de fé que não se fixa nos elementos internos às suas práticas religiosas, ou seja, apenas em músicas, literatura, escultura, filmes e outras manifestações voltadas deliberadamente para fomentar experiências marcadas por uma religiosidade cristã, mas a perceber em criações artísticas de temáticas universais, a espiritualidade, em um diálogo sobre problemáticas, abordagens e práticas inerentes ao cristianismo.
Além de obras que dialogam com a religiosidade cristã, mas sem a “intenção religiosa”, referida por Melo, existem obras literárias cuja proposta central é metaforizar ou mesmo fazer uma abordagem apologética sobre temáticas do cristianismo, com a “intenção religiosa” a partir de obras de ficção. Nessa categoria, se enquadram algumas obras do conhecido pesquisador, apologista cristão e escritor britânico, C.S. Lewis, como O grande divórcio (LEWIS, 2020), na qual os personagens se encontram em uma fila aguardando entrar no ônibus que os levará para decisões importantes em suas vidas e os colocará entre o paraíso celestial divino ou para a companhia de demônios e humanos decaídos. Nesse percurso, experimentam processos de descobertas sobre si e ainda têm a oportunidade de repensar suas posturas cotidianas, para tomarem uma decisão final sobre o caminho que adotarão e até onde este os levará.
Outra obra importante nesta perspectiva é O peregrino, de John Bunyan (2019), que traça o caminho de uma jornada humana com todos os seus percalços, mostrando que a vida cristã é uma peregrinação diária, com diversas decisões a serem tomadas nas experiências de cada indivíduo. No mesmo sentido é o livro de June Strong (1987), Projeto Sunlight, no qual um anjo da guarda acompanha a vida de uma mulher, com seus dramas e alegrias, até ela construir uma experiência pessoal com Deus e seguir o caminho que a levará a encontrá-Lo pessoalmente no paraíso celestial.
Em Um homem chamado Jesus, Frei Betto (2009) reescreve histórias presentes nos evangelhos, a partir de uma visão mais aproximada da Teologia da Libertação, que considera a fé em uma perspectiva indissociável da transformação social, para repensar e ensinar sobre a vida do personagem central do cristianismo, em uma narrativa entrecruzada por elementos sociológicos, filosóficos e teológicos.
O evangelho segundo Jesus Cristo, do premiado escritor português José Saramago (2005), faz a passagem de uma literatura com “intenção religiosa” para uma literatura que dialoga sobre narrativas do cristianismo, pois também reconta as histórias da vida de Jesus, em uma abordagem que reelabora histórias presentes nos evangelhos e dá um sentido não religioso a este universo. Demian, de Hermann Hesse (2012) também dialoga fortemente com temáticas presentes no cristianismo, com destaque para os embates entre o protagonista e seu amigo Demian, como uma releitura do conflito entre Caim e Abel, mas a obra, escrita por um vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, adentra na espiritualidade e na construção do humano, sob diversos ângulos e em alguns momentos traz questionamentos filosóficos a premissas fundamentais para os cristãos.
Obras como a de Saramago e Hesse, se diferenciam dos referidos livros de Lewis, Strong, Bunyan e Frei Betto, por adentrarem em problemáticas próprias do cristianismo, sem fazer apologias ou trazer a intenção religiosa, contudo construindo um forte diálogo com as crenças e narrativas cristãs. Essas obras, se aproximam, portanto, do processo de reflexão relatado como uma experiência pessoal de Melo (2017, p. 96-99), que afirmou se encontrar com sua espiritualidade, em diferentes linguagens, muitas vezes distanciadas do que se consideraria por obras de cunho religioso, e com olhares que abrem novas possibilidades de ponderar sobre temáticas que se mantêm atuais na contemporaneidade e nas vivências humanas mais universais.
As obras literárias trazem reflexões sobre temáticas que muito além de uma crença ou religião são fundamentais para pensar sobre as sociedades ocidentais e sobre a experiência humana a partir de um diálogo com o cristianismo, enquanto a construção de uma forma de pensamento que influencia até mesmo muitos escritores que não se autoidentificam como cristãos. Boas, Zeferino & Serrato (2021, p. 218) acreditam que “ao desconsiderar as artes, uma teologia guiada por um paradigma racionalista se torna apática”, pois ignora a busca de sentido presente na literatura, enquanto uma tentativa de ressignificar as experiências humanas em seu encontro com o sagrado, sob a ótica das obras de ficção. Por outro lado, quando “a relação entre estudos teológicos e estudos literários considera a dimensão afetiva da experiência humana, pode ser traduzida em caminho de sensibilização humana” (BOAS, ZEFERINO; SERRATO, 2021, p. 218-219).
