A ficção como signo-cesta
DOI:
https://doi.org/10.23925/2316-5278.2023v24i1:e61888Resumo
O experimento mental como recurso filosófico não é raro ou mesmo recente – podemos pensar no gato de Schrödinger ou na alegoria platônica da caverna. Porém, é incomum que textos ancorados na Filosofia se proponham a analisar objetos ou debater propostas da literatura de ficção, e em especial, da ficção científica. Apressadamente tomada, a relação levantaria um descompasso entre a preocupação filosófica com realidade e verdade e a libertária licença poética da ficção. É como se imaginação filosófica e imaginação criativa não pudessem coexistir. Advogamos justo o oposto disso. Acreditamos que esse descompasso não se sustenta para além da aparência, de uma imposição forçosamente rígida entre realidade e ficção como campos apartados. Este artigo pretende analisar a possibilidade de a ficção científica operar como ferramenta cognitiva capaz não só de simular, mas propor novas dinâmicas para o mundo presente, informando sobre o real. Aproximando o exercício de criar histórias do exercício de pensar realidades alternativas, a ficção científica abre espaço para o questionamento crítico e transformação de nossa própria realidade da vigília, deixando de ser um mero devaneio necessariamente desprovido de agência no mundo. Para tanto, faremos uso de certos aspectos da filosofia semiótica de Charles S. Peirce e de alguns ensaios de Ursula K. Le Guin acerca da ficção científica e da habilidade narrativa. Para Peirce, signos encadeiam-se ininterruptamente em semioses que participam tanto na compreensão do mundo quanto em sua intervenção. Ainda que o exercício da ficção científica possa parecer à primeira vista contraintuitivo ou antinatural, explorar mentalmente novas possibilidades pode render insights preciosos. Peirce institui e valoriza um terceiro modo de pensamento, diferente da lógica vertical da dedução e da indução: a abdução, operação do raciocínio que busca explicar fatos por meio de hipóteses. Poderíamos pensar que a ficção científica muitas vezes se vale de abduções na busca de vislumbrar uma compreensão mais profunda. Insights não simplesmente bons para examinar como seriam situações alternativas, fictícias, mas úteis na necessária tarefa de pôr-se em crítica e transformação contínua do mundo para um lugar melhor. De Ursula Le Guin, examinamos de que modo a habilidade – até onde sabemos – humana de narração fictícia pode ser uma tecnologia de transformação do que é o caso no presente real no qual convivemos. A autora faz uma analogia entre a capacidade de narrar e a cesta: ambas seriam umas das primeiras tecnologias evolutivas de nossa espécie. Cestas e bolsas, histórias e estórias, são artefatos semióticos que armazenam, transportam, reúnem, classificam, alimentam. A ficção como uma cesta e como um signo é uma proposta que alberga e põe em relação não só humanos, mas seres diversos, conectados em semioses mais ou menos próximas, mais ou menos dependentes, mais ou menos perceptíveis; mas nunca, irreais.
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