Eagleton (2020, p. 148-151) considera que as obras literárias permanecem vivas por décadas ou até mesmo séculos, recebendo novos significados a cada leitura, em diferentes temporalidades e espaços, por trazerem experiências humanas mais universais. Para o autor, a literatura faz um intercâmbio entre significados compreendidos de formas diversas por leitores de todo o mundo, pois:
o significado não é objetivo como o são os estacionamentos municipais, mas tampouco é apenas subjetivo. O mesmo se aplica às obras literárias, como já comentei. São intercâmbios, não objetos materiais. Não há literatura sem leitor.
Além disso, a capacidade do leitor para fazer com que um poema ou um romance signifique alguma coisa é moldada por sua situação histórica. A cada momento um texto só pode significar aquilo que o leitor tem capacidade de lhe atribuir como sentido (EAGLETON, 2020, p. 150-151).
Quando os livros trazem um diálogo com temáticas ou visões marcadas pela construção de uma espiritualidade cristã, podem atravessar diferentes tempos e espaços, por encontrar pessoas que compartilham crenças semelhantes, mas que ainda assim atribuíram significados diversos, posto que lhes possibilitaram um mergulho em sua própria espiritualidade.
Os irmãos Karamazóv, de Dostoiévski (2013), por exemplo, é uma obra publicada pela primeira vez em 1879 e permanece atual, por ser possível fazer a conexão entre o que Eagleton (2020, p. 140-146) denomina de significados inerentes à compreensão do texto, com os novos significados atribuídos pelo leitor na tradução cultural que vai fazer dentro de seu processo de leitura. Assim, esta obra adentra em várias temáticas fundamentais para o cristianismo, trazendo questionamentos que são raramente abordados em obras de apologética cristã, como sobre a dificuldade de separação rígida dos limites entre o bem e o mal, o problema da teodiceia e como envolve a complexidade da compreensão sobre a benignidade reunida à onisciência e à onipotência de Deus.
Em uma longa discussão, Ivan, um dos Irmãos Karamazov, questiona seu irmão caçula, conhecido como Aliócha, crente em Deus e discípulo de um mestre cristão ortodoxo russo, sobre a complexidade da relação entre a onisciência, onipotência, onipresença e bondade de Deus, para interrogar sobre o sentido do sofrimento humano no mundo, inclusive de crianças pequenas, e como ritos e práticas cristãos podem opor maldade e bondade de forma paradoxal (DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 272-308).
Ivan questiona também o sentido da liberdade e da bondade em um mundo onde a maldade contrária aos valores cristãos parece se impor. A espiritualidade em Os Irmãos Karamázov traz reflexões sobre os aparentes paradoxos relacionados ao problema da liberdade no cristianismo que, para o filósofo judeu e rabino Abraham Heschel (2014, p. 214-218), é um dos temas mais importantes para as grandes religiões monoteístas. O embate entre dois dos irmãos Karamázov, proporciona a possibilidade de pensar sobre a relação entre a liberdade e a teodiceia, em uma obra sem intenção religiosa, que pode explorar diversos ângulos da questão.
Eagleton (2018, p. 50-52) ao analisar a presença de Deus nas sociedades ocidentais, defende que o problema da liberdade é um dos mais complexos e mais caros ao cristianismo e que por isso merece consideração e atenção mais profundas para ser abordado. Em sua concepção, “Deus é fonte da liberdade e da autonomia humanas não o que as suprime. É pela dependência da graça que homens e mulheres alcançam sua autodeterminação” (EAGLETON, 2018, p. 51).
A complexidade das temáticas cristãs presentes na obra, trazem um debate interdisciplinar para leitores que podem então olhar para sua própria espiritualidade e fazer um diálogo entre crenças e significados sociais. Para Oliveira (2012, p. 57-58), a densidade das construções filosóficas presentes nas obras de Dostoiévski, ocorre a partir do encontro entre uma crítica à cultura europeia e suas visões sobre comunidade e cristianismo:
Nesse sentido, o romancista acreditava que a absorção das ideologias ocidentais poderia corromper, e até mesmo destruir, a alma do povo russo, a quem creditava todas as suas esperanças, por pensar que ela guardava um tesouro de fé e amor cristãos e que este tesouro estava presente até mesmo no maior criminoso (OLIVEIRA, 2012, p. 60).
É a obra promovendo o encontro entre os anseios, dramas e angústias de seu tempo e de seu espaço, com vertentes de pensamento e visões sobre espiritualidade e religiosidade na obra de um consagrado autor. A literatura traz, portanto, esse outro prisma que proporciona uma experiência outra com a espiritualidade, marcada por um adentrar em uma conversa de personagens e narradores sobre a fé e a vivência prática desta.
Nesse processo ocorre uma forte intertextualidade entre os textos bíblicos e os textos literários, consolidando um encontro entre a criação artística e a espiritualidade, pois a Bíblia é considerada pelos cristãos como o livro sagrado escrito a partir da inspiração divina. Os estudos que adentram na polissêmica relação entre cristianismo e literatura vão além dos encontros entre textos sagrados e textos não sagrados. É plausível analisar por diversos caminhos e diferentes problemáticas, o diálogo entre a espiritualidade cristã com a palavra da criação literária de modo mais amplo.
Este processo ocorre na obra Jane Eyre, de Charlotte Brontë (2017), que junto com Anne e Emily é uma das celebradas escritoras britânicas que ficaram conhecidas como irmãs Brontë, em que uma preceptora traz fortes ações e pensamentos sobre os desafios e paradoxos das crenças cristãs, como sobre amor, ódio e perdão, em um texto recheado de referências bíblicas (MARTINS DE SOUZA; CASTRO, 2022).
Em seus estudos sobre os encontros e desencontros da literatura com o cristianismo, Catenassi, Anjos e Perondi (2021, p. 259-361), consideram que até o final do século XX predominava uma visão exclusivista da interpretação da Bíblia que acreditava ser a sua compreensão limitada a exegeses elaboradas por lideranças, sobretudo teólogos, diretamente vinculadas às igrejas cristãs. Esta perspectiva teria provocado o avanço das análises sobre os textos bíblicos, mas também a crescente afirmação de visões literalistas que não percebiam a relevância das dinâmicas literárias presentes na Bíblia.
Assim, para Catenassi, Anjos e Perondi (2021, p. 259-361), estas visões teriam levado a ideias que aceitam apenas as instituições religiosas como detentoras do direito ou da expertise necessária para tecer comentários ou análises sobre a Bíblia. Sob esta perspectiva, ocorreu progressivamente o crescimento de uma lacuna nos estudos sobre a literatura, que são as pesquisas sobre as interrelações entre a Bíblia e a literatura, bem como sobre diversos temas que abarquem o cristianismo, presentes nas obras literárias.
Nesse processo, como que caiu no esquecimento o fato de que a literatura faz também parte de um conjunto de movimentos que constroem sistemas de comunicação na sociedade, a partir de representações, metáforas, diferentes métodos narrativos e figuras de linguagem, que levam os leitores a se repensarem no processo de leitura, por conseguirem vislumbrar suas próprias realidades e dinâmicas humanas e sociais, inclusive em suas experiências espirituais pois, como afirmam Catenassi, Anjos e Perondi (2021, p. 361):
Quando alguém lê, não toma conhecimento apenas de um fato histórico situado em determinado tempo e lugar do passado, mas entra em relação dialética com o texto, sofrendo sua influência e, ao mesmo tempo, contribuindo com sua percepção particular de leitor sobre o conteúdo.
Na leitura ocorreria tanto um processo coletivo de compreensão, através dos temas, figuras literárias e abordagens, como também o individual, pois os sujeitos leitores encontram caminhos para pensar sobre suas próprias vivências, a partir dos conteúdos com os quais se comunicam. A literatura ocuparia assim um lugar no desenvolvimento de mecanismos que reúnem diferentes formas e lógicas de vivências humanas, a partir das palavras escritas, que intercomunicam pessoas.
Essa visão se encontra com a de Kuschel (2018) que compreende a literatura como contendo intrinsecamente um ethos do pensar profundamente sobre a humanidade por dentro da linguagem, abarcando a teologia, a filosofia, a história, a antropologia e outros campos que problematizam as experiências humanas, nas variadas possibilidades deste repensar sobre a fé e a espiritualidade.
Kuschel (2018) faz assim um chamado a teólogos e teólogas para refletir sobre o ethos da humanidade a partir de linguagens literárias que adentram nos dramas das experiências humanas, bem como trazem o pensamento sobre temas fundamentais para os cristãos:
As teólogas e os teólogos deviam ser pessoas com consciência também “no ouvido”. Uma frase flexível, uma palavra certeira, uma metáfora precisa, um parágrafo denso e bem estruturado, um diálogo vibrante: tudo isso não “surge” simplesmente, mas pode ser “feito” se não desprezarmos nada mais que a esclerose e a redundância na linguagem. Existe, portanto, um ethos da responsabilidade pela linguagem (KUSCHEL, 2018, p. 42).
Ele chama a atenção para perceber a literatura como o lugar para ler, rememorar e escutar diferentes vozes. O encontro entre o ethos da humanidade e o ethos do escrito abrem muitas perspectivas para pensar a literatura como este lugar de linguagens, metáforas, imagens e reflexões que trazem o cristianismo, familiarizado com a palavra da Escritura, para um universo que coloca a palavra criativa como epicentro da análise e da percepção sobre a lembrança e comunicação a partir da criação de narrativas escritas.
Manzatto (2016, p. 10) considera que a literatura e a teologia possuem fortes pontos de encontro, porque ambas falam sobre o humano e ao trazê-lo permitem (re)conhecê-lo em suas diversas dimensões, como a sua espiritualidade e sua inter-relação com o sagrado. A narrativa das experiências humanas traria inevitavelmente o diálogo com o sagrado, tornando a literatura uma forma importante de exercício espiritual.
Não são apenas os textos sagrados que ganham destaque nas obras literárias, mas também os olhares que lançam sobre a espiritualidade e que trazem a experiência religiosa para o campo das linguagens literárias. Assim, “o discurso sobre o sagrado ou o transcendente interessa o cientista da religião e este discurso não está ausente das obras literárias” (MANZATTO, 2016, p. 11).
Nesse sentido, a obra a crônica sobre o natal, intitulada Compras de Natal escrita por Cecília Meireles (1983), traz em uma narrativa, um tema que se constitui no epicentro da fé cristã: o nascimento de Cristo. A autora conversa com os leitores sobre a experiência social do Natal, através das reuniões familiares e religiosas, do dinheiro gasto no comércio, nas festas, nos presentes caros e no turismo, para questionar as inter-relações entre crenças e vivências práticas, nas comemorações do nascimento do Messias.
Em diferentes lugares do mundo, bem como atravessando temporalidades, as narrativas cristãs ganham assim força na literatura, sendo possível fazer um passeio em obras brasileiras e de outros países, em diferentes períodos para analisar as densas e às vezes tensas dinâmicas que envolvem o sagrado, inter-comunicando a criação literária com o cristianismo e que evidenciam como a leitura pode ser uma forma importante para a espiritualidade.
Natal, violência, ódio, amor, graça são temas fortes em diversas obras que dialogam com o cristianismo, abrindo caminhos para novas percepções e outros olhares sobre a espiritualidade e a literatura e como a visão sobre alguns temas podem levar a transformações na sociedade, de forma que nas obras os leitores são convidados a reflexões sobre suas vivências no campo da religiosidade.
É um fenômeno explorado por Cecília Meireles (1983) em Compras de natal, uma crônica publicada originalmente no começo do século XX e que foi incorporada a algumas coletâneas de crônicas da autora, como Janela Mágica (MEIRELES, 1983, p. 44-45). Nesta crônica, Meireles faz um paralelo entre a suntuosidade das festas natalinas que em muitos casos sacrificam as limitadas fontes de renda das famílias, enquanto o Menino Jesus, nasceu entre palhas em um celeiro.
Ela questiona, na prática, como as sociedades ocidentais se apropriaram de festividades e narrativas cristãs, para construir algo tão diferente que parece uma ressignificação não religiosa de eventos de fundamental importância para o cristianismo, como o nascimento de Cristo na condição de um refugiado, em meio a animais e na ausência de qualquer tipo de pompa ou de luxo.
O paralelo que ela faz com as festividades natalinas, com enfeites e presentes caros, destaca uma forte crítica social, muito constante nos diálogos entre literatura e cristianismo. A crítica na crônica de Meireles se pauta na percepção do esvaziamento dos significados religiosos em função da banalização do ritual, que passa a assumir, no caso do Natal, práticas excludentes e consumistas (MEIRELES, 1983).
Santos e Tavares (2020, p. 164-166), afirmam que o Natal traz desde suas origens, uma diversidade cultural que reúne festas romanas e festas cristãs. Os autores consideram que esta festividade cristã, vem trazendo em sua concretização diversas práticas não religiosas, inclusive a exploração capitalista, pois:
O Natal é a festa da família, das crianças e do consumismo. Hoje existe um Natal religioso e um Natal consumista, apesar de a religião rejeitar o materialismo. O Natal é constituído por uma variedade de práticas e rituais diferenciados entre culturas” (SANTOS; TAVARES, 2020, p. 165).
A crítica ao consumismo nas festas natalinas também é enfocada no conto Ninguém comeu George, de Luizan Pinheiro (2003, p. 127-134), publicado pelo X Concurso de Contos da Região Norte, realizado pela Universidade Federal do Pará, onde uma família recebe a doação de um filhote de peru para ser comido no Natal seguinte. Eles, que nunca tiveram uma ceia especial de Natal, se afeiçoam ao animal, que recebe o nome de George, e se dedicam a ele com carinho, de modo que rapidamente este se torna o centro das brincadeiras de todos. Chegou o dia de Natal e a mãe, escondida dos filhos, matou George e o assou na ceia familiar, tornando este Natal o mais triste da família que não teve coragem de comer o amigo.
A narrativa, por um ângulo diferente da crônica de Meireles (1983), também chama a atenção para o esvaziamento ritual de eventos e práticas importantes do cristianismo, ante a crença presente nas sociedades ocidentais, de que o Natal exige consumo de determinados alimentos, para realizar grandes festas e também que se tem a obrigação de comprar presentes de elevado valor econômico, para legitimar todos os familiares.
A crítica social de ambos, evoca um tema presente na literatura que traça um caminho entre a espiritualidade cristã e os problemas cotidianos na sociedade, como o consumismo. O que está em questão no conto não é somente a simplicidade do Natal, mas a sobreposição do consumismo capitalista sobre a comemoração do nascimento de Cristo, que Gunjevic (2016, p. 204-207) considera ser a mensagem de esperança de renovação das vidas humanas e de salvação do mal.
A literatura, como defende Manzatto (2016, p. 14-17), pode ser um espaço de encontro entre o campo sagrado e as realidades sociais, até porque um está presente inerentemente no outro, de forma que pode trazer outro olhar ao debate sobre temáticas caras ao cristianismo. Assim, a renovação dos indivíduos e o amor ao próximo frente a um mundo ocidental marcado muitas vezes pelo consumo desenfreado que se apropria até mesmo de uma data, como o Natal, que nasceria da crença de que Deus se doou à humanidade, é uma abordagem importante, presente em diversas obras, como ponto de partida para debates sobre significados religiosos e práticas sociais.
Do consumismo à violência, a literatura de Charlotte Brontë (2017), em Jane Eyre, traz no olhar de uma professora/preceptora da Inglaterra do século XIX, o drama vivenciado por pessoas de setores desfavorecidos da sociedade quando colocadas em cenários de exploração e humilhação impostas pelas elites. O agravante neste romance é a utilização do cristianismo como uma espécie de base religiosa para justificar e apoiar a violência, o expurgo e a humilhação como se fossem um modo de trazer a pregação do evangelho de Cristo.
A protagonista, Jane Eyre, não consegue compreender como a beleza de uma religião que apregoa o amor a todas as pessoas e o cuidado com os menos favorecidos pode ser utilizada para disseminar o ódio e a discriminação, ou o injusto julgamento dos atos de uma pessoa colocada na condição de subalternidade social. Jane não possui mecanismos para se opor às diversas formas de violência que lhe são impostas pela viúva de seu tio, vista por religiosos como se fosse uma grande benfeitora cristã, preocupada em ensinar o evangelho de Cristo a sobrinha do falecido marido (BRONTË, 2017, p. 50-52).
A violência praticada supostamente em nome de Cristo é uma preocupação de Tolstói (2011, p. 43-44) em O reino de Deus está em vós, onde ele demonstra contrariedade com o armamentismo da sociedade russa do século XIX, manifestado como se tivesse legitimidade cristã para tal, posto que até mesmo, segundo ele, as armas e as tropas que partiam para as guerras eram abençoadas por clérigos.
Em outra das obras do renomado escritor russo, Onde existe amor Deus aí está, voltada para um público infanto-juvenil, Tolstói (2014) traz em uma narrativa curta repleta de gravuras, uma ênfase no amor cristão que se preocupa com todas as pessoas frente à exploração, à violência e à exclusão social presentes na sociedade. Nesta obra, ao invés de o cristianismo ser utilizado como base religiosa legitimadora do ódio, da violência e da exploração, aparece como um caminho de esperança para a transformação da sociedade, baseada no amor de Cristo e na preocupação com todas as pessoas.
Do Natal ao cotidiano da fome e da violência na sociedade, a literatura vem a ser aqui um caminho para contestar a utilização do cristianismo como base religiosa para práticas que violam os direitos coletivos e individuais, fundamentais para a dignidade humana. Zizek (2015, p. 115-121), defende a necessidade de que as sociedades, principalmente as ocidentais, não percam de vista valores importantes do cristianismo que pensam a igualdade humana a partir do conceito da Graça divina oferecida a toda a humanidade indiscriminadamente, provocando o “escândalo” ocidental: a existência de uma espiritualidade que pensa a todos na lógica da igualdade e da caridade.
Meyer (2010, p. 99-102) argumenta que as crenças propagadas e vividas por Cristo, não legitimam a violência, a guerra e a injustiça social, mas foram utilizadas por governantes e regimes autoritários em diferentes momentos da História como forma de dar a aparência de fidelidade religiosa à imposição de crenças e ao expurgo, de modo a contar com apoio de muitas lideranças cristãs para práticas claramente contrárias aos conceitos defendidos por Cristo. Dullo (2011, p. 108-111) problematiza que o cristianismo, em seus fundamentos discursivos presentes nos evangelhos, é dotado de preocupação com a inclusão da pessoa humana nas mais diferentes esferas e, portanto, em si mesmo não é legitimador da exploração, da violência e da injustiça social.
A literatura universal sai de um tempo específico e se desloca entre diferentes temporalidades, de modo a se manter viva através dos tempos e de diferentes espaços, quando aborda temáticas caras para diferentes sociedades, pois, para Bakhtin (1994, p. 14), “tudo o que pertence apenas ao presente morre com ele”.
Para Zizek (2015, p. 117-121), a caridade e a igualdade entre os seres humanos são alguns dos principais legados do cristianismo e que independentemente das crenças dos sujeitos, são valores pelos quais toda a sociedade deve lutar, pois para ele são governos e segmentos autoritários que se utilizam da religião para propagação do ódio, da discriminação e da violência.
Na visão de Rubem Alves (2019, p. 35-40) se deve oferecer o belo tangível e intangível a Deus, através da contemplação das artes, como ocorre quando nos deleitamos em produções não canônicas para imergir no cristianismo sob outro ângulo, pois as temáticas trazem este universo em releituras que possibilitam ampliar debates e contemplar a vida de uma forma mais bela.
Assim, a literatura traria a espiritualidade como um convite aos leitores a pensar suas realidades e provocar neles a reflexão sobre o cotidiano dos problemas de sociedades predominantemente cristãs, em que esta religião, ao invés de funcionar em seu potencial transformador e de esperança (ALVES, 2019), aparece muitas vezes como elemento de legitimação do que deveria ser a negação dos fundamentos do cristianismo, como o ódio, a violência, o preconceito e a exploração.
O escritor francês Maurice Druon (2018) traz em O menino do dedo verde, uma obra de referência do universo infanto-juvenil, a visão ingênua de uma criança que enxerga os problemas cotidianos no mundo dos adultos e não consegue entender como podem ser vistos positivamente por muitas pessoas. Ele não compreende, por exemplo, como agressões, armas e paredes mal cuidadas de um presídio, bem como diversas formas de maus tratos muitas vezes impostos aos detentos, podem contribuir para uma transformação em suas perspectivas e esperanças, bem como na da sociedade que os privou de liberdade como forma de punição. Ele então reinventa o cenário, com cores, cuidado, flores e amor ao próximo, como um caminho para trazer esperança e felicidade. Assim, na visão de uma criança que depois vem a se revelar ser um anjo, emerge a crítica a conceitos naturalizados na sociedade e que podem provocar um círculo de violência (DRUON, 2018, p. 108-111).
A obra traz, portanto, um tema cada vez mais presente na sociedade, que é o debate sobre como os detentos devem ser tratados nas penitenciárias, pois enquanto alguns grupos defendem a prática de agressões e privações contra eles, o protagonista de Druon, o Menino do Dedo Verde, pensa e age de outra forma. Ele acredita que práticas como o uso da força e da brutalidade contra os encarcerados, não estão de acordo com as crenças no Deus judaico-cristão e não se constituem em mecanismos de transformação dos sujeitos e da coletividade.
Embates sobre ódio, violência e transformação dos sujeitos podem ser encontrados com frequência em obras literárias que dialogam com o cristianismo, de forma que fica evidente como as narrativas não separam problemáticas sociais da espiritualidade, mas pelo contrário, trazem as crenças e a espiritualidade cristã como uma forma de pensar sobre a possibilidade de metamorfosear concepções muitas vezes presentes em alguns segmentos da sociedade. A discussão sobre o potencial transformador do cristianismo surge assim como uma oposição ao ódio e à exclusão, principalmente quando as práticas a eles relacionadas são supostamente pautadas em crenças cristãs e disseminadas no interior de confissões religiosas, como se esta fosse a vontade de Deus para as pessoas.
Marília César (2021), em seu estudo sobre violência contra mulheres em lares cristãos, argumenta que não é possível defender as agressões praticadas por homens contra suas esposas, como se existisse algum tipo de apoio no cristianismo e afirma que somente visões equivocadas de lideranças cristãs, levam ao entendimento da submissão das mulheres aos seus maridos e aos abusos, autoritarismo e outras formas de violência praticadas por estes.
Ela sustenta que muitas visões frágeis teologicamente distorcem crenças importantes e influenciam negativamente em práticas adotadas na sociedade que aparecem como se fossem inerentes à religiosidade cristã. Sbardella e Peretti (2019) questionam os descaminhos marcados por uma religiosidade que se desloca da busca por uma maior profundidade espiritual para o afastamento dos fiéis de um encontro com o sagrado, devido a leituras equivocadas sobre a fé.
Cristo mostra que a sua morte é devida à ignorância dos que o acusam. O motivo de sua condenação não é porque sua mensagem trouxe desagregação, mas porque reuniu suas ações em favor das pessoas, trazendo cura, libertação, acolhimento, respeito e partilha de bens individuais. Sua imolação foi injusta e violenta. Fizeram com ele o mesmo que fizeram com aqueles que se opuseram à violência e apontaram para os algozes (os profetas). Mas a morte de Jesus jogou luzes sobre a violência dissimulada… (SBARDELLA; PERETTI, 2019, p. 56)
A literatura pode ser, portanto, esse lugar da reflexão sobre a espiritualidade individual e seus impactos sobre a coletividade. Em seus diálogos com o cristianismo, a literatura pode manter sua presença em diferentes temporalidades pois, como afirma Benjamin (2017, p. 16) “o autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores é que o libertam dessa prisão”, a partir do estudo sobre suas obras, bem como das novas leituras, que conseguem compreender as narrativas em outros tempos.
Quando as obras trazem o diálogo com o cristianismo e adentram em temáticas relacionadas à Bíblia ou a diversas formas de compreensão ligadas a uma hermenêutica de origem cristã, adentram no que Eagleton (2014, p. 94-95) vai chamar de a maior possibilidade de a literatura não religiosa falar de Deus de forma alegórica, através de narrativas que se encontram com temas teológicos por um ângulo geralmente pouco revisitado, ampliando o campo de análise e de percepção sobre o cristianismo, em diálogos com produções que possuem uma maior liberdade criativa.
Obras como as de Tolstói, Druon e Cecília Meireles não dessacralizam o universo cristão, mas trazem os leitores para outra compreensão sobre a espiritualidade e os dramas sociais com os quais se relacionam por campos visuais pouco abordados no cotidiano dos praticantes do cristianismo. Na visão de Bonhoeffer (2020, p. 124-131), se o universo cristão se separa radicalmente do mundo, já não é mais a espiritualidade em sua totalidade, já que, segundo ele, a premissa fundamental para os cristãos é que Jesus reconciliou o mundo inteiro consigo ao se tornar humano e estender a graça imerecida a todas as pessoas.
O apelo a graça imerecida aparece tanto na obra de Tolstói (2014) quanto na de Druon (2018, p. 109), sendo que em O menino do dedo verde, o narrador questiona o fato de que “a prisão é dessas coisas que a gente encara tranquilamente para as pessoas que não conhecemos”, trazendo as contradições entre os conceitos do cristianismo e os professos cristãos.
A defesa de torturas e outras formas de agressão contra encarcerados que não conhecemos e, ao mesmo tempo, de punições mais brandas contra nossos parentes e amigos (ou não punição), utilizando a religiosidade como se fosse uma base para discursos de ódio e violência, entra nos paradoxos e contradições apontados por Bonhoeffer (2020, p. 132-135), que perpassa ao esquecimento de que a graça de Cristo é imerecida e estendida a todas as pessoas e que por isso igualaria a todas como cobertas pelo amor salvífico substitutivo que possibilita a renovação da vida a quem não possui méritos para isso.
O autor argumenta que o cristianismo aponta para igualdade entre as pessoas ao considerar que “a fé nesse Jesus Cristo é a única fonte de todo o bem” e que estende assim a todos os praticantes desta fé a responsabilidade em cuidar e se preocupar com todas as outras pessoas, independentemente de quem sejam ou do que tenham feito (BONHOEFFER, 2020, p. 135).
Essa é a lógica presente na obra de Tolstói (2014), pois situa o amor como algo que deveria ser oferecido a toda a humanidade e entende que o cuidado deve ser estendido a toda a qualquer pessoa. Assim, na obra, os excluídos têm para além da ajuda material, o cuidado, o amor e a atenção do protagonista que demonstra se preocupar e atender as necessidades das pessoas que se encontram marginalizadas e/ou excluídas pela sociedade. É uma lógica inversa a de quem se utiliza da mensagem de Cristo para pregar o uso da violência, da exclusão social e da discriminação.
Discriminar, ofender e excluir, como se fossem uma espécie de dever cristão, como modo de impor o evangelho, se opõe ao que Bonhoeffer (2020, p.189-191) defende, quando afirma que levar o evangelho às outras pessoas se constitui em uma experiência transformadora, animando a preocupação com os outros, independentemente dos marcadores sociais que as separam, pois Cristo teria reconciliado todo o mundo ao se dar pela e para a humanidade.
É a literatura assumindo o papel de ponte entre temáticas mais densas da sociedade, problematizando a espiritualidade cristã na prática social, pois em diferentes narrativas abre um campo de visão para repensar realidades, bem como práticas religiosas que muitas vezes se encontram encobertas por ideias que fogem às concepções fundamentais da fé que se afirma professar.
A literatura é um espaço de construção de memórias sociais e também de debates sobre temas importantes de seus tempos ou de outros tempos, a partir da leitura da realidade construída por seus autores. É um convite para que leitores, autores e toda a sociedade possam olhar para si sob ângulos diferentes, para se efetivar a construção de espaços de reflexão que podem até mesmo criar a possibilidade de transformação de concepções e práticas.
Assim, quando se olha para obras da literatura brasileira e universal, sobre as quais nos detivemos ao longo deste artigo, bem como de tantas outras, podemos enxergar que o diálogo com o cristianismo ganha força nas obras e traz visões que muitas vezes ressignificam percepções de mundo consolidadas ao longo do tempo e que em alguns casos obscurecem o pensamento.
As obras literárias podem assim lançar seu olhar para livros sagrados, como a Bíblia, ou para outras crenças e outros livros sagrados e chamar para problematizar contradições e paradoxos que se consolidaram de tal modo que não se consegue mais perceber como, por exemplo, a defesa da agressão, da tortura ou dos maus tratos praticados como se fossem baseados no cristianismo, entram em contradição com os ensinamentos presentes nos discursos de Cristo, na Bíblia. É um problema denunciado por diversos autores, inclusive por aqueles que não se definem como professos cristãos, como Zizek (2015, p. 34).
Qual o legado do cristianismo e como ele pode contribuir para a construção de uma espiritualidade que adentre na complexidade humana? Como o cristianismo pode contribuir para trazer transformações nas sociedades ocidentais, muitas delas autodefinidas como predominante cristãs, mas que raramente parecem evocar as crenças cristãs, do amor, da graça e da caridade em seu cotidiano? São alguns dos questionamentos recorrentes nas obras literárias que se lançam a evocar o potencial de transformação dos sujeitos e das sociedades, a partir de ensinamentos cristãos muitas vezes esquecidos na prática e que nos lembram da necessidade de repensar as relações entre crenças, conceitos, espiritualidade e a concretização da fé.
O passeio na literatura realizado no presente texto, mais do que destacar a visão de um autor ou autora, visa compreender questões em comum trazidas em diversas obras, quando olham para o cristianismo e que parecem se colocar como um convite a leitoras e leitores para revisitar velhos ensinamentos, como se fossem novos, em sociedades que parecem cada vez mais distantes das crenças que afirmam seguir e defender.
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